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Os trabalhadores rurais sob o estigma da exclusão

PARTE II O DIREITO À PROTEÇÃO SOCIAL CONFIGURADO NO TRABALHO

2 Proteção social e jurídica ao trabalho rural

2.1 Os trabalhadores rurais sob o estigma da exclusão

A partir da abordagem histórica feita pode-se constatar que no primeiro período republicano a questão social não aparece concretamente como um problema de nação. O Estado, sob a égide de uma ideologia liberal, atua de forma residual restringindo-se a reparações pontuais e seletivas das questões mais urgentes que vão surgindo ou tenta dar respostas morosas a reivindicações sociais dos trabalhadores e de setores populacionais mais empobrecidos dos centros urbanos. A questão social é identificada como caso de polícia a ser enfrentado pela violência repressiva e autoritária das forças públicas e privadas. Retrata bem essa situação as rebeliões sociais que serviram de contraponto à ordem estabelecida, como ocorreram com Canudos121 (1893-1897) e Contestado122 (1912 – 1916), e que fizeram com que algumas regiões rurais se tornassem verdadeiros campos de conflitos. Conforme assinala Delgado, esses movimentos sociais tiveram em comum a sua organização no âmbito do setor da economia de subsistência, altamente excluídos de qualquer política do Estado e desintegrados da economia de mercado, que denunciavam ou ignoravam a estrutura da propriedade fundiária preexistente123. Esses movimentos foram aniquilados pelas forças repressivas do Estado autoritário.

121 A história nos mostra que a guerra de Canudos, movimento sócio-religioso ocorrido no interior do Estado da

Bahia, originou-se de vários fatores, como a grave crise econômica e social em que se encontrava a região à época, historicamente caracterizada pela presença de latifúndios improdutivos, situação essa agravada pela ocorrência de secas cíclicas, de desemprego crônico, e pela crença numa salvação milagrosa que pouparia os humildes habitantes do sertão dos flagelos do clima e da exclusão econômica e social.

122 A Guerra do Contestado, conflito armado entre a população cabocla e os representantes do poder estadual e

federal brasileiro, travado numa região rica em erva-mate e madeira pretendida pelos Estados do Paraná e Santa Catarina, teve origem em conflitos sociais, frutos de desmandos, em especial no tocante à regularização da posse de terras por parte dos caboclos.

123 DELGADO, Guilherme Costa. O setor de subsistência na economia brasileira: gênese histórica e formas

de reprodução. In: Questão social e políticas sociais no Brasil contemporâneo. Luciana Jaccoud (organizadora). Brasília:IPEA, 2005, p. 33.

No período de transição de uma economia agroexportadora para uma economia urbano-industrial (período de 1930 a 1964)124, as políticas de proteção social na área rural, apesar de algumas tentativas incipientes de intervenção estatal, pouco avançaram. A subordinação dos valores da equidade e da justiça social aos interesses da maximização econômica fez com que a atuação estatal na regulação e na provisão sociais continuasse tratando essas políticas como questão secundária. Não houve, portanto, como bem observa Pereira, “um rompimento decisivo com o laissez-faire nem com a antiga estrutura do poder oligárquico da era agroexportadora”125 já que os aspectos sociais continuavam marginais na política de Estado. Apenas o setor urbano mereceu maior atenção, mas, mesmo assim, de forma limitada e precária.

Deu-se maior ênfase à proteção do trabalho e à expansão da proteção social vinculada ao sistema de seguro social, beneficiando, de forma diferenciada, os trabalhadores pertencentes a alguns grupos com maior poder de barganha do setor urbano. Foi o que ocorreu, por exemplo, com os trabalhadores formais de alguns setores da economia como transportes, indústrias e bancos que além dos direitos trabalhistas, passaram a ser protegidos pela via securitária por meio das Caixas de Aposentadorias e Pensões (CAPs), criadas a partir do ano de 1923, e que ao serem reestruturadas, anos depois, deram origem aos Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPs), conforme já mencionado nessa pesquisa.

Para o segmento dos trabalhadores rurais, a garantia de direitos sociais mínimos foi bastante tardia se comparada aos direitos assegurados aos trabalhadores urbanos. Não obstante a Constituição Federal de 1934126 expressamente determinar que todo

124Algumas peculiaridades da experiência brasileira no campo das políticas sociais dimensionadas em períodos

históricos podem ser encontradas em: PEREIRA, Potyara. A. P. Necessidades Humanas: subsídios à crítica dos mínimos sociais. 2002, p. 129.

125 PEREIRA, Potyara. A. P. Necessidades Humanas: subsídios à crítica dos mínimos sociais. 2002, p. 130. 126 O texto constitucional de 1934 (art. 121) estabeleceu que a regulação das condições de trabalho e a proteção

social do trabalhador rural deveriam observar aos interesses econômicos do país. Por outro lado, o texto constitucional determinou que tais direitos fossem regulados por lei específica. Com isso, a possibilidade desses direitos serem regulados ficou atrelada aos interesses da classe política dominante da época. Ademais, a

trabalhador brasileiro tivesse direito de ser socialmente protegido, não houve, de fato, a extensão desse direito aos rurais. Registre-se que o mesmo ocorreu em relação às normas trabalhistas da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT127, editada em 1943, que excluiu expressamente os assalariados rurais de alcançarem o acesso aos direitos nela previstos. Isso demonstra o poder que as oligarquias rurais detinham no campo político para defender seus interesses, embora o Estado intervencionista, organizado a partir do primeiro governo de Getúlio Vargas, ter sido um importante instrumento para romper com o poder das oligarquias rurais que se perpetuava desde a época do Brasil colônia.

A propósito, um dos impactos mais significativo da Era Vargas no meio rural, como observa Marcus Dezemone, foi a de ter contribuído para o desenvolvimento de uma “cultura de direitos”. Para esse autor, ao contrário do que outros estudos e pesquisas acadêmicas apontam, o surgimento da Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, embora tenha sido considerada como não aplicável nas relações trabalhistas rurais, teve um impacto importante na solução jurídica de conflitos no mundo rural, já que muitos trabalhadores rurais, ante a existência de um vácuo jurídico no ordenamento brasileiro, se valeram desse instrumento legal para reivindicar e alcançar na justiça seus direitos.128.

Constituição de 1934, explicitamente apontou que a proteção social, vinculada à relação salarial, seria instituída pelo mecanismo da técnica securitária com contribuições proporcionais da União, do empregador e do empregado. Tais princípios já condicionavam ao segmento rural uma proteção social fadada ao fracasso pelas próprias características das relações do trabalho salariado no meio rural. (BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: 1934. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/ Constituicao/Constituiçao34.htm> Acesso em 15.08.2007).

127 A Consolidação das Leis Trabalhistas – CLT estabeleceu em seu artigo 7º, alínea “b” a não aplicação de seus

preceitos aos trabalhadores rurais nos seguintes termos: “aos trabalhadores rurais, assim considerados aqueles que, exercendo funções diretamente ligadas à agricultura e à pecuária, não sejam empregados em atividades que, pelos métodos de execução dos respectivos trabalhos ou pela finalidade de suas operações, se classifiquem como industriais ou comerciais”. Em tese, estariam os assalariados rurais cobertos pelas normas trabalhistas da CLT, não fosse a parte final do referido dispositivo condicionando que o trabalho protegido fosse apenas aquele classificado como industrial ou comercial. Assim, o assalariado rural ficou excluído pela natureza da atividade exercida. (BRASIL. Decreto-Lei n. 5.452, de 1 de maio de 1943. Aprova a Consolidação das Leis do Trabalho. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/1937- 1946/_quadro.htm> Acesso em 15.08.07).

128 DEZEMONE, Marcus. Impactos da Era Vargas no mundo rural: leis, direitos e memória. In: PERSEU:

história, memória e política . Revisa do centro Sérgio Buarque de Holanda – Vol. 1. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2007. p. 183.

Certamente que se podem encontrar explicações dessa exclusão dos trabalhadores rurais de um mínimo de proteção social no fato de o setor rural posicionar-se de forma bastante subalterna diante da estratégia de desenvolvimento estabelecida após 1930. Seguindo o raciocínio de Delgado e Schwarzer, a principal justificativa para tal situação decorre do fato de que, mesmo os trabalhadores rurais constituírem a maioria da população brasileira até o ano de 1960, eles “não representavam grupo de pressão com capacidade de articulação política e vocalização suficiente para que o Estado populista-paternalista os visse como grupo social a ser integrado por meio da expansão significativa da cobertura de programas sociais”129.

São poucas, portanto, as referências sobre a extensão de direitos sociais aos trabalhadores rurais na primeira metade do século XX. Os escassos direitos, quando legalmente instituídos, situavam-se em normas esparsas e serviam muito mais aos interesses dos grandes proprietários rurais do que necessariamente aos interesses dos trabalhadores. Cita-se o Estatuto da Lavoura Canavieira - Decreto-Lei n. 3.855, de 1941 -, que ao disciplinar as relações entre os grandes usineiros e os fornecedores da cana, estabeleceu algumas regras, nem sempre cumpridas, para regular as precárias relações de trabalho a que se submetiam os lavradores colonos ou salariados neste setor. Nesse sentido, o Estatuto proibiu a redução da remuneração devida ao trabalhador com fundamento na má colheita; instituiu o direito à moradia e à assistência médica e hospitalar; e previu indenização no caso de despedida injusta do trabalhador. Entretanto, o que mais chama a atenção na regulação da relação de trabalho estabelecida era a determinação para que o grande proprietário concedesse ao trabalhador uma área de terra, a título gratuito, suficiente para plantação e criação necessárias à sua

129 DELGADO, Guilherme; SCHWARZER, Helmut. Evolução histórico-legal e formas de financiamento da

previdência rural no Brasil. In: A universalização de direitos sociais no Brasil: a previdência rural nos anos 90. Guilherme Costa Delgado e José Celso Cardoso Jr. (coordenadores). Brasília: IPEA, 2000, p. 189.

subsistência e de sua família130. Desse modo, reproduzia-se dúbia relação de trabalho de maneira que a concessão de um pedaço de terra servia para demarcar, no âmbito do trabalho assalariado, o trabalho autônomo em regime de produção de subsistência.

Não faltaram tentativas na gestão do Estado populista da era Vargas para estabelecer certa uniformização da proteção social para o conjunto dos trabalhadores. Em 1945, o governo decretou a criação do Instituto de Serviços Sociais do Brasil (ISSB)131 visando a unificação de todos os fundos das instituições previdenciárias então existentes e a extensão dos benefícios do seguro social para toda a população ativa do país. No entanto, apesar da louvável iniciativa, que se constituía na primeira tentativa de universalização da previdência social no Brasil, o governo tornou sem aplicação o crédito orçamentário destinado à instalação do ISSB, não permitindo a sua execução.

2.2 Os primeiros institutos de garantia de direitos sociais aos trabalhadores

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