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A posição da doutrina e da jurisprudência

PARTE II O DIREITO À PROTEÇÃO SOCIAL CONFIGURADO NO TRABALHO

4 Controvérsias que envolvem o assalariado na Previdência Social

4.2 O empregado e o dilema da sua caracterização como rurícola

4.2.2 A posição da doutrina e da jurisprudência

Pelos preceitos de natureza trabalhista estabelecidos na Lei 5.889/73, a caracterização do empregado como rurícola perfila-se, como regra geral, pelo enquadramento do empregador. Sendo este caracterizado como rural, rurícolas serão seus empregados que laborem no campo, ainda que não exerça atividades tipicamente rurais. Sem essa caracterização do empregador também não serão tidos como rurais seus empregados. Nessa linha de entendimento há, inclusive, a Súmula 196 do Supremo Tribunal Federal que diz:

“Ainda que exerça atividade rural, o empregado de empresa industrial ou comercial é classificado de acordo com a categoria do empregador.”170

Na doutrina existem divergências, embora predomine o entendimento de que a figura jurídica do empregador rural é fundamental para a caracterização do contrato de emprego de natureza rural. Para Nascimento, empregado rural é aquele que “... presta serviços em propriedade rural, continuadamente e mediante subordinação. Assim, será considerado como tal o trabalhador que cultiva a terra, que cuida do gado e o pessoal necessário à administração da empresa ou atividade rural.”171

Seguindo o critério dominante que determina as categorias profissionais no Brasil, Maurício Godinho Delgado enfatiza que,

(...) rurícola será o empregado vinculado a um empregador rural. O que

importa à sua classificação como rurícola ou urbano é o próprio posicionamento de seu empregador: sendo rural este, rurícola será considerado o obreiro, independente de seus métodos de trabalho e dos fins da atividade em que se envolve.172

Para Délio Maranhão e Luiz Inácio B. Carvalho, “é a natureza da exploração econômica do empregador, em que o trabalho é utilizado como fator de produção, que servirá para caracterizá-lo, ou não, como rural.”173

Semelhante raciocínio encontra-se em Sussekind que reconhece que nem todos que trabalham no campo são rurícolas dado à natureza da atividade econômica da indústria rural, e observa que o conceito de empregado rural decorre da prestação de serviço em empreendimento agro-econômico, que “... se dedique apenas ao primeiro tratamento dos

170 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Súmula 196. Disponível em: <http://www.stf.gov.br/portal/cms/ver

Texto.asp ?servico=jurisprudenciaSumula&pagina=sumula_101_200> Acesso em 18 de setembro de 2008.

171 NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Direito do Trabalho. 19. ed. rev. e atual. São Paulo, Saraiva,

2004. p. 944.

172 DELGADO, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho. 6. ed. São Paulo: LTr, 2007, p. 385.

173 MARANHÃO, Délio. CARVALHO. Luiz Inácio Barbosa. Direito do Trabalho. 17. ed., Rio de Janeiro:

produtos agrários, in natura, sem alterar sua natureza, de forma a retirar-lhe a condição de matéria-prima.”174

Há opiniões, contudo, que não se adequam ao sentido literal da legislação trabalhista rural. Osíris Rocha, após abordar o tema mediante um exame cronológico das legislações trabalhista e previdenciária aplicáveis à área rural, exemplifica diversos tipos de trabalhadores que mesmo trabalhando no campo não se caracterizam como empregado rural. Eis a conclusão deste autor:

Em síntese, não são empregados rurais os médicos veterinários, os engenheiros agrônomos, os administradores de empresas (...) e os zootecnistas. Também não o são os trabalhadores da construção civil (Dec.- lei n. 66/66), os pescadores (Dec.-lei n. 221/67) e os garimpeiros (Dec.-lei n. 227/67), os motoristas (categoria diferenciada) e os que trabalham em escritórios de fazendas além dos empregados em lojas aí estabelecidas, porque não exercem atividade rural e se submetem, pois, à classificação a que se refere o quadro de atividades examinado. 175

Seguindo o raciocínio pelo qual a maioria dos doutrinadores coloca a questão, bem como o que determina a Súmula 196 do STF, e considerando o modo como o setor produtivo vem se organizando no campo nos últimos anos, vislumbram-se duas situações em termos de proteção previdenciária para os trabalhadores que laboram nesse setor mediante vínculo empregatício. Uma é a incorporação de novos trabalhadores com funções não tipicamente rurais para serem protegidos pelas regras especiais aplicáveis aos trabalhadores rurais de um modo geral, no caso, a redução em cinco anos na idade de aposentadoria quando comparada à idade do segurado urbano. Seriam, assim, considerados empregados rurais todos aqueles trabalhadores que exercem suas funções em um imóvel rural ou prédio rústico, para empregador rural, mesmo que a atividade exercida não seja a de exploração direta da terra, como é o caso do empregado que trabalha no escritório da fazenda, o motorista, a cozinheira e tantos outros.

174 SÜSSEKIND, Arnaldo. Curso de Direito do Trabalho. 2. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.

p.159.

A outra situação tem um caráter inverso à primeira, ou seja, significa exclusão, pois retira da proteção especial concedida ao rurícola aqueles empregados que, embora estejam exercendo o labor rural, dessa condição acabam se descaracterizando por ter vínculo com empregador que explora a atividade agroindustrial para além da transformação primária da matéria prima extraída do campo. Veja que nesta situação estariam muitos assalariados rurais que trabalham, por exemplo, no corte da cana-de-açúcar ou em outras atividades penosas que certamente reduz a capacidade produtiva do indivíduo ao longo dos anos.

Em que pese à salutar discussão doutrinária e o entendimento inserto pelo Supremo Tribunal Federal na Súmula 196, temos na jurisprudência de nossos Tribunais novas visões sendo construídas, embora não haja um entendimento uniforme sobre o assunto em questão. Em matéria de Direito do Trabalho, a Orientação Jurisprudencial n.º 38/SDI do Tribunal Superior do Trabalho, que dispõe: "Empregado que exerce atividade rural. Empresa de reflorestamento. Prescrição própria do rurícola (Lei nº 5.889/1973, art. 10 e Decreto nº 73626/1974, art. 2º, § 4º)”176, constitui-se num marco importante de mudança de interpretação da regra rígida estabelecida na Lei 5.889/73, deixando em segundo plano para a caracterização rurícola do empregado a natureza da atividade agroeconômica do empregador quando esta for a industrialização da matéria prima. Nesse sentido, vem o Tribunal Superior do Trabalho pacificando o seguinte entendimento:

TRABALHADOR RURAL - CARACTERIZAÇÃO. EMPRESA QUE DESENVOLVE ATIVIDADES INDUSTRIAIS. Os trabalhadores rurais, disciplinados pela Lei n° 5.889/73 e pelo Decreto n° 73.626/74 (e normas complementares), merecem, com base em tal ordenamento, tratamento nitidamente distinto daquele outorgado aos trabalhadores urbanos. Diante do norte imposto pela O.J. 38/SDI, não há dúvidas quanto à qualificação

176 TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO. Orientação Jurisprudencial n.º 38/SDI . Disponível em:

profissional dos rurícolas, mesmo quando congregados à empresa que industrialize o seu produto final. Agravo de instrumento desprovido.177

EMPREGADO RURAL. CARACTERIZAÇÃO. NATUREZA DOS SERVIÇOS PRESTADOS. PRESCRIÇÃO. É rurícola o empregado que desenvolve atividades rurais em empresa de reflorestamento, sendo-lhe aplicável a prescrição prevista na alínea b do inciso XXXIX do art. 7º da Constituição Federal (...).178

TRATORISTA. EMPRESA DE AGROPECUÁRIA. ENQUADRAMENTO. TRABALHADOR RURAL. PRESCRIÇÃO. O elemento fundamental diferenciador da natureza da classificação do empregado (urbano ou rural) é o da prestação de seus serviços, o da atividade desempenhada. Estando o trabalhador exercendo tarefas diretamente vinculadas à atividade rural, é rurícola para todos os efeitos legais. Tratorista de empresa de agropecuária, portanto, é trabalhador rural (...).179

Em matéria de Direito Previdenciário, embora também não haja consenso sobre o tema, é possível de se identificar uma posição jurisprudencial favorável à caracterização do empregado rural pela natureza da atividade por este exercida. Expressa bem esse posicionamento o voto do Ministro José Delgado, do Superior Tribunal de Justiça, exarado no Recurso Especial n. 198413, julgado em 2002, ao abordar critérios de enquadramento dos empregados de uma agroindústria para fins de contribuição previdenciária. Citamos a seguir texto parcial do referido voto.

(...) Há décadas discute–se nos tribunais o conceito de trabalhador rural e trabalhador urbano contido nas Leis Complementares 11/71 e 16/73, que instituiu o custeio do programa de assistência aos trabalhadores do setor agroindustrial. Pretende-se que seja compreendido no conceito de trabalhador rural, os trabalhadores ditos especializados. Para início, é de se destacar que desde a Lei Complementar 16/73, a conceituação do trabalhador rural, para efeitos previdenciários, depende da natureza das atividades exercidas pelo empregado, e não da categoria do empregador. Seguindo este conceito o extinto TFR e o Egrégio STJ sempre rejeitaram a tese tantas vezes apresentada. É que os trabalhadores como estes elencados na inicial não prestam serviço de "natureza rural", sendo irrelevante para essa classificação a circunstância de vinculação laboral com empregador rural, desde a LC 16/73. Porque, como acentuado, o que prevalece para

177 TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO. Processo: AIRR - 768929/2001.6. Data de Julgamento:

20/03/2002, Relator Juiz Convocado: Alberto Luiz Bresciani de Fontan Pereira, 4ª Turma, Data de Publicação: DJ 12/04/2002. Disponível em: <http://www.tst.gov.br/ > Acesso em: 18 de setembro de 2008.

178 TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO. Processo: E-RR - 649992/2000.9 Data de Julgamento:

02/05/2005, Relator Ministro: Lélio Bentes Corrêa, Subseção I Especializada em Dissídios Individuais, Data de Publicação: DJ 05/08/2005. Disponível em: <http://www.tst.gov.br/ > Acesso em: 18 de setembro de 2008.

179 TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO. Processo RR - 410365/1997.6 Data de Julgamento: 08/11/2000,

Relatora Juíza Convocada: Eneida Melo Correia de Araújo, 3ª Turma, Data de Publicação: DJ 07/12/2000. Disponível em: <http://www.tst.gov.br/ > Acesso em: 18 de setembro de 2008.

definir a classificação do trabalhador rural, não é a categoria de seu empregador, mas a espécie de serviços por ele prestado. (...).180

Como haveria de ser, essa é uma discussão que não passa incólume no âmbito do Instituto Nacional do Seguro Social – INSS, cujas decisões proferidas por seus servidores, ao apreciar os pedidos de benefícios previdenciários, certamente já deixaram profundas marcas na vida dos segurados ante as interpretações dadas caso a caso. Tanto é assim, que no ano de 2001, o Ministério da Previdência Social foi instado a manifestar-se sobre essa questão após terem os servidores autárquicos promovido, em ato revisional, a suspensão do pagamento de benefícios previdenciários de aposentadoria por idade de segurados rurais que detinham vínculos com empresas agroindustriais, em especial com as usinas de produção de álcool, ao argumento de que a relação empregatícia com tais empresas era de natureza urbana, o que não autorizava aos empregados receberem benefícios rurais. Disso resultou que o Ministério da Previdência Social, por meio de sua Consultoria Jurídica, emitiu o Parecer n.º 2.522, de 09 de agosto de 2001, expressando entendimento de que, para fins previdenciários, todos os segurados obrigatórios da Previdência Social são enquadrados pela natureza da sua atividade e não pela natureza da atividade da empresa em que trabalham. Eis alguns dos argumentos postos:

(...) Não nos parece concretizar o dispositivo constitucional a adoção do critério da natureza da atividade do empregador para fins de caracterização da atividade rural para a obtenção de benefícios previdenciários. Não nos parece lógico que um trabalhador safrista, ou mais comumente chamado de bóia-fria, que trabalhe na extração da cana-de-açúcar, seja tido por trabalhador urbano, para fins previdenciários, tendo em vista a natureza agroindustrial do empregador - a usina de cana-de-açúcar -, impedindo este trabalhador, que exerce atividade tipicamente rural, de se aposentar aos 60 (sessenta) anos, se homem, e 55 (cinqüenta e cinco) se mulher.

Por outro lado, não nos parece lógico que contadores, escriturários, cozinheiros, motoristas etc., sejam tidos como trabalhadores rurais pelo tão só motivo da natureza da atividade rural do seu empregador. Efetivamente, estes segurados não são trabalhadores rurais, mas sim urbanos.

180 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. REsp 198413/AL. Registro: 1998/0092021-8. Relator Ministro

José Delgado. Órgão Julgador: Primeira Turma. Data do Julgamento: 25/06/2002, Data da Publicação/Fonte: DJ 30.09.2002 p. 161. Disponível em: http://www.stj.gov.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp? Acesso em: 18 de setembro de 2008.

A distinção constitucional entre trabalhadores rurais e urbanos, para fins previdenciários, não nos parece acobertar esta situação. Há motivos históricos e sociais a fundamentar esta distinção, considerando-se a natureza da atividade desempenhada por estes segurados e não pela natureza econômica da atividade de seu empregador, o que se confirma pela legislação infraconstitucional específica, qual seja, a Lei 8.213, de 1991.

Assim, temos que os trabalhadores que comprovadamente desempenham

atividades rurais, independentemente da natureza da atividade do empregador, têm direito ao prazo reduzido, previsto no art. 201, § 7º, inciso II da Constituição Federal, para fins de concessão de aposentadoria por idade. 181

Foi, o referido parecer, uma tentativa clara de se alcançar maior adequação das normas regulamentares e da rotina do Instituto Nacional do Seguro Social quanto ao entendimento sobre a quem se destina o direito assegurado no art. 201, § 7º, inciso II da Constituição Federal.

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