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“Não me escutaram”: os crimes de Marinésio como uma questão de gênero

“Os assassinatos de Marinésio são crimes de ódio às mulheres?”, conjecturou o tí- tulo de uma reportagem do Metrópoles, de autoria de Érica Montenegro e Manoela Alcântara. O texto foi publicado na seção do site dedicada, exclusivamente, ao tema da violência contra a mulher. Seu objetivo é “alertar a população e as autorida- des sobre as graves consequências da cultura do machismo que persiste no país”. (FUZEIRA, 2019) Coerente com esta linha editorial, a matéria propôs o termo “fe- minicídio” para tipificar os crimes cometidos por Marinésio. Todavia, a própria reportagem ressalvou que os assassinatos de Letícia e de Genir apresentavam uma particularidade: não estavam inseridos em uma conjuntura de violência domésti- ca, ao contrário dos 46 crimes registrados como feminicídios desde a criação da normativa, em 2015. Sendo assim, os dois homicídios só poderiam ser incluídos na categoria jurídica de feminicídio se as autoridades policiais decidissem enqua- drá-los no segundo inciso da Lei nº 13.104/15, que prevê a relação do crime com “menosprezo ou discriminação à condição de mulher”.

A matéria salientou a conveniência de que o crime fosse, de fato, registrado como feminicídio: “é uma marcação política sobre a necessidade de iniciativas pú- blicas que promovam a igualdade entre os sexos”. Para comprovar a justeza de tal classificação, as autoras da reportagem do Metrópoles se valeram do parecer de pes- quisadoras que realçaram a importância da questão de gênero nos referidos crimes (o único exemplo de toda a amostra analisada em que especialistas deste campo foram convidadas a pronunciar-se). Na matéria, a pesquisadora e militante femi- nista Ana Liési Thurler opinou: “É muito importante para nós que a violência de gênero seja admitida”. Thurler destacou, ainda, que a violência acontece tanto no espaço privado, entre pessoas que se conhecem, como no espaço público. Na mes- ma reportagem, a professora Valeska Zanello, do Departamento de Psicologia da Universidade de Brasília, também enfatizou a relevância do gênero como categoria de análise para o caso. Se as vítimas eram sempre mulheres, argumentou Zanello, existiu uma desvalorização do sexo feminino por parte do agressor. Para a militante feminista Analine Specht, os assassinatos foram claramente crimes de ódio, porque consistiram em uma tentativa de subjugação das mulheres.

Vale notar que a redação da Lei do Feminicídio no Brasil não inclui o termo “ódio”. Analine Specht aludiu, portanto, a uma categorização utilizada em outros países, notadamente nos Estados Unidos. O início da discussão sobre crimes de ódio pode ser atribuído aos movimentos sociais dos anos 1960, que lutaram pelos direitos de minorias, chamando a atenção para a violência sofrida por estes grupos. A primeira lei relacionada à questão foi o Hate Crimes Statistics Act, introduzido, em 1990, nos Estados Unidos, que solicitava aos agentes de justiça do país a coleta de dados sobre crimes de ódio. O diferencial destas infrações seria o fato de terem sido praticadas por causa da raça, religião, orientação sexual ou etnia da vítima. A implementação deste banco de dados foi o prelúdio para a introdução de uma norma punitiva, em 1994. O Hate Crimes Sentencing Enhancement Act instaurou um aumento das penas nos delitos em que a vítima é escolhida por pertencer a determinado grupo identitário.

O ódio pode desempenhar, de fato, mais do que um papel figurativo no de- bate sobre agressões contra minorias. Para isso, é necessário conceituá-lo como uma “emoção duradoura” (CHAUVAUD, 2014, p. 15) e entender as emoções como forma de dramatizar, fortalecer, desafiar ou alterar hierarquias sociais e relações de poder. (AHMED, 2014; COELHO; REZENDE, 2010; MILLER, 1997) O ódio deve ser visto, neste caso, como uma aversão que produz efeitos sobre o outro,

aniquilando-o física ou simbolicamente (por meio de insulto, calúnia, humilhação, banimento etc.), com o intuito de restaurar ou construir o mundo idealizado pelo sujeito que odeia. (KOLNAI, 1998, 2007) Assim, mais do que escolher a vítima devido a seu pertencimento a uma minoria, o sujeito que odeia detecta a assime- tria de poder existente entre ele e a vítima e deseja reforçá-la. Os crimes de ódio constituem, portanto, parte das relações de poder que diariamente marginalizam e oprimem determinados grupos. (CHAKRABORTI; GARLAND, 2009)

Com base nesta premissa, Perry (2001) define crimes de ódio como atos de violência e intimidação, geralmente direcionados a grupos já estigmatizados e ex- cluídos. Este tipo de delito seria, pois, capaz de fortalecer hierarquias por meio da intimidação exercida contra aqueles que, de alguma maneira, tenham saído ou ameacem retirar-se dos seus “devidos lugares” na estrutura social.

Conforme assinalam Iganski e Sweiry (2003), nem todos os perpetradores de crimes de ódio se comportam com agressividade de maneira constante. A maioria das pessoas que comete esta espécie de infração tende a ser vista, em realidade, como cidadão comum. De modo geral, estes indivíduos compartilham preconcei- tos e ideias pejorativas afirmadas por muitos outros membros da sociedade e, em determinado momento de suas vidas, agem no sentido de asseverar estas crenças e de rebaixar o outro. É justamente devido à função depreciativa dos crimes de ódio que, segundo Perry (2001), a violência contra a mulher representa um caso clás- sico deste tipo de delito. Ao vitimizar uma pessoa, aterroriza-se, por tabela, toda uma coletividade: a ameaça de violência acompanha as mulheres continuamente e é uma força que as induz a controlar a própria conduta.

Essa concepção de crime de ódio leva necessariamente à discussão sobre mi- soginia. Manne (2018) argumenta, com propriedade, que se trata de um fenômeno político, parte integrante de sistemas ou ambientes sociais que necessitam da impo- sição e do controle de normas e expectativas. Assim, o ponto de convergência entre as variadas formas de hostilidade sofridas pelas mulheres é a participação em uma estrutura caracterizada por conceber e punir como inimigas ou ameaças aquelas que não se adequam aos padrões firmados pelos homens.

A violência dos agressores, porém, não costuma ser vista como parte de rela- ções de poder que visam a assegurar a continuidade das posições vigentes, mas sim como um ato desviante. Isso ocorre porque é difícil comprovar a aversão de deter- minado sujeito a todas as mulheres. Na verdade, é muito comum que, além de não demonstrar hostilidade, criminosos misóginos sejam capazes de ter relações amis-

tosas com algumas mulheres em seu entorno. Não por acaso, diversas reportagens sobre o caso Marinésio destacaram as virtudes mencionadas por sua esposa – “um marido ótimo, carinhoso e trabalhador”. (NASCIMENTO, 2019)

O bom relacionamento de um misógino com algumas mulheres próximas pode ocorrer, em muitos casos, porque elas lhe são úteis ou até mesmo indispensá- veis. De fato, um dos apanágios da misoginia é a separação entre mulheres “boas” e “más”. (RICHARDSON-SELF, 2018) Nutrir sonhos acerca da pureza feminina e agir de modo gentil com companheiras e parentes consideradas agradáveis é um hábito que, na prática, é utilizado pelo homem misógino para justificar as agressões contra as mulheres que não atingem os mesmos elevados padrões de conduta.

A misoginia deve ser definida, em síntese, como um método ou um conjunto de métodos usados para manter as mulheres em seus “devidos lugares”. (GING; SIAPERA, 2019) O senso comum, entretanto, tende a compreendê-la como um atributo de agentes individuais, um sentimento presente no interior do sujeito, sem relação com a cultura e o entorno social. Manne (2018) chama esta visão de “con- cepção ingênua” da misoginia – porém, este ponto de vista “ingênuo” traz sérias consequências políticas, na medida em que limita a classificação de crimes de ódio contra mulheres apenas a homens claramente hostis a mulheres de modo geral. Entendido como uma substância inefável ou fator puramente psicológico, o ódio se converte em algo extremamente complexo ou até impossível de identificar e de ser imputado a uma conduta. Sendo assim, a ideia de um crime motivado por mi- soginia não poderá ser aplicada enquanto não se compreenda o ódio e o ódio às mulheres como ferramentas de poder e de controle.

Possivelmente, foi esta a razão de as autoras da reportagem “Os assassinatos de Marinésio são crimes de ódio às mulheres?” terem optado por manter o tom de questionamento, em vez de afirmar que os delitos de Marinésio constituem crimes de ódio. Apesar de defender a categorização dos assassinatos como feminicídios, a notícia ressaltou que os delegados encarregados dos casos cogitavam enquadrá-los como homicídio e latrocínio (roubo seguido de morte) e não apresentou um posi- cionamento crítico sobre as consequências políticas destas escolhas.

Desse modo, após desenvolver uma argumentação que parecia confirmar os assassinatos cometidos por Marinésio como crimes de ódio, a reportagem ter- minou por colocar em dúvida até mesmo a sua classificação como feminicídios. Aparentemente, a opinião das especialistas em gênero é interessante, mas não se

encontra no mesmo patamar do conhecimento jurídico, que detém a última pala- vra sobre a vida e a morte das mulheres, e não pode ser questionado.

O único momento em que houve contestação do aparato jurídico-policial foi por meio da declaração de uma mulher que sobreviveu a um ataque de Marinésio. A vítima não identificada, de 42 anos, contou que registrara a ocorrência e fizera exame de corpo de delito, inutilmente, já que a investigação para encontrar seu agressor não prosseguiu: “não me escutaram [...] precisaram morrer duas mulheres para que fossem atrás dele”. (PERES, 2019)

Tal questionamento pode ser relacionado ao que Lagarde (2004) avalia como um elemento central do feminicídio: a omissão do Estado nas tarefas de investi- gação e de punição de agressores. Segundo a autora, “para que aconteça o femi- nicídio concorrem, de maneira criminosa, o silêncio, a omissão, a negligência e a conveniência de autoridades encarregadas de prevenir e erradicar esses crimes”. (LAGARDE, 2004, p. 5, tradução nossa)2 Esta perspectiva não foi desenvolvida,

contudo, na reportagem em questão, que se limitou a citar a fala da vítima e descre- ver a violência sofrida por ela – revelando, ainda, que Marinésio “teria dado uma escolha à vítima” ao agarrar seu pescoço e dizer: “ou você faz o que eu quero, ou morre agora”.

Outra reportagem também abordou a questão de gênero como fator relevante na análise dos crimes, embora não tenha citado especialistas ou militantes pelos direitos das mulheres nem confrontado a atuação policial. A matéria “17º feminicí- dio: caso Letícia choca, mas não surpreende”, de Willian Matos, publicada no portal

R7, classificou os assassinatos de Marinésio como feminicídios e citou nomes, ida-

des e datas de falecimento das 17 mulheres que haviam sido mortas do mesmo jeito em 2019. Além disso, forneceu diversas informações sobre a vítima mais recente de Marinésio, a advogada Letícia Curado, incluindo dados sobre a pós-graduação que cursava, seus planos de carreira e suas crenças religiosas.

Vale notar que Genir, a outra mulher assassinada por Marinésio, foi pouco mencionada nas matérias sobre o caso. Seu corpo só foi encontrado dez dias depois de seu desaparecimento, em estado avançado de decomposição, o que dificultou as análises dos peritos. O crime ocorreu em junho e teria ficado sem solução. Foi ape- nas por meio da investigação do desaparecimento de Letícia que a polícia chegou

2 “Para que se de el feminicidio concurren de manera criminal, el silencio, la omisión, la negli- gencia y la colusión de autoridades encargadas de prevenir y erradicar estos crímenes”.

ao assassino. Percebe-se, deste modo, a influência da classe social no tratamento da polícia em relação às vítimas, quadro que se refletiu nas reportagens. Genir pou- co aparece nas notícias; somos informados, apenas, de que ela trabalhava como auxiliar de limpeza, morava em Planaltina e tinha três filhos adultos. Por outro lado, as matérias concedem um espaço relativamente grande à história de Letícia, como depoimentos de seu esposo,3 descrições de sua personalidade4 e de suas con-

quistas pessoais,5 acompanhadas de diversas fotografias. As reportagens analisadas

não apenas ignoraram a disparidade do tratamento policial em função das classes sociais das vítimas como também contribuíram para fortalecer a percepção que determinadas vidas importam mais do que outras.

Existe, todavia, um assunto em relação ao qual as notícias adotaram uma pos- tura mais crítica: a ausência de políticas públicas de segurança direcionadas a mu- lheres. Durante a cobertura de um protesto contra as mortes de Letícia e Genir, o Correio Braziliense, com a matéria “‘Nenhuma a menos’: militantes protestam contra morte de Letícia e Genir”, e o Metrópoles, com “Na Rodoviária, mulheres se manifestam contra crimes de maníaco”, apresentaram entrevistas com mulheres que denunciaram a incapacidade do Estado de assegurar a liberdade feminina de ir e vir. Outra reportagem do Correio Braziliense, intitulada “Pesquisa da UnB analisa medo das mulheres de andarem a pé em Brasília”, aprofundou a discussão sobre o medo das mulheres de transitar pela cidade, respaldada por estudos de Adriana Souza, doutora em transportes pela Universidade de Brasília. A pesquisadora sa- lientou que os municípios foram planejados e construídos de um modo que per- petua o sentimento de insegurança entre as mulheres. Quando perguntada sobre o caso de Marinésio, Souza sublinhou que a questão não envolvia apenas a falta de uma oferta de transporte público eficiente, mas também o fato de o homem ver a mulher como alguém inferior e que ele pode controlar.

O receio das mulheres de utilizar o transporte público também foi pauta no

Metrópoles, na reportagem “Após descoberta de maníaco, medo ronda mulheres

nas paradas de ônibus”, mas com um viés diferente. Embora reunisse entrevistas de diversas mulheres, a reportagem não abordou, diretamente, a questão da violência

3 Ver em Galvão, Peres e Machado (2019). 4 Ver mais detalhes em Barbieri (2019).

de gênero. Isto se deu porque as entrevistadas, em suas respostas, demonstraram considerar que a proteção diante dos perigos da cidade é, em grande medida, uma responsabilidade individual.

Convém lembrar que a internalização da necessidade de proteção é uma ati- tude esperada quando se trata de crimes de ódio. Segundo Perry (2001), este tipo de crime tem como particularidade um caráter pragmático no sentido da consoli- dação de hierarquias sociais. Os danos dos crimes de ódio não são somente físicos ou financeiros nem se restringem ao indivíduo afetado – adquirem uma dimensão simbólica que alcança a comunidade à qual a vítima pertence, gerando sentimento de vulnerabilidade e de medo. De maneira semelhante, Ahmed (2014) salienta que os crimes de ódio são formas de cometer violência contra grupos inteiros de pes- soas por meio da ação sobre o corpo de um só indivíduo. Em outras palavras: ainda que apenas uma vítima seja atingida fisicamente, faz parte da maneira como o ódio opera que sua atuação se expanda e seja sentida por outras pessoas.

É neste sentido que Chakraborti e Garland (2009) caracterizam os crimes de ódio como “message crimes” – ou seja, crimes que funcionam como atos comuni- cativos, enviando uma mensagem a todo um coletivo. A partir da ideia de que “po- deria ser você”, pessoas com a mesma identidade da vítima se sentem em perigo, diferentes e indesejadas em determinado espaço.

É possível discernir este fato nas declarações das mulheres entrevistadas pelo

Metrópoles. A atendente do Ministério da Educação Juliane Fernandes, de 38 anos,

afirmou, por exemplo, que preferia ficar duas horas esperando um ônibus do que embarcar no carro de um desconhecido. A diarista Ozima Rodrigues, de 45 anos, queixou-se: “Agora está todo mundo proibido de pegar lotação lá em casa”. Verônica Rodrigues, de 23 anos, disse que evitava até mesmo aplicativos de transporte co- nhecidos: “É muita insegurança”.

Após estes depoimentos, entretanto, o foco da matéria começou a mudar: des- viou-se da discussão sobre a insegurança das mulheres ao transitar pela cidade, passando a concentrar-se na atitude de passageiros imprudentes – de ambos os sexos – que fazem uso de transportes não sancionados pelo governo. A Secretaria de Transporte e Mobilidade (Semob), por exemplo, informou que alertava a popu- lação para o perigo do transporte irregular, porque não há como saber se os moto- ristas respondem por processo criminal.

Cabe lembrar que Marinésio não dirigia automóveis como forma de ganhar a vida, mas sim como estratégia para abordar e violentar suas vítimas. Ainda assim,

a matéria, que havia iniciado com o objetivo de enfocar o medo das mulheres du- rante seu deslocamento pela cidade, terminou com referência à Lei nº 13.885/19, que aumentou o valor das multas para motoristas de transportes não sancionados pelo governo, e nada mencionou sobre a Lei nº 13.104/15, que regulamenta o crime de feminicídio.

Fica evidente, pois, que a questão de gênero, embora estivesse presente em al- gumas das matérias como fator que auxilia na compreensão dos crimes, acabou restrita a uma concepção superficial, que desconsiderou o papel do Estado e as divisões de classe. Pouco aprofundada, desde o início, a discussão sobre gênero se reduziu ainda mais quando foi colocada ao lado de outras pautas, como a oferta de transportes públicos.

No lugar de campanhas de conscientização sobre a opressão da mulher ou de políticas públicas direcionadas às cidadãs, foi discutida a necessidade de mais se- gurança pública e da oferta de transportes de maneira geral. Além disso, a solução jurídica proposta pelas autoridades policiais – e jamais questionada pelas matérias – foi classificar os crimes de Marinésio como homicídio ou latrocínio, não femini- cídio. Este tipo de enquadramento deixa em segundo plano a particularidade das vítimas – o fato de serem mulheres e a possibilidade de terem sofrido tais agressões justamente por serem mulheres em um mundo patriarcal.

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