• Nenhum resultado encontrado

PARTE II O DIREITO À PROTEÇÃO SOCIAL CONFIGURADO NO TRABALHO

3 Os trabalhadores rurais no contexto da Seguridade Social brasileira

3.1. Os novos parâmetros de proteção social

São incontestáveis as transformações e a significativa evolução que a Constituição Federal de 1988 representou no modelo de proteção social brasileiro. Visando à universalização da cidadania e rompendo com as noções de cobertura restrita a setores inseridos no mercado formal de trabalho, o texto constitucional, promulgado em um contexto de transição do regime autoritário para a democracia, institui um sistema de Seguridade Social sustentado por mecanismos mais solidários e redistributivos, composto por “um conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social” (Título VIII, Capítulo II, Seção I, art. 194)143.

Dentro desse novo reordenamento, a política de proteção social aplicada à área rural deixou de ter um tratamento administrativo-institucional específico, que oferecia benefícios precários ao público rural, para alinhar-se a uma política mais ampla desenvolvida no âmbito da Seguridade Social balizada pelos princípios sobre os quais já nos referimos, em especial da universalização dos direitos, da solidariedade e da eqüidade nas regras de custeio e de tratamento entre homens e mulheres do setor rural e entre trabalhadores rurais e urbanos.

Como bem lembra Eduardo Fagnani144, a Seguridade Social brasileira foi concebida para dar novos rumos ao modelo de proteção fazendo uma transição de uma base estritamente contratualista, focada no direito individual associado à contribuição, para um modelo mais solidário entre os contribuintes, centrado no direito coletivo decorrente da cidadania. Ainda de acordo com esse autor, a nova sistemática de proteção foi instituída para

143 BRASIL. Constituição da República Federal do Brasil: 1988. 23. ed. Brasília: Câmara dos Deputados,

Coordenações de Publicações, 2004.

144 FAGNANI, Eduardo. “Seguridade Social no Brasil (1988/2006): longo calvário e novos desafios”. In: Carta

social do Trabalho. n. 7. Eduardo Fagnani (organizador) Campinas: UNICAMP/CESIT, setembro a dezembro de 2007, p. 37-38.

ser portadora de duas premissas fundamentais: a primeira, de que “todo cidadão brasileiro é titular de um conjunto mínimo de direitos sociais independente de sua capacidade contributiva para o financiamento dos benefícios e serviços implícitos nesses direitos”; a segunda, considera que “é da responsabilidade da sociedade diretamente, ou por intermédio de adequada estrutura tributária da União, prover os recursos para assegurar o cumprimento do enunciado acima”145.

Nesse sentido, as principais mudanças trazidas pelo texto constitucional de 1988 contemplando os trabalhadores rurais ocorreram na área da Previdência Social, cuja regulamentação se deu pelas Leis n.º 8.212/91 - Lei de Custeio da Seguridade Social - e 8.213/91 - Lei de Benefícios da Previdência Social. As principais mudanças implementadas foram as seguintes: a) equiparação de condições entre homens e mulheres para acesso aos benefícios previdenciários, já que no antigo regime o direito à proteção era específico para o cabeça do casal; b) estabelecimento de um piso de aposentadorias e pensões no valor de um salário mínimo para os segurados urbanos e rurais , enquanto que o regime anterior estabelecia teto em meio salário mínimo para o público do Funrural e pensões limitadas a 30% do benefício principal; c) redução do limite de idade para aposentadoria de trabalhadores rurais que passou a ser de 60 anos para homens e 55 anos para mulheres, enquanto que para os segurados urbanos ficou estabelecido a idade de 65 e 60 anos, respectivamente, para homens e mulheres; d) participação no financiamento da Seguridade Social com contribuição incidente sobre a comercialização da produção, regra esta aplicável aos trabalhadores rurais denominados segurados especiais e aos empregadores rurais; e) carência para o acesso aos benefícios dos trabalhadores rurais passou a ser medida em tempo de atividade rural e não em tempo de contribuição, como ficou estabelecido para os segurados urbanos. Essa regra,

145 FAGNANI, Eduardo. “Seguridade Social no Brasil (1988/2006): longo calvário e novos desafios”. In: Carta

social do Trabalho. n. 7. Eduardo Fagnani (organizador) Campinas: UNICAMP/CESIT, setembro a dezembro de 2007, p. 38.

contudo, não foi equânime para todos os trabalhadores rurais, já que para os assalariados a sua aplicabilidade ficou restrita ao acesso do benefício da aposentadoria por idade.

As transformações daí decorrentes provocam fortes impactos no sistema de Seguridade Social e na própria dinâmica da política de Previdência Social, sobretudo quando se analisa a situação dos trabalhadores rurais que se valem de regras diferenciadas de contribuição e de elegibilidade para o recebimento de benefícios, o que rompe com o viés de proteção alicerçado no paradigma tradicional do seguro social. Isso tem causado impactos significativos nas condições de vida dos beneficiários rurais e na estrutura econômica e produtiva das famílias rurais que exploram a terra por conta própria em regime de produção familiar146, além de contribuir na dinamização da economia dos pequenos municípios brasileiros147.

Com efeito, essa nova sistemática protetiva, com pressupostos bem definidos no texto constitucional, traz uma configuração própria para o trabalhador rural que explora a terra de forma independente e autônoma, individualmente ou em regime de produção familiar, com parâmetros conceituais que já haviam sido estabelecidos nos institutos jurídicos de outrora148, sendo esses trabalhadores agora denominados perante a previdência social como segurados especiais. A esses trabalhadores, a proteção social passa a ser reconhecida efetivamente como um direito de cidadania que se universaliza, na medida em que é uma política que não fica mais subserviente aos interesses do gestor público e não é

146 Para aprofundamento sobre os impactos da política de proteção social na área rural, em especial sobre a

previdência social, recomendamos alguns estudos realizados por técnicos do IPEA condensados na obra: A

universalização dos direitos sociais no Brasil: a previdência rural nos anos 90. Guilherme Delgado e José

Celso Cardoso Jr. (organizadores), Brasília: IPEA, 2000.

147 Sobre o impacto dos benefícios previdenciários na economia dos municípios, ver: FRANÇA, Álvaro Sólon.

A Previdência Social e a Economia dos Municípios. 2ª Ed.Brasília: ANFIP, 2000.

148 O texto constitucional, em seu artigo 195, § 8º, constitui-se num referencial de suma importância para a

efetividade do direito à proteção social aos denominados trabalhadores rurais em regime de produção familiar, reconhecidos pela Previdência como segurados especiais. Algumas diretrizes do referido texto constitucional já estavam presentes na Lei Complementar n.º 11/71 como, por exemplo, a contribuição desses trabalhadores para a seguridade social com incidência de uma alíquota sobre a comercialização da produção rural. Outras diretrizes são uma inovação na medida em que o direito à proteção é assegurado não mais apenas ao chefe ou arrimo de família, mas também ao cônjuge e a todos os demais membros familiares que exercem a atividade rural no âmbito do regime de economia familiar.

assegurada apenas ao chefe ou arrimo de família, como foi no passado, mas sim a todos os membros que compõem o mesmo grupo familiar e estejam exercendo a atividade rural em regime de economia familiar sem empregados permanentes.

Para o segmento assalariado rural, os institutos jurídicos de proteção social pós 1988149 passaram a equiparar esses trabalhadores, para fins de direitos e obrigações, aos trabalhadores urbanos. Com isso, a proteção social deixa de ser concebida sob a tutela de um conceito homogêneo, qual seja, o de “trabalhador rural”, para projetar-se sob novos enquadramentos conceituais e sob novas regras que vão tornar o acesso ao direito de proteção bastante restritivo devido às especificidades que marcam o modo produção e as relações de trabalho no campo, sobretudo no trabalho assalariado em atividades de curta duração.

3.2. A proteção social sob dois vieses: natureza da atividade x natureza das

Documentos relacionados