• Nenhum resultado encontrado

por reconhecimento: repensando a erosão da cultura cívica e a politização reativa

Por fim, cabe destacar que novos desafios se apresentam para as lutas por reco- nhecimento com a organização do sistema híbrido e interconectado de media, (CHADWICK, 2013; CHADWICK; DENNIS; SMITH, 2015; MAIA, 2017, 2018b) na medida em que diferentes tipos de politização e de despolitização se desenrolam de modo relativamente espontâneo através das esferas íntima, pública e governa- mental. Partimos da premissa que a circulação de informações qualificadas é fun- damental para que questões diversas sejam debatidas e, consequentemente, para que as lutas por reconhecimento sejam efetivas. Contudo, com o crescimento do acesso digital, a disseminação de discursos de ódio e de notícias falsas, não basea- das em fatos, mas guiadas pelo partidarismo, pelo revisionismo ideológico ou pelo obscurantismo religioso, obstruem a possibilidade de expressão democrática. Se, por um lado, a diminuição das barreiras para a comunicação política permite que a informação seja acessível e não concentrada em determinados veículos e, ainda, que o conteúdo informativo seja passível de ser questionado, por outro lado, ela fornece condições propícias para campanhas de desinformação e para a dissemina- ção de mentiras. A circulação indiscriminada e sem monitoramento das notícias, incluindo a avalanche de fake news, impõe novos problemas para determinar a ver- dade como uma afirmação verificável sobre a realidade.

No Brasil, esse conteúdo circula, sobretudo, por meio de grupos de WhatsApp e, muitas vezes, por uma estratégia paga de envio de mensagens em série, com um amplo alcance de usuários da rede social. (PIAIA; ALVES, 2019) Essas informações falsas, ao simular os formatos e as linguagens do jornalismo, buscam conquistar

credibilidade para fazer avançar agendas partidárias e desestabilizar os oponen- tes e instituições políticas ou comerciais. (BENNETT; LIVINGSTONE, 2018; WAISBORD, 2018) São exemplos de informações falsas que pautaram a opinião pública recentemente aquelas produzidas por grupos antivacinas para espalhar o medo por meio de conspirações contra a indústria farmaceûtica e grupos conser- vadores que distorceram fatos para enquadrar ações contra homofobia como “kit gay”, visando ao ganho político e ideológico. Em meio a uma abundância de infor- mações, torna-se cada vez mais difícil extrair conteúdos relevantes e verdadeiros do ambiente digital, o que contribui para o surgimento de uma cultura de descon- fiança. (DAHLGREN, 2018) E mais, diante de tantas fake news e desinformações, questionar a credibilidade das reivindicações de pessoas ou grupos dos quais se discorda torna-se também uma prática comum. Ainda que seja possível verificar a veracidade das fontes, este cenário facilita a propagação de convicções baseadas no engano, na desinformação e na fraude. De tal sorte, os media tradicionais perdem a função de mediadores comprometidos com a “verdade” e passam a ser vistos com desconfiança por boa parte da população. Em contrapartida, os próprios cidadãos, expostos a um fluxo seletivo de conteúdos, com a interferência dos algoritmos e da própria lógica de funcionamento das plataformas digitais, tornaram-se responsá- veis por distribuir essas informações falsas, conformadas pelas relações interpes- soais on-line nas redes sociais. (BENNETT; LIVINGSTONE, 2018)

De modo complementar à ação dos cidadãos, os líderes populistas, ao atacar as organizações da imprensa com críticas retóricas, aumentam a suspeição acerca da possibilidade de produção de informação legítima. (ALLCOTT; GENTZKOW, 2017; WAISBORD, 2018) A retórica populista, via de regra, rejeita os princípios fundamentais da comunicação pública, como o papel da imprensa de exercer vi- gilância sobre os representantes eleitos e agentes públicos, a proteção à liberdade de expressão pelo Estado e o direito de acesso à informação fidedigna. No atual contexto, há, frequentemente, a negação explícita de reivindicações objetivamen- te verificáveis, que, juntamente com a velocidade com que as informações circu- lam, contribuem para moldar a formação da opinião. (CURATO; HAMMOND; MIN, 2018, p.139; HAMELEERS, 2019) Essas dinâmicas contemporâneas da co- municação política tendem a agravar a crise epistêmica vivenciada nas sociedades democráticas. Na medida em que se afirma que todas as verdades são parciais e respondem a interesses de grupos; que evidências e explicações produzidas por cientistas e historiadores são equivalentes a narrativas alternativas e que cada um

tem a sua verdade; e, ainda, que cada pessoa tem a própria maneira de classificar as informações que acessa pelas redes sociais enquanto relevantes e verdadeiras ou não, (DAHLGREN, 2018; WAISBORD, 2018) a própria noção de verdade perde seu potencial normativo para guiar as decisões coletivas. Este mau presságio deixa evidente a importância de se levar seriamente em conta os requisitos que tornam a vida pública democrática possível: a tolerância e o engajamento com as diferenças por meio da discussão bem informada, crítica e respeitosa na esfera pública. Os atos de reconhecer e ser reconhecido, fundados nas obrigações recíprocas para com a liberdade e a autonomia dos outros, e, também, fundados na solidariedade para favorecer o desenvolvimento positivo e a autorrealização dos indivíduos, garante e protege a integridade de todos nas sociedades democráticas.

Conclusão

Neste capítulo, buscamos explorar determinadas tensões por reconhecimento no âm- bito das relações cotidianas, na esfera pública e nas instituições políticas. Focalizamos obstáculos para fazer avançar lutas por reconhecimento, a partir da ascensão da so- ciedade civil conservadora, de riscos de erosão da cultura cívica e da ascensão de líde- res populistas. Argumentamos que as lutas progressistas e as lutas reacionárias, ainda que articuladas em torno de percepções de danos, engendram noções completamente distintas de princípios e práticas para permitir (ou para obstruir) a individualização e a inclusão de indivíduos nas relações de reconhecimento. Distinguimos entre três dimensões de politização e despolitização que perpassam os conflitos por reconhe- cimento no reino íntimo/privado, na esfera pública e nas instâncias governamentais. Em contraste com as abordagens centradas na mídia, buscamos ilustrar como o modelo híbrido e interconectado de media faz parte tanto dos processos de politiza- ção quanto de despolitização, para sustentar de modo dinâmico embates entre inte- rações democráticas e aquelas iliberais ou antidemocráticas.

Referências

ALLCOTT, H.; GENTZKOW, M. Social media and fake news in the 2016 election. Journal of

AVRITZER, A.; STARLING, H.; ZANANDREZ P. e BRAGA, P. (org.). Pensando a democracia, a

república e o estado de direito no Brasil. Belo Horizonte: UFMG, 2019.

BARGAS, Janine; MAIA, Rousiley. Teoria do reconhecimento e interações cotidianas: o caso das lutas dos quilombolas do Pará. Contracampo, Niterói, v. 38, n. 2, p. 85-98, ago./nov. 2019. BENNETT, L.W.; LIVINGSTON, S. The disinformation order: Disruptive communication and the decline of democractic institutions. European Journal of Communication, Thousand Oaks, v. 2, n. 33, 2018.

BEVIR, M. Democratic governance: Systems and radical perspectives. Public administration

review, Washington, D.C., v. 66, n. 3, p. 426-436, 2006.

BIROLI, F. Reação conservadora, democracia e conhecimento. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 61 n. 1, p.83-94, 2018.

BOLSONARO. Bolsonaro, c2019. Página inicial. Disponível em: https://www.bolsonaro.com. br/?fbclid=IwAR3dF2FDcHZiVC8gKgTCgHzmKAB2w0UgTP0P7xtoeddZlbekzYJvxMQ9Grk. Acesso em: 13 jan. 2020.

BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Proposta de Governo. Divulgação de Candidaturas e Contas Eleitorais, Brasília/, DF, 2018. Disponível em: http://divulgacandcontas.tse.jus.br/ candidaturas/oficial/2018/BR/BR/2022802018/280000614517//proposta_1534284632231. pdf. Acesso em: 13 jan. 2019.

CAL, D. Comunicação e trabalho infantil doméstico: política, poder, resistências. Salvador: Edufba: Compós, 2016.

CHADWICK, A. The hybrid media system: politics and power. Oxford: Oxford University Press, 2017.

CHADWICK, A.; DENNIS, J.; SMITH, A. P. Politics in the age of hybrid media: Power, systems, and media logics. In: BRUNS, A. et al. (ed.). The Routledge companion to social media and

politics. Abingdon: Routledge, 2015. p. 7-22.

CURATO, N; HAMMOND, M; MIN, J. B. Deliberative democracy in dark. In: CURATO, N.; HAMMOND, M.; MIN, J. Power in Deliberative Democracy. New York: Palgrave, 2019. p.137-165.

DAHLGREN, P. Media, Knowledge and Trust: The Deepening Epistemic Crisis of Democracy.

Javnost – The Public, 2018.

DELLA PORTA, D. Bridging research on democracy, social movements and communication.

In: CAMMAERTS, B.; MATTONI, A.; MCCURDY, P. (ed.). Mediation and Protest Movements.

DELLA PORTA, D.; DIANI, M. Social Movements: an introduction. Padstow: Wiley-Blackwell, 2006.

DERANTY, J. P. D. Beyond Communication: a Critical Study of Axel Honneth’s Social Philosophy. Leiden: Brill, 2009.

DIAMOND, L. Facing Up to the Democratic Recession. Journal of Democracy, Washington, D.C., v. 26, n. 1, p. 141-155, 2015.

DRYZEK, J; DUNLEAVY, P. The conservative reaction. In: DRYZEK, J; DUNLEAVY, P. Theories

of the democratic state. Hampshire: New York: Palgrave, 2009. p. 269-288.

DÜTTMANN, A. G. Between cultures: Tensions in the struggle for recognition.

In: DÜTTMANN, A. G. (ed.). Between Cultures: Tensions in the Struggle for Recognition. London: Verso, 2000. p. 140-166.

FORST, R. Os limites da tolerância. Novos estudos – CEBRAP, São Paulo, n. 84, p.15-29, 2009. FRASER, N. Social justice in the age of identity politics: Redistribution, recognition, and participation. In: FRASER, N.; HONNETH, A. (ed.). Redistribution or Recognition? A Political-

philosophical Exchange. New York: Verso, 2003a. p. 7-109.

GAMSON, W. Talking Politics. Cambridge: New York: Cambridge University Press, 1992. GARCÊZ, R. L. O.; MAIA, R. C. M. The struggle for recognition of the deaf on the Internet: The political function of storytelling. Communication, Politics & Culture, Melbourne, v. 42, p. 45-64, 2009.

HABERMAS, J. Intolerance and Discrimination. International Journal of Constitutional Law, New York, v. 1, n. 1, p. 2-12, 2003.

HAY, C. Why we hate politics. Cambridge: Polity Press, 2007.

HONNETH, A. The I in We: Studies in the Theory of Recognition. 1 edition ed. Cambridge UK; Malden, MA: Polity, 2012.

HONNETH, A. luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. Tradução Luiz Repa. São Paulo: Ed 34, 2003a.

HONNETH, A. O direito da liberdade. Tradução Saulo Krieger. São Paulo: Martins Editora, 2017.

HONNETH, A. Rejoinder. In: PETHERBRIDGE, D. (ed.). Axel Honneth: Critical Essays: With a Reply by Axel Honneth. Leiden, BO: Brill, 2011. p. 391–426.

HONNETH, A. Redistribution as Recognition: a response to Nancy Fraser. The point of recognition: a rejoinder to the rejoinder. In: FRASER, N.; HONNETH, A. (org.) Redistribution

or Recognition: a political philosophical exchange. Nova York: Verso, 2003b. p. 110-59.

HONNETH, A. The Struggle for Recognition: The Moral Grammar of Social Conflicts. Cambridge: Polity Press, 1996.

INNES, A. Hungary’s Illiberal Democracy. Current History, Philadelphia, v. 114, n.770, p.95–100, 2015.

ILLING, S. Fareed Zakaria Made a Scary Prediction About Democracy in 1997 — and It’s Coming True. Vox, [s. l.], July 4. 2017. Disponível em: https://www.vox.com/

conversations/2017/1/18/14250364/democracy-liberalism-donald-trump-popu-lism-fareed- zakaria-europe -fascism. Acesso em: 25 set. 2019.

JOAS, H. A sacralidade da pessoa: nova genealogia dos direitos humanos. São Paulo: EdUnesp, 2012.

LEVITSKY, S.; ZIBLATT, D. How Democracies Die? New York: Crown Publishing, 2018. MAIA, R. C. M. Mídia e lutas por reconhecimento. São Paulo: Paulus, 2018a. MAIA, R. C. M. Deliberative Media. In: BÄCHTIGER, A.; DRYZEK, J.; MANSBRIDGE, J.; WARREN, M. E. (org.). The Oxford Handbook of Deliberative Democracy. Oxford: Oxford University Press, 2018b, v. 1, p. 348-364.

MAIA, R. C. M. Politicization, New Media, and Everyday Deliberation. In: FAWCETT, P.; FLINDERS, M.; HAY, C.; WOOD, M. Anti-Politics, Depoliticization, and Governance. Oxford: Oxford University Press, 2017.

MAIA, R. C. M. Recognition and the media. New York: Palgrave Macmillan, 2014.

MAIA, R. C. M; GARCÊZ, R. L. O. Recognition, feelings of injustice and claim justification: a case study of deaf people’s storytelling on the internet. European Political Science Review, Cambridge, v. 5, p. 1-24, 2013.

MENDONÇA, R. F. Recognition and Social Esteem: A Case Study of the Struggles of People Affected by Leprosy. Political Studies, Londres, v. 59, p. 940-958, 2011,

MENDONÇA, R.F. Democracia e desigualdade: as contribuições da teoria do reconhecimento. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, DF, v. 9, p.119, 2012.

MENDONÇA, R. F. What if the Forms of Recognition Contradict Each Other? The Case of the Struggles of People Affected by Leprosy in Brazil. Constellations, New York, v. 21, 2014. p. 32-49.

MIGUEL, L. F. A reemergência da direita brasileira. In: GALLEGO, E. S. O ódio como política: a reinvenção das direitas no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2018. p. 17-27.

MOUNK, Y. O povo contra a democracia: por que nossa liberdade corre perigo e como salvá-la. Tradução Cássio de Arantes Leite, Débora Landsberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

MUDDE, Cas. Populist Radical Right Parties in Europe. Cambridge: Cambridge University Press, 2007.

NORRIS, P. INGLEHART, R. Cultural Backlash: Trump, Brexit and authoritarian populism. Cambridge: Cambridge University Press, 2019.

PENNA, F. O discurso reacionário de defesa do projeto “Escola sem Partido”. In: SOLANO, E. (org.). O ódio como política. São Paulo: Boitempo Editorial, 2018. p. 109-113

PEREIRA, M. G. Intolerância e ódio no cibermundo: observações sobre comentários gerados a partir de uma imagem sobre identidade e gênero no Facebook. Revista Temática, João Pessoa, v. 13, n.1, 2017.

PIAIA, V; ALVES, M. Abrindo a caixa preta: Análise exploratória da rede bolsonarista no WhatsApp. In: COMPOLÍTICA, 2019, Brasília, DF. Anais [...] Rio de Janeiro: Associação Brasileira de Pesquisadores em Comunicação e Política, 2019.

PINHEIRO-MACHADO, R.; SCALCO, L. M. Da esperança ao ódio: a juventude periférica bolsonarista. In: SOLANO, Ester (org.). O ódio como política. A reinvenção das direitas no Brasil. 1 ed. São Paulo: Boitempo, 2018.

POLYAKOVA, A.; TAUSSIG, T.; REINERT, T. Part 1: Defining the illiberal toolkit. In: POLYAKOVA, A. et al. The Anatomy of Illiberal States: Assessing and Responding to Democratic Decline in Turkey and Central Europe, Washington, DC: The Brookings Institution, 2019. Disponível em: https://www.brookings.edu/wp-content/uploads/2019/02/ illiberal-states-web.pdf. Acesso em: 17 dez. 2019.

RUNCIMAN, D. How Democracies End. New York: Basic Books, 2018.

SMITH, M. Brewster. Foreword. In: KIRSCHT, J. P.; DILLEHAY, R. C. Dimensions of

Authoritarianism: a Review of Research and Theory. Lexington: University of Kentucky Press,

1967. p. v–ix.

SOLANO, E. A bolsonarização do Brasil. In: ABRANCHES, Sérgio et al. Democracia em risco? 22 ensaios sobre o Brasil hoje. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. p. 307-322.

VAN PROOIJEN, J. W.; KROUWEL, A. P. M. Extreme political beliefs predict dogmatic intolerance. Social Psychological & Personality Science, Eastleigh, v. 8, p. 292–300, 2016.

WAISBORD, S. The elective affinity between post-truth communication and populist politics.

Communication Research and Practice, Canberra, v. 4, n. 1, p. 17-34, 2018.

WOOD, M.; FLINDERS, M. Rethinking depoliticisation: beyond the governmental. Policy &

Politics, Bristol, n. 42, v. 2, p. 151-170, 2014.

WOOD, M. Politicisation, depoliticisation and anti-politics: Towards a multilevel research agenda. Political Studies Review, Thousand Oaks, v. 14, n. 4, p. 521-533, 2016.

ZURN, C. F. Introduction. In: BUSCH, H.-C. S.; ZURN, C. F. (ed.). The Philosophy of

Recognition: Historical and Contemporary Perspectives. Lanham, MA: Lexington Books,

Documentos relacionados