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A seguridade social como novo paradigma de proteção social

PARTE I FUNDAMENTOS HISTÓRICOS E TEÓRICOS DO DIREITO À PROTEÇÃO

1 O desenvolvimento de mecanismos de proteção social

1.3 O Estado e a proteção social

1.3.3 A seguridade social como novo paradigma de proteção social

Desde a Revolução Industrial e com o avanço do capitalismo os problemas laborais e econômicos ganharam um significado político central intimamente associado ao protagonismo do movimento operário, e a denominada “questão social”, no sentido que lhe

47 MARSHAL, Thomas Humprey. Política social. Tradução Meton P. Gadelha. Rio de Janeiro: Zahar Editores,

empresta Castel48, tem sido um tema crucial no debate público nos mais diversos países. Tanto é que a construção de sistemas públicos de proteção social, para fazer frente aos riscos e vulnerabilidades sociais ante o fenômeno da Revolução Industrial e suas conseqüências, historicamente procurou responder à emergência dos conflitos sociais gerados nas economias capitalistas e nas lutas por maior democracia.

Um novo pensar sobre as políticas de proteção social surge com a grande crise do capitalismo, ocorrida em 1929, ocasionada por uma superprodução do setor industrial e uma retração no consumo, cujo ápice dessa crise ocorre com a queda da Bolsa de Valores de Nova York. As tensões sociais criadas pela inflação e pelo desemprego provocaram uma corrosão nas condições de vida dos trabalhadores. A crise possibilitou o surgimento de sérios questionamentos teóricos aos postulados da economia liberal clássica fundamentada numa economia de mercado. A principal crítica incidiu no fato de que o modelo econômico capitalista vigente não demonstrava uma tendência universal para se estabilizar sob o pleno emprego49, o que levou a esmaecer a percepção estatal minimalista e, em contrapartida, a florescer um conceito positivo e substantivo de liberdade a exigir um Estado mais atuante, desempenhando um papel estratégico no jogo econômico e social, quer pela normatização quer pela participação positiva. Na exposição de Lenio Luiz Streck e José Luis Bolzan:

Pode-se, preliminarmente, referir que o modelo liberal se consolidou e se expandiu no séc. XIX, embora os infortúnios que atingiam os segmentos populares crescessem em conseqüência do próprio desenvolvimento econômico do liberalismo. No campo das liberdades, já nas suas décadas finais, um novo componente emerge, a justiça social, e reivindicações igualitárias transformam as suas faces fazendo emergir o modelo do Estado do bem-estar ou Welfare State.50

48 A “questão social” vista por Robert Castel, constitui-se numa “aporia fundamental sobre a qual uma sociedade

experimenta o enigma de sua coesão e tenta conjurar o risco de sua fratura”. Consiste ainda no modo pelo qual uma sociedade é constantemente testada na sua capacidade de se organizar e de “existir enquanto um conjunto ligado por relações de interdependência.”. (CASTEL. Robert. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Trad. de Iraci D. Poleti. Petrópolis, RJ”: Vozes, 1998, p. 30).

49 MATIAS PEREIRA, José. Finanças Públicas: a política orçamentária no Brasil. São Paulo: Atlas, 1999, p.

87-88.

50 STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, Luis Bolzan de. Ciência Política e Teoria Geral do Estado. Porto Alegre:

Caberia, então, ao Estado o papel de atuar sobre a economia para reconduzi- la ao pleno emprego por meio de aumento dos gastos públicos, investindo nos mais diversos setores econômicos visando alavancar o processo produtivo ou por outros mecanismos que viessem a estimular o investimento privado51.

Numa clara demonstração de que o Estado democrático tem o dever de assegurar a cada cidadão um nível de vida suficientemente digno e proporcionar o bem-estar social da população numa ordem de alta prioridade, o Governo norte-americano, em 1935, ao criar a reconhecida "Social Security Act", assume a “responsabilidade pela segurança social geral”52 com medidas de proteção ao desemprego, políticas assistenciais e um seguro de velhice e morte para os trabalhadores assalariados. Essa forma de proteção social deu origem à idéia de Seguridade Social enquanto sistema de proteção social que engloba os seguros sociais e a assistência social, com estruturas administrativas especializadas na gestão dos serviços sociais e no auxílio econômico aos necessitados, com o objetivo de defender e impulsionar o desenvolvimento de toda a população americana, e não apenas dos trabalhadores53.

A despeito de já existir um sistema de seguridade social, somente houve irradiação dessas idéias a partir do plano elaborado por Beveridge54, na Inglaterra, no início da década de 1940, que idealizou um sistema universal de proteção social como forma de

51 Com a crise de 1929, ganha destaque a teoria de John Maynard Keynes que modificou o pensamento

econômico dominante da época ao enxergar o Estado e suas funções como elemento ativo fundamental para o equilíbrio do sistema econômico capitalista.

52 BARROS Jr., Cássio de Mesquita. Previdência Social Urbana e Rural. São Paulo: Saraiva, 1981, p. 5 53 ROCHA, Daniel Machado da. O Direito Fundamental à Previdência Social. Porto Alegre: Livraria do

Advogado, 2004, p. 37.

54 William Beveridge apresentou ao governo britânico dois relatórios (Seguro Social e Serviços Conexos - no

ano 1942 - e Pleno Emprego em uma Sociedade Livre - no ano de 1944) cujas propostas foram no sentido de se universalizar a proteção social para toda a população. Tais propostas foram implementadas na Inglaterra no ano de 1946.

combater cinco grandes questões de caráter social: a necessidade, a enfermidade, a ignorância, a miséria e a ociosidade55. Na exposição de Martins,

O Sistema Beveridge tinha por objetivos: (a) unificar os seguros sociais existentes; (b) estabelecer o princípio da universalidade, para todos os cidadãos e não apenas aos trabalhadores; (c) igualdade de proteção; (d) tríplice forma de custeio, porém como predominância do custeio estatal. O Plano Beveridge era universal e uniforme.56

Destarte, a emergência da Seguridade Social, ancorada na doutrina do Estado de bem-estar social, traz consigo a superação da ótica securitária e a incorporação de um conceito ampliado de proteção social, provocando mudanças significativas no âmbito dos seguros sociais até então predominantes. Nas observações de Vianna, “o impacto real da ruptura efetuado pelo plano de Beveridge foi o de demarcar um novo ethos para a política social”57.

Com efeito, as crises econômicas e as Guerras vivenciadas na primeira metade do Século XX impulsionaram as democracias liberais a repensarem as políticas sociais, e ostentaram a força impulsora das transformações que fizeram emergir um modelo de Estado cujas preocupações fossem voltadas à garantia do bem-estar individual e coletivo da sociedade. Para Vianna, os Estados de bem-estar se estabeleceram devido a uma “engenharia político-institucional que possibilitou a concretização do clima de solidariedade, induziu o sentimento de mudança, deu forma ao novo pacto social e revigorou a esfera pública”.58 Na prática, houve uma redefinição do papel do Estado, e novas bases econômicas, políticas e ideológicas foram criadas para o provimento público do bem-estar.

Assim, a construção de sistemas estatais de proteção social mais amplos, que caracterizam o Estado de bem-estar social, reporta-se inicialmente a uma estratégia de

55 ROCHA, Daniel Machado da. O Direito Fundamental à Previdência Social. Porto Alegre: Livraria do

Advogado, 2004, p. 37.

56 MARTINS, Sérgio Pinto. Direito da Seguridade Social. 21. ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 31.

57 VIANNA. Maria Lúcia Teixeira Werneck. A americanização (perversa) da seguridade social no Brasil:

Estratégias de bem-estar e políticas públicas. Rio de Janeiro: Revan: UCAM, IUPERJ, 1998, p. 17.

58 VIANNA. Maria Lúcia Teixeira Werneck. A americanização (perversa) da seguridade social no Brasil:

enfrentar a temática da desigualdade e de dar resposta à questão social que surge com a expansão da pobreza e da vulnerabilidade dos indivíduos em face do processo de produção e de acumulação de riquezas, central no debate político das sociedades modernas. São sistemas construídos em torno do modelo fordista-keynesiano e das relações de trabalho assalariadas, assegurando o acesso a subvenções extratrabalho (em caso de doenças, acidentes, invalidez, idade avançada, etc.) e que se expandem, em especial nos países desenvolvidos, ao garantir proteção a outras situações de vulnerabilidade da vida social59 fortalecendo, assim, o conceito de cidadania social. A propósito, esse é um dos preceitos da Declaração Universal dos Direitos do Homem60, proclamada pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 1948, erigindo o direito à Seguridade Social61 ao patamar de direito de todos os povos.

Com isso, ao assumir a responsabilidade pela promoção da sociedade e garantir a proteção social o Estado estabelece uma correspondência entre objetivos econômicos, objetivos políticos e objetivos sociais, e reconhece, na esfera política, a ineficácia de outras formas de regulação no trato da questão social - como as que propugnavam soluções via mercado ou via moralização do povo. Segundo Castel, nesse seu

59 CARDOSO JR., José Celso; JACCOUD, Luciana. Políticas sociais no Brasil: organização, abrangência e

tensões da ação estatal. In: JACOUD, Luciana (organizadora). Questão social e políticas sociais no Brasil contemporâneo. Brasília:IPEA, 2005, p. 186.

60 A Declaração Universal dos Direitos do Homem, em seu art. 25 prescreve que "todo o homem tem direito a

um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos os serviços sociais indispensáveis, o direito à seguridade social no caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice, ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle."

61 Cumpre assinalar, que o sistema de proteção social Alemão (instituído por Bismarck em 1883) e o sistema

Inglês (elaborado por Beveridge em 1942) tornaram-se modelos para diversos países em todo o mundo. Essas duas concepções, no entanto, se distinguem pelo caráter, pela forma de contribuição e pelo financiamento dos sistemas de seguridade social. O modelo Bismarckiano caracteriza-se pela contribuição individual como critério para o aferimento de benefícios. Os que não podem contribuir com o sistema ficam excluídos do direito a determinados benefícios, como por exemplo, a aposentadoria. Aos que não recebem nenhum tipo de benefício, seja por não terem tido condições de contribuir ou por não haver outras formas de assistência, resta o apoio da família e/ou de outras instituições sociais como provedoras da proteção principalmente aos idosos. Já o modelo Beveridgiano caracteriza-se pelo seu caráter universal não exigindo contribuição individual anterior para a obtenção de um benefício básico, aferindo o direito ao benefício pela característica definidora da cidadania, ou seja, o simples fato da pessoa ter nascido ou possuir a cidadania de um determinado país. Dessa forma, o financiamento não se dá via contribuições individuais, mas por tributos gerais, o que o torna um modelo de proteção social mais amplo e justo por incorporar mecanismos redistributivos. Não obstante essa distinção entre esses dois modelos, a grande maioria dos países com sistemas de proteção social mesclam as características desses dois modelos em seus sistemas, não adotando, portanto, um modelo puro. Esse é o caso, por exemplo, do Brasil.

novo papel o Estado abre espaços de mediações que dá um novo sentido ao “social” sem a necessidade de “dissolver os conflitos de interesses pelo gerenciamento moral nem subverter a sociedade pela violência revolucionária, mas negociar compromissos entre posições diferentes, superar o moralismo dos filantropos e evitar o socialismo dos distributivistas”62.

Desse modo, o sistema de proteção social sob a tutela do Estado representa, na visão de Paulo Bonavides, “uma transformação superestrutural por que passou o antigo Estado liberal”63, conservando, no entanto, sua adesão à estrutura econômica da ordem capitalista64. Na sugestiva expressão usada por Eric Hobsbawm, esse novo modelo representa uma “espécie de casamento entre liberalismo econômico e democracia social”65 e reflete a construção de um novo paradigma para a organização da proteção social, sendo decisiva sua influência no enfretamento das diversas condições de vulnerabilidade social a que estava submetida parcela significativa da população.

Em linhas gerais, a maior intervenção do Estado na garantia da proteção social nos países desenvolvidos ocorre num contexto de afirmação das identidades e solidariedades nacionais e de fortalecimento dos Estados nacionais e soberanos e representa, como bem lembra Esping-Andersen, “um esforço de reconstrução econômica, moral e política”, que permite superar a visão ortodoxa da pura lógica do mercado, para projetar maior extensão e segurança do emprego com ganhos nos direitos de cidadania sustentados pelas idéias de “justiça social, solidariedade e universalismo”66.

62 CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Tradução de Iraci D. Poleti.

Petrópolis, RJ: Vozes, 1998, p. 345.

63 BONAVIDES, Paulo. Do Estado liberal ao Estado social. 5. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1993, p. 180. 64 Conforme preconiza Bonavides, na medida em que o Estado, em sua essência e substantividade, constitui-se

enquanto poder que se manifesta e se distribui de várias formas no âmbito da estrutura do sistema capitalista, todas premissas do Estado social acabam por servir aos mais diversos regimes políticos (democracia, fascismo, nacional-socialismo) cujos programas não impliquem em mudanças fundamentais de certos postulados econômicos e sociais. (BONAVIDES, Paulo. Do Estado liberal ao Estado social. 5. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1993, p. 181.

65 HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. tradução Marcos Santarrita. São

Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 265.

66 ESPING-ANDERSEN, Gosta. O futuro do Welfare State na nova ordem mundial. Tradução: Simone

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