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A vítima e o testemunho

A pergunta que a vítima faz a si é: “por que sofro?”. A busca pela compreensão dos motivos pelo qual se sofre acompanha a filosofia da história na observância à dimensão temporal da existência humana. No caso do sofrimento, a culpa sobre o Outro (ressentimento) ou sobre si (má-consciência) é questionada para a resposta ser dada. Em caso de ressentimento sobre o Outro, o sofrimento não apresenta finalidade que não seja a vingança; no caso da culpa sobre si, o sofrimento é uma forma de pagar uma dívida com Deus ou a sociedade e, por isso, caracteriza-se pela proposição de mudança do sofredor. Na pós-modernidade é o bem-estar do indi- víduo que passa a ser referenciado como objeto sagrado. Ninguém deveria sofrer pelo todo porque o passado nos ensinou que o sofrimento, além de não passar, não

contribuiu para o fim das atrocidades humanas, as quais apresentaram seu grande espetáculo de horror na Shoah.5

Essa mudança de paradigma do sofrimento mostra a sua face pública. Embora sempre tenha existido, ficava limitado à esfera privada do sofredor. Foi especial- mente a questão dos refugiados da Segunda Guerra Mundial o limite para ONU a criar a Convenção de 1951, cuja finalidade estaria na proteção aos refugiados e a possibilidade de recomeçarem a vida após eventos traumáticos. Assim, o sofrimen- to é redimensionado à esfera pública, aproximando a fatores políticos dessa nova configuração do sofrer, como advertem Fassin e Rechtman (2009).

Uma das demonstrações de abertura ao sofrimento pelo social é a despersona- lização. Fassin (2011) argumenta que o acontecimento traumático só ganha proe- minência se for reconhecido pelos demais, como uma condição a ser partilhada. A Shoah proporciona essa reflexão, pois, ao acabar a guerra, as vítimas do nazis- mo pouco foram ouvidas e pouco falaram imediatamente. Também foram pouco reconhecidas como as principais personagens do “evento-limite” do século XX, em detrimento dos heróis de guerra que passariam a ser relembrados a posteriori no papel dos veteranos de guerra. Em É isto um homem?, (LEVI, 2013) lançado em 1947, Primo Levi questiona a humanidade daqueles corpos sujeitos à mortificação e à reificação que sobreviveram ao nazismo. Quando apareceram para a socieda- de, eles não podiam ser reconhecidos e partilhados pelos indivíduos-espectadores. Apenas anos depois as primeiras vozes, inclusive a de Levi, puderam ser ouvidas e deram início a um tempo de testemunhos e reconhecimento dessas vítimas. Entre as vozes apresentavam-se pessoas comuns cujos problemas cotidianos eram atra- vessados pela Shoah. É notório o exemplo de Anne Frank, que narra em seu diário a tragédia em meio a seu desenvolvimento pubertário e cujo sofrimento serve como projeção a um grupo ou uma classe de espectadores. (FASSIN; RECHTMAN, 2009) Essa dimensão corporal conecta o indivíduo sofredor com as testemunhas e es- pectadores. A mudança de corpos reificados para corpos normatizados aciona com mais facilidade o mecanismo da compaixão pela associação. Mas é também pela característica social do sofrimento, e não apenas como sentimento individual, que

5 Para os judeus, a palavra mais adequada para a explicar o que foi o Holocausto. Enquanto este significa um sacrifício da vida ligada ao universo religioso, a expressão Shoah representa calamidade e, por isso, é mais condizente ao que foram submetidos os judeus no nazismo. (DANZINGER, 2007)

o corpo refugiado passa a ser enxergado pela compaixão e não apenas como força de trabalho, como afirma Fassin (2001). No caso de Kaysar Dadour, o sofrimento causado pela situação de refúgio atingiu um homem de classe média, branco, boni- to e, por isso, a associação pela compaixão pode ser mais facilmente exercitada pela opinião pública. Dessa forma, o sofrimento passa a ser “modo de reconhecimento, inclusive jurídico e diplomático, e propicia uma ‘política do corpo’ baseada na com- paixão pelo sofrimento alheio. É preciso estar sofrendo para ser aceito, e sofrendo da maneira esperada pelo ‘outro’.” (DANZINGER, 2007, p. 156)

A maneira esperada da qual Danzinger fala é inspirada na afirmação de Fassin (2001), o qual revela que a diminuição da concessão de asilos políticos na França na década de 1990 ocorreu paralelamente ao aumento do reconhecimento hu- manitário dos refugiados. Para ele, a integridade corporal do refugiado passa a ser afortunada na medida em que doenças são diagnosticadas; e desafortunada quando a integridade corporal não é ameaçada, embora haja riscos decorrentes da política. A crítica de Fassin, ainda em suas últimas obras, localiza-o na confron- tação entre o aparato político – e, por isso, social – da concessão de refúgio e das vítimas em geral pela via de uma “razão humanitária” que diagnosticaria a partir do aparato pessoal a “política do corpo” aceitável, da compaixão e seu permanente lastro de piedade.

No livro The Empire of Trauma, Fassin e Rechtman (2009) parecem conside- rar a política piedosa sobre o corpo em sua crítica ao “governo humanitário”, que envolve todos os tipos de instituições sociais e peritos com a finalidade de ocultar a dimensão da injustiça e da desigualdade pela tragédia e o infortúnio das vidas sofredoras. Harrell-Bond (2002) levanta a mesma crítica ao afirmar que organi- zações humanitárias podem oferecer um tratamento infantilizado aos refugiados, ou seja, lidando como “incapazes de pensarem por si e de decidirem os rumos de suas vidas, contribuindo para tornar um refugiado alguém indefeso, sem iniciativa: alguém em quem a caridade pode ser praticada.” (DANZINGER, 2007, p. 157)

As críticas sobre o trato aos sofredores ganham novos contornos quando o fator testemunhal é colocado em voga. Mesmo que para Fassin e Rechtman (2009) a dor do indivíduo possa ser vista de forma piedosa, o fato de sofrer não é mais acei- tável na pós-modernidade, pois tal estado mental existe por alguém que faz sofrer e, por isso, se causada por outros indivíduos, pode ser evitável. A fala testemunhal passa a ser não só uma forma de tratamento – ainda que o trauma seja incurável –

para a vítima, como também uma denúncia do agressor, seja ele um indivíduo ou um sistema político. (VAZ, 2014)

A denúncia dos abusos cometidos na Guerra do Vietnã, por exemplo, trans- formou os redentores do sofrimento nos seus causadores. Ainda que fossem cum- pridores de ordens, a exemplo de Adolf Eichmann, os “heróis de guerra” execu- taram-nas a mando daqueles que produzem o mal. A decorrência de uma era de testemunhos em sua forma denunciante expõe a barbárie não acontecendo apenas isoladamente, como um “evento-limite”; de outro modo, encara o agressor menos em sua singularidade histórica e mais na sua condição de existência em um regime de injustiças e desigualdades no qual o ser humano é sua maior vítima.

A narrativa histórica se empodera do testemunho, cujo narrador é o sobrevi- vente da barbárie cometida em um movimento que vai da compreensão à experiên- cia. A argentina Beatriz Sarlo (2013), que se debruça sobre este movimento narrati- vo a partir das ditaduras latino-americanas, afirma que a “compreensão” é própria ao universo acadêmico e, apresentando causalidades múltiplas, perde sua potência frente àquela narrativa massiva, de grande circulação e que apresenta certa “nitidez argumentativa” que recorre ao relato. Em sua acepção analítica, o testemunho não é ícone da verdade, mas o recurso mais importante para a reconstituição do passado, cujo valor da primeira pessoa e seu imediatismo da voz e do corpo alimentam uma confiabilidade sempre suspensa pelas armadilhas da própria subjetividade.

O testemunho de Kaysar Dadour é hibridizado pela midiatização do seu trauma. Também por escolha pessoal, as narrativas de sofrimento costumavam ser sobrepostas por momentos descontraídos no reality show. Em sua página no Instagram, isso se evidencia: postagens sobre o refúgio estão vinculadas à esperan- ça humanitária e a grande maioria delas remete à sua vida pós-fama. De alguma forma, a análise do discurso testemunhal sugere uma superação de tempos difíceis e, consequentemente, uma adaptação à sua nova casa.

Se durante o século XX os regimes totalitários e as guerras geopolíticas escalo- naram a régua do sofrimento, no século XXI, a intensificação de fluxos de pessoas passou a conduzir novos dramas. Quando Bergman (2018) afirma que estamos no século das migrações, ele reaproxima o momento atual ao intenso fluxo de pessoas experimentado entre os séculos XIX e XX e também argumenta que este momento das migrações se caracteriza “[…] em parte ao esgotamento de recursos, mudanças geopolíticas de poder, inovação tecnológica e, consequentemente, uma renaciona-

lização de países que historicamente são considerados receptores de imigrantes.”6

(BERGMAN, 2018, p. 372, tradução nossa) Junto a ele, o alerta vem por outras lide- ranças humanitárias. Alexander Betts (2015), diretor do Refugees Studies Centre, vinculado à Universidade de Oxford, sentenciou que os deslocamentos de refugia- dos definirão o século XXI, tendo em vista duas questões em especial: a fragilida- de dos estados e a mobilidade intensificada, motivada pela globalização; e o Papa Francisco, que correntemente tem chamado a situação de imigrantes e refugiados como “o drama do século XXI”, já alertou que “ninguém pode ficar indiferente perante este sofrimento” (PAPA FRANCISCO…, 2019) e que tais vítimas “não são peões no tabuleiro de xadrez da humanidade”, (OS MIGRANTES…, 2013) referin- do-se às hierarquias geradas pelas estratificações sociais e territoriais.

Vítima ou celebridade?

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A equação não é impossível de ser resolvida. Em diversos casos, vítimas se tor- naram personalidades públicas ao levantarem a voz sobre as injustiças cometidas sobre elas. Um dos casos mais notórios é o de Maria da Penha Fernandes, que lutou para que seu ex-companheiro fosse condenado em decorrência de atentado contra sua vida. Dando nome à lei que busca proteger todo um grupo social, Maria da Penha é reconhecida por seus pares pela ousadia de testemunhar, também por ter sua experiência reconhecida por ampla parcela da população. No entanto, a dife- rença está na compreensão da celebridade. Se a “fama” de Maria da Penha não entra no campo da espetacularização pela ficção, a figura de Kaysar Dadour recorre a esse elemento para se aproximar de uma realidade não vivenciada pelo grupo social ao qual se integra.

6 “[...] due in part to resource depletion, geopolitical power shifts, technological innovation, and, as a consequence, a renationalization of countries that have historically considered themsel- ves as immigrant-receiving”.

7 Celebridade e fama são expressões justapostas. A raiz latina da primeira vem do termo cele-

brem, cuja conotação significa também “fama”, e o sentido de “estar aglomerado”. Segundo

Paula Simões (2013, p. 106), “a partir das origens do termo, podemos definir a celebridade como uma pessoa famosa e singular, reconhecida por um público e cuja fama pode variar con- forme os ‘sentimentos humanos’, ou seja, segundo as impressões do público que a reconhece”.

Embora o Instagram tenha suspendido o número de curtidas das postagens, levantamentos de rotina realizados pelos autores no perfil pessoal do refugiado apontaram que as postagens relacionadas ao tema do refúgio eram menos apre- ciadas pela audiência do que outras postagens, cujas imagens tinham conotação pessoal. Embora não seja clara a relação de Kaysar Dadour com a ACNUR, a agên- cia da ONU sobre refúgio, as postagens relacionadas ao tema apresentam a “cre- dencial” da organização global. Seria o contraponto ao tratamento infantilizado dado por estas organizações aos refugiados, como acusa Harrell-Bond (2002)? A ACNUR, por sua vez, utiliza-se do “capital de visibilidade” (HEINICH, 2012) ad- quirido pelo refugiado como forma de agregar valor e empatia à causa, comum a ele e aos objetivos da organização social. Sobre capital de visibilidade, Freire Filho e Lana (2014) explicam:

O capital de visibilidade, segundo Heinich (2012), é um bem durável que pode ser administrado — lucrado, vendido, acumulado, trans- mitido e convertido — para a sobrevivência dos indivíduos a partir da avaliação mensurável daquilo que pode ser exposto. Analisando o conceito de capital simbólico, de Pierre Bourdieu, Heinich argumen- ta que o capital de visibilidade é regulado por normas econômicas particulares. Após a crescente disseminação de imagens no século XX, a definição das hierarquias sociais passa a ser afetada pelas varia- ções do capital de visibilidade. (FREIRE FILHO; LANA, 2014, p. 17)

Campanella e demais autores (2018) explicam, com base em diversos estudos sobre as celebridades, que a construção desse perfil foi sendo modificada ao longo do século XX. Em meados da década de 1940, pesquisas provenientes da Escola de Frankfurt iniciadas por Lowenthal (1944) inferiram que as figuras públicas da época estavam ligadas a “ídolos de produção”, ou seja, personalidades vinculadas ao mundo dos negócios, da política e homens de sucesso. Décadas depois, a indústria do entretenimento se aprofundou e as figuras públicas passaram a se vincular a “ído- los do consumo”, com descrições individualizadas que substituíram as narrativas edificantes das trajetórias profissionais. Mais recentemente, e com a amplificação da midiatização social e a desregulamentação dos meios de comunicação, especial- mente com os reality shows e as web-celebridades, aparece uma nova composição da celebridade que mescla o entretenimento e a orientação produtiva, sendo as celebri-

dades seus próprios produtos, afirmam Duffy e Pooley (2019), no que eles chamam de “flattened celebrity culture”8 (p. 27). Atuando muitas vezes como personalidades

de nicho, ou seja, expressivas majoritariamente dentro de determinado grupo, essas celebridades são disputadas por marcas e mídias de massa pela potencial sensação de intimidade gerada no comportamento dos consumidores.

É a partir dessas novas configurações que podemos refletir sobre o caso do refugiado sírio. Sua emersão à fama se deu na participação de um reality show, um produto de mídia de massa, e em 2019 como ator na telenovela Órfãos da Terra, da mesma Rede Globo, outro produto de massa, cuja trama abordou o tema do refúgio e lhe conferiu o prêmio de “Ator Revelação” de 2019 no quadro Os Melhores do Ano do Domingão do Faustão.

Embora haja referências ao humanitarismo buscado pelas organizações que atuam sobre o tema, já referimos anteriormente não ser este o foco principal da sua audiência, ao menos no Instagram. De todo modo, encontramos um paralelo curioso. Não foi apenas a simpatia do ex-participante do Big Brother Brasil que o fez superar as expectativas de fama da maioria dos jogadores desse “game humano”; seu sucesso se consolidou posteriormente, tendo sua história de vida alimentada na esperança de trazer sua família ao Brasil, o que rendeu ampla discussão na eta- pa final da edição do programa. Se Kaysar Dadour surgiu como um produto de interesse ao espetáculo televiso por sua característica de refugiado e pelo estereóti- po árabe (seu papel na telenovela era de um capanga de um sheik inescrupuloso), como um “ídolo de consumo humanitário”, cabe refletirmos se ele continua sendo um refugiado após se tornar uma celebridade.

A vítima refugiada e o distanciamento do outsider:

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