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Regimes de trabalho no meio rural no período pós-escravista

PARTE II O DIREITO À PROTEÇÃO SOCIAL CONFIGURADO NO TRABALHO

1.2 Regimes de trabalho no meio rural no período pós-escravista

Para melhor compreensão do que pretendemos desenvolver nesse estudo, é preciso voltar às raízes do mercado de trabalho no Brasil, que remonta ao século XIX e que tem como fundamento de sua origem o fim do regime sesmarial90 (em 1822) e o surgimento de duas Leis editadas no ano de 1850: a Lei de proibição do tráfico de escravos (Lei Eusébio de Queiroz), que impôs o fim do fluxo de novos escravos e enfraqueceu o sistema escravocrata, marcado pelas péssimas condições de reprodução da força de trabalho cativa, contribuindo assim, para o surgimento do mercado de força de trabalho; e a Lei de Terras (Lei

89 POCHMANN, Márcio. O desafio da inclusão social no Brasil. São Paulo: Publisher Brasil, 2004, p. 14. 90 O regime sesmarial, elaborado pelos legisladores portugueses para acentuar o conteúdo dominial de Portugal,

mostrou-se, após 300 anos, um sistema ultrapassado para fazer frente às demandas sócio-econômicas e políticas da época. Raymundo Faoro observa que tantas foram as liberalidades nas concessões de sesmarias, com várias doações a uma mesma pessoa, que no início do século XIX não havia mais terras a distribuir. Assim, o panorama fundiário da época era o da grande propriedade tomando conta do país, que impossibilitava a ascensão do lavrador não proprietário e o colocava numa relação de dependência. “A sesmaria não serve ao cultivo e ao aproveitamento, mas imobiliza o status do senhor de terras, utilizada menos em proveito da agricultura do que da expansão territorial, estimulada esta pelos agentes do rei no Brasil”. (FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 5 ed. Porto Alegre: Globo, 1979, p. 407 - 408).

n. 601), da qual nasceu o mercado de terras e que, ao estabelecer a transmissão da propriedade apenas pela via da sucessão e da compra e venda, praticamente liquidou com o sistema de posses das terras públicas que havia sido estabelecido no ano de 1822 em substituição ao regime sesmarial, extirpando a possibilidade futura de os trabalhadores escravos libertos virem a se transformar em posseiros fundiários e, ainda, abrindo caminho para a chegada do imigrante europeu e asiático. Ruy Moreira, ao fazer uma análise crítica da relação entre a Lei de Terras e a regulação do mercado de trabalho, ressalta o seguinte:

Num anúncio público do fim do acesso à terra por meio de concessões pelo Estado, a Lei de Terras estabelece o mercado como regra do caminho. Doravante, só se adquire terra mediante compra. Por conseguinte, só a quem a pode comprar fica ela assim franqueada, excluindo-se desse acesso quem não tem recursos, o que quer dizer a quase totalidade da população. Dessa forma, embora seja um instrumento de regulação mercantil da circulação da terra, a Lei de Terras se combina com a lei de regulação do mercado de trabalho, uma vez que exclui automaticamente do acesso à terra a quase totalidade da população colonial, à qual só resta oferecer-se em trabalho aos proprietários fundiários. A um só tempo, a Lei de Terras preserva o latifúndio e organiza a nova relação de trabalho91.

Observa-se, contudo, que as relações de trabalho sobre as quais se assenta o novo regime de trabalho, posterior à mercantilização de Terras e a abolição dos escravos alcançada com a Lei Áurea (em 1888), não significaram o aprofundamento do assalariamento rural na economia nacional. A mão-de-obra utilizada na exploração das grandes propriedades em substituição à mão-de-obra escrava era composta de lavradores meeiros, pequenos agricultores, posseiros e peões que também ocupavam as terras e produziam gêneros de subsistência, mas sob uma forte relação de dependência com o grande proprietário que detinha o domínio da grande lavoura e cuja produção era destinada ao comércio externo. Raymundo Faoro descreve esse período de transição histórica enfatizando:

(...) A terra deveria ser objeto de negócios sem entraves alheios ao mercado, ou impedimentos economicamente irracionais, como será a própria escravidão. Em contrapartida, permitiu ao proprietário absorver, anular ou encadear o pequeno proprietário, reduzindo a pouco mais de nada o grupo intermediário entre o senhor e o escravo, numa realidade já definida no

começo do século. O lavrador sem terras e o pequeno proprietário somem na paisagem, apêndices passivos do senhor territorial que, em troca da safra, por ele comercializada, lhes fornece, em migalhas encarecidas, os meios de sustentar o modesto plantio. As precárias choupanas que povoam o latifúndio abrigam o peão, o capanga, talvez o inimigo velado, servo da gleba sem estatuto, sem contrato e sem direitos. O sistema das sesmarias deixou, depois de extinto, a herança: o proprietário com sobras de terras, que não as cultiva, nem permite que outrem as explore. Lavradores, meeiros e moradores de favor são duas sobras que a grande propriedade projeta, vinculadas à agricultura de subsistência, arredadas da lavoura que exporta e que lucra (...)92.

A sociedade que se estrutura, a partir de então, conserva as relações fundiárias e de trabalho que marcaram o período de transição da abolição, e permite identificar um proletariado rural que combina em si a condição de reprodução do trabalho assalariado e autônomo centrado na figura do meeiro, do posseiro, do pequeno proprietário, do colono imigrante, que pratica, ao mesmo tempo, um modo de produção para uma economia de subsistência e mantém uma relação de dependência e de subordinação com o grande proprietário. São muitas as relações de trabalho não assalariada que coexistem com o trabalho assalariado e concorrem para depreciar o salário monetário e o próprio contrato salarial. Tal sociedade, também exacerba vários problemas de perversidade das condições de vida da maioria da população, iniciando o século XX, nos dizeres de Delgado, “impregnada pela desigualdade de oportunidades e pelas condições de reprodução humana impostas à esmagadora maioria dos agricultores não proprietários e trabalhadores urbanos não inseridos na economia mercantil da época”93.

É de se observar que não há no período da República Velha uma economia dinâmica capaz de incorporar de maneira sistemática o assalariamento rural. O excedente da força de trabalho, formado por ex-escravos e outros trabalhadores, constitui uma “massa

92 FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 5 ed. Porto Alegre:

Globo, 1979, p. 418.

93 DELGADO, Guilherme Costa. O setor de subsistência na economia brasileira: gênese histórica e formas de

reprodução. In: Questão social e políticas sociais no Brasil contemporâneo. Luciana Jaccoud (organizadora). Brasília:IPEA, 2005, p. 31.

marginal”94 ou “campesinato marginal” 95 não integrados à economia de mercado alicerçada na agricultura exportadora. Reproduz-se assim, um contingente de trabalhadores rurais excluídos, confinados a ocupações instáveis, que tem como principal modo de sobrevivência a prática da agricultura de subsistência que se desenvolveu tanto dentro quanto fora do domínio físico do latifúndio explorador de monocultura para a exportação servindo, segundo Otávio Guilherme Velho, “como uma espécie de ‘depósito’ de mão-de-obra de que a plantation lançava mão nas suas atividades principais quando em expansão ou em determinados períodos particulares, como época de colheita”96.

Há que se destacar, no entanto, o papel decisivo desempenhado pelo Estado brasileiro nessa conformação clássica do mercado de trabalho rural97. Durante o período de escravidão o Estado, com seu poder coercitivo, cuidou de assegurar a ordem escravista, e com seu poder regulatório utilizou-se do instrumental jurídico necessário para garantir o trabalho escravo como base do funcionamento da produção de grande escala e da economia de exportação. Já no período de transição do trabalho escravo para o trabalho livre, diante do processo que levaria à libertação dos cativos enquanto movimento irrefutável da dinâmica

94 Mário Theodoro utiliza a expressão “massa marginal” como contraponto à “teoria da marginalidade”. Explica

o autor que o grande contingente de trabalhadores excluídos do mercado de trabalho formado por ex-escravos, posseiros, colonos, dentre outros, não funcionava apenas como um “exército industrial de reserva”, termo este utilizado por Marx para explicar a estratégia de acumulação e expansão do sistema capitalista. Segundo Theodoro, o contingente de trabalhadores excluídos do mercado de trabalho brasileiro no início do século XX, não tinha como característica ser um mecanismo para estabilizar salários ou servir apenas como um instrumento de “funcionalidade” para responder às necessidades mediatas e imediatas de expansão capitalista. Tratava-se, na verdade, de uma mão-de-obra marginalizada que historicamente não conseguiu integrar-se à economia de mercado, tendo como meio de sobrevivência apenas a prática de uma agricultura de subsistência. (Ver: THEORODO, Mário. As características do mercado de trabalho e as origens do informal no Brasil. In: Questão social e políticas sociais no Brasil contemporâneo. Luciana Jaccoud (organizadora). Brasília: IPEA, 2005, p. 103-104).

95 A expressão “campesinato marginal” é usada por Otávio Guilherme Velho para designar o conjunto de

trabalhadores rurais que exploravam pequenas áreas de terras fora da plantantion, comumente doadas pelo grande proprietário no intuito de garantir a reprodução barata da força de trabalho. Esses trabalhadores tinham como modo de reprodução a prática de uma agricultura voltada para o alto consumo sem laços estreitos com o mercado. Ver: VELHO, Otávio Guilherme. Capitalismo autoritário e campesinato. 2. ed. São Paulo – Rio de Janeiro: Difel, 1979, p. 137.

96 VELHO, Otávio Guilherme. Capitalismo autoritário e campesinato. 2. ed. São Paulo – Rio de Janeiro:

Difel, 1979, p. 118.

97 O mercado de trabalho, em sentido clássico, pressupõe a existência de trabalho livre que rompe com as pechas

social que se impunha, o governo brasileiro – incentivado e controlado pelos grandes fazendeiros – preparou-se para a substituição da mão-de-obra escrava, incentivando a imigração e se adaptando à nova ordem política e social do Brasil republicano. Nesse período, a intervenção estatal na conformação do mercado de trabalho rural foi ainda mais direta ao utilizar os recursos da venda das terras devolutas para financiar98 a vinda dos imigrantes europeus em substituição à mão-de-obra escrava99, sobretudo para trabalhar em regime de colonato100 na produção do café.

1.3 A estrutura das relações sociais de trabalho no meio rural no período pós

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