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demandas materiais, valores implícitos e lutas por reconhecimento

Ao discutir a segunda dimensão do reconhecimento, o âmbito do direito, Honneth aponta para a dificuldade da verificação empírica, visto que se torna observável apenas a partir de sua negação. Apenas quando é identificada a privação de deter- minados direitos é que se percebe as possíveis consequências que esta denegação e recusa podem causar aos sujeitos. No caso em questão, a denegação de direitos em relação à moradia nos fornece elementos para evidenciar que as lutas extrapolam demandas materiais e clamam por um reconhecimento que vai além da moradia e da infraestrutura básica. E, ainda, revela que a produção de sentidos possibilitada pelas redes sociais articula redes de apoio mútuo e solidariedade.

A partir dos dados apresentados, identificamos cinco características centrais dessas lutas: a) a generalização e universalidade das demandas para além do mé- rito, privilégio ou honra; b) a paridade de participação nas negociações como um dos alvos da luta, capaz de ser alcançada por meio do reconhecimento dos sujeitos como iguais nas negociações; c) a naturalização da desigualdade como alvo a ser

desconstruído; d) a consideração de modos coletivos de vida e de apropriação dos bens públicos; e) e a formação de redes de produção de sentido que visa à coletivi- zação das lutas populares.

Conforme Honneth (2003a), no direito tradicional os sujeitos jurídicos tinham seus direitos protegidos de acordo com o status e a função social que desempenha- vam. Com o direito contemporâneo, o autor afirma que as leis adquirem uma ca- racterística da universalidade, sem exceções e privilégios, desvinculada de simpa- tias ou emoções e resultado de processos puramente cognitivos. (Honneth, 2003a) Obviamente, a aplicação da letra da lei nem sempre obedece a essas premissas. Quando as postagens analisadas evidenciam demandas por igualdade de direitos e questionamentos sobre os privilégios de construtoras, elas apontam justamen- te para uma universalização dos direitos, que devem ser para todos – o direito à moradia é de todos. O reconhecimento jurídico tem como premissa a aplicação universal, gerando um respeito moral que deve ser exercido de maneira recíproca. Posso respeitar o outro sem, contudo, estimá-lo em suas particularidades (como Fraser acusa a Teoria do Reconhecimento de Honneth), pois há um saber moral so- bre as obrigações jurídicas perante esse outro moralmente imputável.18 Da mesma

forma, a dignidade como parâmetro universal, defendida por Taylor, busca uma generalidade e universalidade. A análise evidencia um desejo da consideração da moradia enquanto direito universal, com condições mínimas que garantam a dig- nidade e a integridade física.

Uma segunda característica dessas lutas seria buscar a paridade de partici- pação, conforme definiu Fraser, para que os movimentos tenham suas demandas ouvidas. Nas postagens houve menção à demanda por participação nas negocia- ções sobre as ocupações em um quinto dos posts. De fato, luta-se pela paridade de participação, mas há também uma dificuldade de acesso às mesas de negocia- ção que advém de uma topografia de valores que hierarquiza os que contam e os que não contam nessas negociações: cidadãos de segunda classe (SOUZA, 2003) que precisam lutar antes para serem reconhecidos enquanto sujeito de direitos para então lutarem pela participação, a qual é ela própria um direito. (NAÇÕES UNIDAS, 1992)

18 Imputabilidade moral é um termo jurídico que, grosso modo, pode ser explicado como a condição e a possibilidade de as pessoas responderem juridicamente por seus atos.

A própria seara do direito é alvo das lutas por reconhecimento tanto no que tange ao cumprimento de leis já promulgadas quanto em relação a novas leis que são alvo das lutas para a sua aprovação. “[...] Obedecendo à mesma lei, os sujeitos de direito se reconhecem reciprocamente como pessoas capazes de decidir com autonomia individual sobre normas morais.” (HONNETH, 2003a, p. 182) A preo- cupação de Honneth, que não difere tanto de Fraser, é quanto ao estabelecimento e à legitimação dessas novas regras e à autonomia dos sujeitos de decidirem sobre questões morais. Essas decisões devem envolver indivíduos em pé de igualdade que se reúnem para estabelecer um acordo universal. As reuniões solicitadas pelos moradores das ocupações revelam essa demanda por uma paridade antecedida, entretanto, por uma demanda por reconhecimento desses sujeitos enquanto dignos de participar e de influírem nas decisões sobre seus futuros em relação à moradia.

Essa luta pode dar origem a um processo de extensão das propriedades univer- sais de maneira a ampliar os direitos a um número cada vez maior de indivíduos, alguns até então excluídos desse processo e das considerações jurídicas. Assim, a luta por reconhecimento se constitui em torno dessa ampliação, impulsionada por experiências de desrespeito. Mediante o sentimento de privação de direitos e exclu- são de algo que pretende ser universal, os sujeitos empreendem lutas por reconhe- cimento para buscarem o reconhecimento jurídico negado.

Como terceiro aspecto da luta, está a naturalização da desigualdade como alvo a ser desconstruído. As postagens frisam a importância do direito de habitar, sem distinção. Há a oposição entre garantias fundamentais de vida (presente em 409 posts), ligada à dignidade humana (TAYLOR, 1992; SOUZA, 2003, 2006) e os privilégios concedidos a uns e não a outros. Como apontou Souza (2015), há dificuldade no Brasil para a saída da condição de marginalidade social. A mo- radia se apresenta como um direito que permite lutar pelos outros ao colocar seus reivindicantes numa posição menos desfavorável no ambiente competitivo da sociedade. A luta por reconhecimento nesse âmbito se dá então pelo combate à precariedade.

Em quarto lugar, identificamos que há um forte apelo à consideração de modos coletivos de vida e de apropriação dos bens públicos. Isso é mencionado nas 178 de- mandas classificadas como direito coletivo em detrimento do direito privado, além de ser identificado também nas postagens classificadas como direito à cidade, quan- do se refere ao direito de usufruir de bens públicos, representando 37% das posta- gens. Importante destacar que a defesa da moradia como direito coletivo e não um

direito privado combate a ideia de meritocracia, compreendida como privilégio.Por isso, é recorrente a demanda pela apropriação dos bens públicos do território urbano e a valorização da coletividade no cotidiano de vida dos sujeitos em detrimento dos valores individualistas que regem o dia a dia de grande parte da sociedade.

Honneth define o “desrespeito social” como o motor para a luta social, sen- do fundamental o reconhecimento em grupo para possibilitar a pretensa con- quista política. Logo, a coletividade é importante para os movimentos que lutam por moradia também por este aspecto: permitir que os cidadãos não reajam “de modo emocionalmente neutro às ofensas sociais” (HONNETH, 2003, p. 224) e encontrem no outro o suporte para se unirem. As demandas passam também a ser motivo de “resistência política”, nos termos de Honneth, e integram, portanto, o rol de reivindicações das postagens no Facebook.

Desse modo, está na natureza das lutas por reconhecimento a formação de re- des formadas por aqueles que são alvo de injustiças, sendo os processos comunica- tivos nelas engendrados uma estratégia política importante. Identificamos que no Facebook está uma das expressões dessas redes. Os ativistas utilizam a plataforma para a produção de solidariedade interna e de visibilidade. Assim, as lutas popu- lares são coletivizadas e tensiona-se as ideias cristalizadas acerca da moradia, pro- priedade, dignidade, mérito e bem viver.

Conclui-se que, ainda que a pauta imediata seja a moradia, os movimentos e ocupações acionam em seus discursos públicos justificativas morais que extrapo- lam o valor do bem material e da propriedade. O ativismo que busca se utilizar das redes sociais para dar vazão às suas lutas convoca uma dimensão moral presente na dimensão da coletividade e da vida em comum, dos direitos humanos e das garantias fundamentais, representados pela integridade física, pela liberdade de ir e vir e de participar de processos políticos bem como pela possibilidade da vida em comunidade.

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