• Nenhum resultado encontrado

Reestruturação produtiva e os impactos nas relações de trabalho

PARTE II O DIREITO À PROTEÇÃO SOCIAL CONFIGURADO NO TRABALHO

1.4 Reestruturação produtiva e os impactos nas relações de trabalho

Desde a década de 1960 a modernização do setor agrário é vista como algo imprescindível no Brasil para fazer frente ao crescente avanço da industrialização e da urbanização, e como forma de dar maior equilíbrio à balança comercial brasileira. Um dos argumentos utilizados no passado e ainda nos dias atuais é de que o setor rural, no seu modo de produção tradicional, constitui-se num entrave para o desenvolvimento econômico, pois não consegue responder à demanda de matéria prima para o setor urbano – industrial, tampouco para produção de alimentos e produtos suficientes para abastecer o mercado. Daí a pretensão de se passar de uma agricultura tradicional, totalmente dependente da natureza e praticada por meio de técnicas rudimentares, para uma agricultura mecanizada e organizada em torno de um complexo agroindustrial. Os fundamentos técnicos jurídicos para essas mudanças foram estabelecidos pelo Estatuto da Terra (Lei n.º 4.504/1964), que instituiu o conceito de empresa rural e tentou estabelecer um rearranjo espacial da área rural, inclusive preconizando a Reforma Agrária como instrumento hábil para fundar um sistema de relações entre o homem, a propriedade rural e o uso da terra, capaz de promover a justiça social, o progresso e o bem-estar do trabalhador rural e o desenvolvimento econômico do país, com a gradual extinção do latifúndio e do minifúndio.

De fato, as novas técnicas de produção e o uso de equipamentos modernos na mecanização permitiram ampliar as áreas cultivadas ou a escala de produção de modo a alcançar maior rentabilidade. Contudo, o que realmente impulsionou a transformação da base técnica da produção agrícola foi a maior intervenção do Estado por meio do chamado crédito rural, viabilizado, principalmente, a partir de meado da década de 1960. Com efeito, a política desenvolvimentista do Estado, criada à época, instituiu um sistema de créditos e incentivos à estrutura agrária, por meio do denominado Sistema Nacional de Crédito Rural (SNCR),

permitindo o desenvolvimento de programas106 que aceleraram a produção empresarial de alimentos e matérias-primas para a indústria107. Foi marcante também a presença do Estado na fiscalização, determinação de preços, estocagem e comercialização da produção agrícola. Com seu projeto modernizador, o objetivo do Estado estava em atrelar o setor agrário ao processo de desenvolvimento econômico, criando os institutos de pesquisas e assistência técnica e incentivando a utilização de técnicas e insumos modernos. Era preciso viabilizar o chamado complexo agroindustrial instituído no país.

A crise do petróleo, ocorrida na década de 1970, trouxe novo desafio para o setor produtivo rural que, além de alimentos e divisas, passou a ser demandado para a produção de uma alternativa energética ao petróleo. Surge, assim, a ambiciosa proposta do PROÁLCOOL, passando a cana-de-açúcar a requerer maior espaço para o seu cultivo, vindo a ocupar vastos campos em uma rápida substituição dos espaços rurais utilizados na produção de alimentos.

Gradativamente a segunda metade do século XX vai sendo marcada pela chamada “modernização da agricultura”. Com seus excedentes captados e distribuídos em favor da indústria e do comércio interno, a agricultura foi ficando subordinada ao padrão de acumulação urbano-industrial em detrimento do seu próprio desenvolvimento. Do ponto de vista da valorização do capital, esse estágio foi necessário para atender às necessidades de suprimento de matéria-prima e força de trabalho para a indústria em expansão. Conforme

106

Durante o período do Regime Militar, o processo de modernização da agricultura brasileira contou com vários programas criados pelo Estado no intuito de beneficiar certas regiões e atividades, mas que mantiveram os efeitos concentradores e excludentes. Dentre eles, destacam-se: o POLONORDESTE (Programa de Desenvolvimento das Áreas Integradas do Nordeste), o PROPEC (Programa Nacional de Desenvolvimento da Pecuária), POLOAMAZÔNIA (Programa de Desenvolvimento da Amazônia), o PROTERRA (Programa de Redistribuição de Terras e de Estímulos à Agroindústria do Norte e Nordeste), o POLOCENTRO (Programa de Desenvolvimento das Áreas de Cerrados), o PRONAGEM (Programa Nacional de Armazenagem), e o PROÁLCOOL (Programa Nacional do Álcool).

107 SCOPINHO, Rosemeire Aparecida. A região de Ribeirão Preto e a agroindústria sucroalcooleira. In:

Modernização e Impactos Sociais: o caso da agroindústria sucro-alcooleira na região de Ribeirão Preto. Rosimeire Aparecida Scopinho e Leandro Valarelli (organizadores). Rio de Janeiro: Fase, 1995, p. 26.

observa José Graziano da Silva, “a produção agropecuária deixa, assim, de ser uma esperança ao sabor das forças da natureza para se converter numa certeza sob o comando do capital”108.

Nota-se, porém, que o principal entrave para o desenvolvimento almejado estava na estrutura fundiária altamente pautada na concentração de terras nas mãos de uma minoria. Ao contrário das diretrizes estabelecidas pelo Estatuto da Terra, o caminho da reforma agrária para uma melhor distribuição de terras não aconteceu. A modernização do setor agrário tornou-se, portanto, seletiva, concentrando-se basicamente nas grandes propriedades, com investimentos direcionados apenas para alguns produtos, devido à busca por excedentes exportáveis e matéria-prima para a indústria. Ao lado de culturas mecanizadas permaneceram as culturas rudimentares, ficando os pequenos produtores rurais à margem do processo de modernização implantado. Caio Prado Júnior retrata bem essa questão ao afirmar: A parcela da humanidade que vive em função da agropecuária brasileira, nada tem de homogênea, e muito pelo contrário, se encontra profundamente diferenciada e classificada em setores largamente apartados, que são de um lado, uma pequena minoria de grandes proprietários que não atingem 10% da população rural (incluindo famílias, empregados), e do outro lado, a grande maioria dessa população que vive em péssimas condições.109

Se do ponto de vista econômico as transformações ocorridas na estrutura produtiva, a partir da década de 1960, foram importantes para dar impulso à produção agrícola no país, do ponto de vista social não se obteve o mesmo êxito. Nesse sentido, Martine e Garcia observam:

É impossível avaliar a tecnificação pela qual passou a agricultura no Brasil sem analisar também os resultados sociais em termos de questões como o acesso à terra, a evolução do emprego, a dimensão da migração, a produção e distribuição de alimentos, os efeitos dos agrotóxicos e a adequação do modelo tecnológico às condições sociais e ecológicas brasileiras.110

Com efeito, a ausência de políticas para atender às reais necessidades dos assalariados e dos pequenos produtores; a dificuldade de acesso às novas tecnologias; o

108 SILVA, José Graziano da. Progresso Técnico e Relações de Trabalho na Agricultura. São Paulo: Hucitec,

1981. p. 44.

109 PRADO JÚNIOR, Caio. A Questão Agrária no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1979, p. 20.

110 MARTINE, George; GARCIA, Ronaldo Coutinho . Impactos Sociais da Modernização Agrícola. São

processo de mecanização e a substituição de culturas intensivas em mão-de-obra111, dentre outros fatores, causaram violenta transferência de população para o setor urbano. Conforme os dados do IBGE112, em 1950 a participação dos trabalhadores rurais no conjunto dos trabalhadores ocupados no mercado de trabalho brasileiro correspondia ao percentual de 59,9%. Pelos dados do Censo Agropecuário de 2006113, divulgados recentemente, a força de trabalho ocupada na área rural passou a ser constituída por apenas 18,4% do total da força de trabalho ocupada nacionalmente, o que corresponde a 16,4 milhões de pessoas.

Por outro lado, a capitalização da agricultura praticamente realizou-se por meio da exploração intensiva e extensiva da mão-de-obra assalariada e familiar, destacando- se a relevância dessa última forma de trabalho no fornecimento de considerável contingente de trabalhadores para desempenhar precariamente atividades remuneradas, em face das novas formas de relações de produção que elevou a necessidade de mão-de-obra para a colheita, etapa de cultivo ainda não mecanizada em diversas culturas. Essas transformações provocaram uma reformulação nas relações de trabalho no campo, mitigando a mão-de-obra parceira, meeira, agregada, etc., e, ao mesmo tempo, incrementando-se o trabalho assalariado precário, sobretudo nas grandes propriedades que foram se transformando em empresas com o processo de modernização. Às pequenas propriedades, conforme observa Gonçalves Neto, restou “a possibilidade da subordinação ao capital industrial, a marginalização, o esfacelamento ou a venda e migração para os centros urbanos” 114.

111 Um dos setores de pouca utilização de mão-de-obra e que mais se expandiu na segunda metade do século XX

foi a pecuária.

112 Conforme aponta o IBGE, o processo migratório ocorre de forma mais intensa a partir de 1960 quando a força

de trabalho rural ainda era maioria, com 54%, se comparada à urbana. Na década de 1970 esse percentual cai para 44,3%, em 1980 chega a 29,3%, em 1990 cai ao patamar de 25,5% e no ano de 2000 cai para 20,7%. Ver: IBGE. Estatísticas do século XX. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/seculoxx/default.shtm> acesso em 02 de agosto de 2007.

113 Conforme dados preliminares divulgado pelo IBGE sobre o Censo agropecuário 2006. (IBGE. Censo

agropecuário 2006. Disponível em <http:www.ibge.gov.br/home/estatística/ economia/ agropecuária/ censoagro/2006/default.shtm>. Acesso em 04.04.08.

É nesse contexto que surge em algumas regiões do país e intensifica-se em outras o fenômeno do trabalhador rural assalariado pejorativamente denominado de “bóia- fria”. Para Maria Conceição D’incao Mello, o “bóia-fria” é a afirmação do sistema capitalista resultante da abundante oferta de força de trabalho no campo.

A forma que esse indivíduo realiza o seu trabalho no campo é uma decorrência da existência deste excedente da oferta de força de trabalho, em relação à demanda. A possibilidade de contar com um tipo de trabalhador que, recebendo por tarefa ou por dia, trabalhando num ritmo irregular, favorece os interesses do empregador existe, em última análise, como decorrência da superabundância de mão-de-obra.115

Desse modo, a reprodução das relações de trabalho na área rural - quer seja no assalariamento marcado pelo trabalho precário e informal, quer no modo de lavrar a terra de forma autônoma produzindo para a própria subsistência – chega ao final do século XX sem grandes transformações. Na medida em que a classe trabalhadora rural vai sendo privada dos meios essenciais para a sobrevivência, torna-se uma fonte inesgotável de mão-de-obra barata que migra para os centros urbanos116, amontoando-se nas periferias das cidades sem qualquer alternativa de trabalho que não seja o trabalho precário e informal exercido em diversas funções (ambulantes, ajudantes de pedreiro, jardineiros, etc.). Essa mesma mão-de-obra, que agora tem moradia urbana, também retorna ao campo para trabalhar sazonalmente no processo produtivo agrícola. São os denominados trabalhadores temporários, volantes, bóias- frias, homens e mulheres, comumente aliciados por agenciadores de mão-de-obra mais conhecidos como “gatos”.

Documentos relacionados