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Os primeiros institutos de garantia de direitos sociais aos trabalhadores rurais

PARTE II O DIREITO À PROTEÇÃO SOCIAL CONFIGURADO NO TRABALHO

2 Proteção social e jurídica ao trabalho rural

2.2 Os primeiros institutos de garantia de direitos sociais aos trabalhadores rurais

Um panorama sócio-político importante para a compreensão da inserção dos trabalhadores rurais ao acesso a direitos mínimos de proteção configura-se na década de 1950. De um lado, porque se intensifica a luta entre o Estado populista e as oligarquias agrárias pelo controle da mão-de-obra rural, vista como potencialmente explosiva, mas, ao mesmo tempo, considerada estratégica na manutenção da legitimação quer do poder tradicional, quer do poder burocrático, que precisava demarcar sua posição nas áreas rurais de onde sempre esteve muito ausente. Como todo poder político que procura legitimar-se pela via eleitoral, isso era necessário já que a maioria dos votos ainda estava no meio agrário. De outro lado, porque, no contexto da modernização da agricultura brasileira intensificou-se o processo de

130 O pedaço de terra que os grandes proprietários concediam aos trabalhadores do setor canavieiro para que

esses pudessem produzir alimentos para subsistência correspondia, em média, a dois hectares. Essa regra ficou conhecida como “Lei do Sítio” e perdurou até a década de 1980.

131 O Instituto de Serviços Sociais do Brasil (ISSB), criado pelo Decreto-Lei 7.526, de 7 de maio de 1945, com

caráter de administração única e controle centralizado, ficou apenas na intenção de estender aos rurais os mecanismos de proteção social já vigentes para o setor urbano.

proletarização em algumas regiões do país. É nesse contexto que surgem as ligas camponesas132 dando a necessária sustentação a um amplo movimento para que os trabalhadores rurais se organizassem em torno de sindicatos. Neste cenário, a Igreja Católica, o Partido Comunista e o Partido Trabalhista Brasileiro aparecem como protagonistas de um processo organizativo dos trabalhadores que viria, em dezembro de 1963, resultar na fundação da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura – CONTAG. Desde então, tornaram-se cada vez mais intensas as demandas e reivindicações por políticas de proteção social para os trabalhadores rurais.

Os interesses do Estado populista somado às pressões políticas para que fossem instituídos mecanismos de proteção social que pudessem minorar a precariedade das relações de trabalho no campo, bem como a exclusão social, resultou na elaboração e aprovação do Estatuto do Trabalhador Rural - Lei 4.214/63 – que, além de estabelecer uma legislação assecuratória de direitos trabalhistas, previu também a criação do Fundo de Assistência e Previdência do Trabalhador Rural com um significativo plano de benefícios.

Do ponto de vista da estrutura social e da produção, a extensão de alguns direitos trabalhistas ao campo passou a ser vista, de acordo com Oliveira, “menos como ação progressista do Estado brasileiro e mais como tática diversionista à luta dos trabalhadores pela propriedade dos meios de produção”133. De fato, ao invés de se aprovar uma lei que facilitasse o acesso à terra, procurou-se estabelecer alguns direitos (salário, férias, aviso prévio, etc.) essencialmente vinculados ao trabalhador assalariado. Por outro lado, tal legislação não levou em consideração as particularidades das relações de trabalho no campo, estabelecendo mera

132 As Ligas Camponesas surgiram a partir de 1955, em Pernambuco, sendo um dos motivos de sua organização,

conforme expõe Delgado e Schwarzer, a constituição de associação de trabalhadores rurais para auxílio mútuo aos sepultamentos de seus membros. (DELGADO, Guilherme; SCHWARZER, Helmut. Evolução histórico- legal e formas de financiamento da previdência rural no Brasil. In: A universalização de direitos sociais no Brasil: a previdência rural nos anos 90. Guilherme Costa Delgado e José Celso Cardoso Jr. (coordenadores). Brasília: IPEA, 2000, p. 189.

133 OLIVEIRA, Mauro Márcio. Pequenos agricultores e reforma agrária no Brasil: perspectivas e dilemas

sobreposição da realidade urbana sobre a rural. Isso fez com que, do ponto de vista concreto, não se lograsse êxito na aplicação de tais normas. O mesmo pode-se dizer em relação ao plano de proteção social que não se efetivou devido a não constituição de uma base financeira suficiente para a execução do programa, além de serem praticamente inviáveis os meios de fiscalização e de recolhimento das contribuições preestabelecidos·.

A nova conjuntura social, econômica e política que se abriu com o golpe de 1964 gerou expectativas de que se avançaria na implantação de políticas para fazer o enfrentamento aos problemas sociais existentes no campo. Dentre as propostas de reformas utilizadas pelo governo militar, como justificativa para se contrapor ao projeto nacional populista que vinha sendo executado, estava a reforma agrária como uma das medidas prioritárias a ser regulada e disciplinada institucionalmente, como forma de amenizar as tensões no campo. O Estatuto da Terra - Lei 4.504, de 30 de novembro de 1964 - teve essa pretensão sem, no entanto, obter êxito, pois estabeleceu a propriedade familiar como base da reforma agrária, mas também delegou à grande empresa rural a função condutora da modernização e único exemplo eficaz do uso racional da terra.

Contudo, o Estatuto da Terra se destaca por inserir nova regulamentação sobre os contratos agrários, dando maior “proteção ao débil econômico”134 e superando as obsoletas regras civilistas que normatizavam os contratos de arrendamento e de parceria rural135. O Estatuto também se destaca por conferir identidade jurídica a determinadas categorias sociais existentes no campo ao estabelecer, por exemplo, uma determinada concepção de reforma agrária e por conceituar o que seria latifúndio, propriedade familiar,

134 Paulo Torminn Borges usa a expressão “proteção ao débil econômico” enfatizando que o Estatuto da Terra

normatizou os contratos agrários subordinando-os a cláusulas inarredáveis de proteção à parte mais vulnerável da relação contratual, o que serviu de contraponto à soberania da vontade das partes tão apregoada pelo liberalismo econômico. Tais cláusulas estão bem delineadas nos artigos 92 a 96 da Lei 4.504/64. (Ver: BORGES, Paulo Torminn. Institutos do direito agrário. 8. ed. – São Paulo: Saraiva, 1994, p. 77 e 78).

135 Antes da vigência do Estatuto da Terra o arrendamento rural era regulado pelos artigos 1.211 a 1.215 e a

parceria rural era regulada pelos artigos 1.410 a 1.423 do Código Civil brasileiro. Atualmente, por expressa disposição do artigo 92, § 9º do Estatuto da Terra, o Código Civil é fonte subsidiária do direito agrário.

empresa rural, função social, desapropriação, tributação, etc. Para Regina Bruno, a importância do Estatuto da Terra vai ainda mais além:

Sabemos que o fato de existir uma legislação agrária marcou todo o ethos do sindicalismo rural. Como bem avaliou Regina Novaes, numa discussão sobre a questão, houve uma apropriação do discurso pré-64 e isto traz à luz a marca da continuidade. Na verdade, é o Estatuto que vai fazer a relação entre o Estado e o sindicalismo na luta por terra. É ele que abre o diálogo - tenso, difícil e com lutas - entre os trabalhadores rurais e o Estado.136

O que efetivamente marca a viabilidade de um regime de proteção social para os trabalhadores rurais é a instituição do Programa de Assistência e Previdência do Trabalhador Rural (PRORURAL) - Lei Complementar n.º 11/71 - cuja administração ficou a cargo do Fundo de Assistência e Previdência do Trabalhador Rural (FUNRURAL)137. Decorre, a partir de então, um programa de proteção oferecendo, ainda que precariamente, benefícios de aposentadoria por idade, invalidez, pensões, dentre outros, com financiamento vinculado à contribuição sobre o valor da comercialização da produção rural e a uma contribuição sobre a folha salarial das empresas do setor urbano, mediante a qual se instituía uma transferência de renda para o FUNRURAL. É de se notar que a não-contribuição direta do beneficiário para o sistema, associado ao baixo valor uniformizado dos benefícios rurais, passa a ser um fator diferenciado da previdência urbana. Conforme Malloy138, o PRORURAL/FUNRURAL representou um rompimento com os princípios do seguro social

136 BRUNO, Regina. O Estatuto da Terra: entre a conciliação e o confronto. Disponível em:

<http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/brasil/cpda/estudos/cinco/regina5.htm> Acesso em 30 de agost. 2008.

137 O PRORURAL/FUNRURAL beneficiava os trabalhadores rurais assalariados e em regime de economia

familiar, pescadores (a partir de 1972) e garimpeiros (a partir de 1975), bem como seus dependentes, oferecendo benefícios precários de aposentadoria por idade aos 65 anos, aposentadoria por invalidez, pensão para viúvas e órfãos, auxílio-funeral e assistência médica. A percepção da aposentadoria por idade ou invalidez era devida apenas para o arrimo de família e perfazia o valor de meio salário mínimo como teto; a pensão por morte equivalia a 30% do salário mínimo. A partir de janeiro de 1974, por força da Lei Complementar n.º 16, de outubro de 1973, a pensão por morte passou a ser 50% do valor salário mínimo, sendo também incluída no plano de benefícios a Renda Mensal Vitalícia para idosos a partir dos setenta anos de idade ou para inválidos, dirigida àqueles que não completassem os requisitos estabelecidos para a aposentadoria / pensão, também no valor de meio salário mínimo. Incluiu-se também, o seguro acidente de trabalho rural. A assistência médica era administrada via convênios com organizações locais.

138 MALLOY, James M. Previdência social e distribuição de renda: notas de pesquisa. In: TAVARES, Maria da

Conceição (et al.). Valor, força de trabalho e acumulação monopolista. Estudos Cebrap. Petrópolis-RJ: Editora Vozes, n/d, p. 126-127.

de padrão contributivo bismarckiano que caracterizaram o desenvolvimento da previdência social urbana no Brasil, além de ser um elemento inovador no sentido de gerar uma redistribuição de renda das áreas urbanas para as rurais caracterizando-se como um modelo tributário progressivo e redistributivo139, não obstante o seu financiamento ter por base impostos indiretos, comumente transferidos para os preços finais dos produtos rurais e das manufaturas urbanas.

Salienta-se, que os esparsos institutos jurídicos regulatórios dos mecanismos de proteção social e das relações de trabalho na área rural, instituídos até o início da década de 1970, constituíram a figura do “trabalhador rural” sem fazer qualquer distinção entre o assalariado rural e o trabalhador autônomo por conta própria ou em regime de produção familiar. Essa distinção, do ponto de vista das relações de trabalho passou a ser feita com a Lei n.º 5.889, de 8 de junho de 1973, que cuidou de regular toda matéria sobre o trabalho rural subordinado até então não caracterizado nem mesmo pelo Estatuto do Trabalhador Rural de 1963140.

Observa-se que essa imbricação em torno do conceito de “trabalhador rural” advém, conforme já mencionamos, desde meado do século XIX com a transição do trabalho escravocrata para o trabalho livre. Trata-se de um conceito que traz na sua gênese a marca de relações precárias do trabalho subordinado em concomitância com o exercício do trabalho em

139 O sistema bismarckiano apresenta algumas características básicas, a saber: (i) a um benefício deve

corresponder uma contribuição; (ii) essa contribuição deve ser tripartite (segurado, empregador e Estado); e

(iii) o benefício resultante deve estar vinculado ao padrão de rendimentos pregressos do segurado.

140Antes da Lei 5.889/73 a relação de trabalho rural, conforme acima mencionamos, era regulada pela Lei n.º

4.214/63, que conceituava genericamente o “trabalhador rural” como sendo “toda pessoa física que presta

serviços a empregador rural, em propriedade ou prédio rústico, mediante salário pago em dinheiro ou in natura, ou parte in natura e parte em dinheiro”. Já a Lei 5.889/73 instituiu a figura do empregado

conceituando-o como “toda pessoa física que, em propriedade ou prédio rústico, presta serviço de natureza

não eventual a empregador rural, sob dependência deste e mediante salário”. A diferença básica entre os dois

conceitos está calcada na relação de subordinação não prevista no Estatuto do Trabalhador Rural de 1963. É o que nos esclarece José Luiz Ferreira Prunes, ao referir-se ao conceito de “trabalhador rural” previsto na Lei 4.214/63: “é de se notar que aquele artigo não menciona a ‘subordinação’ como um traço distintivo do contrato de trabalho e admitia a hipótese de pagamento somente in natura”. (Ver: PRUNES, José Luis Ferreira. Dicionário LTr. Direito do trabalho rural. São Paulo: LTr, 1991, p. 314/315). Cumpre frisar, que a Lei nº 5.889/73 revogou a Lei 4.214/63.

regime de produção familiar para a própria subsistência. Retratam bem essa situação as expressivas palavras de Lyndolpho Silva141 sobre as condições de vida e de trabalho enfrentada pelos trabalhadores rurais nas décadas de 1950/1960:

A luta dos posseiros concentrava-se na defesa da titulação da terra, com base na lei do usucapião, já que cultivavam a terra e pagavam impostos. A luta dos assalariados rurais era por melhores salários.

A maioria dos camponeses morava na fazenda como colonos e era semi- proletária. Eles recebiam um salário e permissão para plantar nas ruas (espaço entre fileiras de plantação) para o próprio sustento. Era comum o trabalho sem registro em carteira. Aliás, este era um documento difícil de ser encontrado no campo. Fiscalização também não existia.142

Tão forte e marcante foi essa característica em torno das relações de trabalho no meio rural, que mesmo após a Constituição Federal de 1988 - em que pese o texto constitucional instituir princípios e regras para se proceder à maior distinção dessas relações – a política de proteção social do Estado brasileiro não se desvencilhou por completo do preceito de estabelecer um tratamento homogêneo aos trabalhadores rurais em determinadas circunstâncias. Isso ficou caracterizado na política previdenciária, ao se estabelecer ao conjunto dos trabalhadores rurais regras comuns de acesso ao benefício da aposentadoria por idade.

O que percebemos, no entanto, é que este tratamento histórico encontra-se em via de esgotamento, de modo que o direito à proteção social caminha para maior condicionamento a regras específicas que demarquem e caracterizem os trabalhadores rurais nas suas especificidades, considerando a relação de trabalho a qual estão submetidos. Daí resultar um futuro incerto quanto à efetivação desse direito, sobretudo para os denominados assalariados rurais. É o que adiante veremos.

141Lyndolpho Silva foi uma das grandes lideranças do Movimento Sindical de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais. Em 1954, ajudou na organização e na fundação da União dos Lavradores Agrícolas do Brasil, sendo eleito seu presidente. Mais tarde, no ano de 1963, foi eleito primeiro presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura – CONTAG.

142 SILVA, Lyndolpho. Entrevista concedida à Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura. In

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