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PARTE II O DIREITO À PROTEÇÃO SOCIAL CONFIGURADO NO TRABALHO

1.5 O trabalho rural assalariado em perspectiva

A crescente reestruturação produtiva no setor agrário, tomada a partir da “modernização na agricultura”, continua produzindo seus efeitos, alterando as relações sociais

115 MELLO. Maria Conceição D’incao e. “Bóia-fria”: acumulação e miséria. Petrópolis: Vozes, 1975. p. 87. 116 DELGADO, Guilherme C. A pesquisa de avaliação da previdência social contextualizada. In: A

universalização de direitos sociais no Brasil: A previdência rural nos anos 90. Guilherme Delgado, José Celso Cardoso Junior (coordenadores). Brasília: Ipea, 2000, p. 27.

de produção e de trabalho. Dada à exigência de mão-de-obra qualificada, novas categorias de trabalhadores entraram em cena enquanto os trabalhadores tradicionais, mesmo dotados de experiência e conhecimento empírico, mas por desconhecerem a técnica vão perdendo espaço. Os investimentos nos incrementos tecnológicos pressupõem a adoção de uma mão-de-obra que potencialize cada vez mais o uso de tecnologias e insumos agrícolas visando aumentar a produtividade. Assim, enquanto as inovações tecnológicas introduzidas no setor provocam, de um lado, a reformulação constante das relações sociais de produção assegurando um emprego mais estável à mão-de-obra mais especializada, de outro lado intensifica a sazonalidade do trabalho não especializado, estabelecendo uma simetria entre trabalho temporário e trabalho informal precarizado. É a força de trabalho rural cada vez mais subordinada ao capital.

Já a concorrência no mercado nacional e internacional por produtos agrícolas repercute na busca de vantagens comparativas (clima, solo, água, preços da mão-de- obra), reestruturando os espaços produtivos da agricultura brasileira. Com isso, os impactos nas relações de produção e de trabalho se agigantaram com as especializações regionais (grãos no centro-sul, pecuária no norte, fruticultura irrigada no nordeste, etc.) a partir de atividades de monoculturas, o que comporta antigos e novos modelos de exploração da produção (empresariais, agricultura familiar, arrendamentos, parcerias, etc.). Cita-se, por exemplo, as lavouras de soja e de cana-de-açúcar117, que confluem para a concentração fundiária resultante do processo de mecanização das atividades agrícolas, bem como para a utilização intensiva de tecnologias químicas e biológicas, tendendo cada vez mais poupar

117 Matéria publicada no Jornal “Valor Econômico”, divulgou um recente estudo feito pelo Instituto de Economia

Agrícola (IEA) do Estado de São Paulo informando que 40% de toda a área da cana-de-açúcar do Estado já é colhida mecanicamente. Isso, aliás, é uma prioridade ambiental do governo do Estado de São Paulo que estabeleceu prazos para o fim das queimadas da cana em áreas planas (ano de 2021), e em áreas em declive (no ano de 2031). O estudo também ressalta que o crescimento de 1% da mecanização da cana a cada ano, representa a saída de 2.700 cortadores de cana dessa atividade. Ver: VALOR ECONÔMICO. Mecanização alcança 40% da área de cana em SP. São Paulo: Jornal Valor Econômico. Matéria publicada na sexta feira e fim de semana, 11, 12 e 13 de abril de 2008, p. B 14.

trabalho humano no campo ou, quando muito, demandar mão-de-obra de forma mais intensiva apenas em períodos específicos de cultivo e de colheita. Isso repercute profundamente na organização da força de trabalho rural.

Confere-se assim, esmagadora prioridade do setor produtivo rural patronal– empresarial na contratação de trabalhadores temporários, intensificando o contrato de trabalho descontínuo e flexível, de modo que esses trabalhadores passam a ser contratados, não raras as vezes, pelas mesmas empresas a cada safra, criando uma tipologia de trabalhadores denominada “temporário-permanente”118, sem condição de acesso ao seguro-desemprego e a determinados direitos trabalhistas, como aviso prévio e multa rescisória do contrato de trabalho. É claro que alguns desses direitos podem ser alcançados por uma parcela de assalariados temporários que conseguem uma relação formal de trabalho em algum período durante o ano. Mas a grande maioria trabalha na informalidade não desfrutando de qualquer direito trabalhista e, por conseqüência, encontra-se totalmente excluída do direito à proteção social previdenciária.

É de se notar, no entanto, que as relações de trabalho temporário não se refletem apenas no setor produtivo patronal-empresarial. Emergem também na agricultura familiar que adota um modelo de produção voltado para atender às necessidades do mercado local/regional, estando esse modelo de produção também integrado à cadeia produtiva de determinados produtos agrícolas intercambiados pelo setor agroindustrial.

Nesse contexto, a agricultura familiar tem duplo perfil: ao mesmo tempo em que é fonte de trabalhadores que se assalariam, é também lugar de contratação temporária no panorama da agricultura brasileira. E aqui é preciso destacar a forte tendência da agricultura familiar na contratação de mão-de-obra temporária para garantir a sua própria reprodução.

118 A expressão “temporário-permanente” designa uma tipologia de trabalhador rural assalariado caracterizado

pelo trabalho de natureza temporária apenas em relação às atividades de curta duração que exercem para vários empregadores. No entanto, a prática desse tipo de trabalho é contínua e permanente no decorrer de cada ano civil.

Pesquisa divulgada, no ano de 2000, pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA e pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura – FAO119, tomando por base os dados do Censo Agropecuário do IBGE de 1995/1996, já indicava o segmento da agricultura familiar120 como forte demandante de mão-de-obra assalariada para trabalhar em atividades de curta duração. Os dados divulgados a partir de levantamento feito em uma data fixa (em 31/12/95) indicaram que a agricultura familiar contratou 986.678 assalariados temporários.

Para o futuro, há diversos indicativos de que a relação de trabalho assalariada no âmbito da agricultura familiar tende a aumentar. Cita-se o êxodo rural, em especial dos jovens, que continuam migrando para os centros urbanos procurando concluir seus estudos e buscando novas oportunidades de trabalho; o maior controle de natalidade e o rápido envelhecimento da população rural, o que diminui a força de trabalho familiar; a maior facilidade com que os agricultores familiares têm acesso ao crédito rural para custeio e investimento na produção, o que lhes permite gerar alguns excedentes produtivos contribuindo para mudar o perfil econômico da família que até então produzia para uma economia de subsistência e que agora pode produzir de forma mais integrada ao mercado. São, portanto, diversos os fatores indicativos de que a agricultura familiar, para a sua própria sobrevivência e reprodução, demandará um contingente cada vez maior de mão-de-obra

119 Ver: INCRA/FAO. Novo Retrato da Agricultura Familiar. O Brasil redescoberto. Pesquisa coordenada

por GUANZIROLI. Carlos. E.; CARDIM, Silvia E. de C. S. Brasília: MDA/INCRA, 2000.

120 Na pesquisa realizada pela INCRA/FAO, foram utilizadas duas variáveis básicas para delimitar o universo da

agricultura familiar: (i) a direção dos trabalhos do estabelecimento ser exercida pelo próprio produtor; (ii) a mão-de-obra familiar ser superior à mão-de-obra contratada. Foi utilizada, também, uma delimitação de tamanho da área do estabelecimento familiar para cada região do país, para evitar eventuais distorções que decorreriam da inclusão de grandes latifúndios no universo de unidades familiares, ainda que do ponto de vista conceitual a agricultura familiar não seja definida a partir do tamanho do estabelecimento. Os resultados dos estudos indicam que a agricultura brasileira apresenta uma grande diversidade em relação ao seu meio ambiente, à situação dos produtores, à aptidão da terra, à disponibilidade de infra-estrutura etc., não apenas entre as regiões, mas também dentro de cada região. De acordo com a metodologia adotada, dos 4.859.864 estabelecimentos rurais existentes no Brasil, 4.139.369 são considerados estabelecimentos familiares. Foi deste universo que se detectou a contratação de quase um milhão de assalariados temporários no ano de 1995.

assalariada no processo produtivo, sobretudo nos períodos de colheitas, comumentes de curta duração.

Em que pese esta constatação, são praticamente inexistentes relações de trabalho assalariadas devidamente formalizadas no âmbito da agricultura familiar. Até porque, de um lado, esses agricultores não foram e não estão preparados, nem culturalmente nem financeiramente, para arcar com toda a burocracia e dispêndio que se exige para formalizar relações de trabalho com vínculo empregatício. De outro lado, ainda está por se constituir um entendimento uniforme quanto à permissibilidade de o agricultor em regime de produção familiar poder contratar mão-de-obra assalariada, ainda que por curto período, e permanecer no direito de acesso à proteção social previdenciária pela regra especial que lhe é outorgada. Essa questão, que até então vinha sendo tratada com certa reticência pelos órgãos competentes para apreciar o direito previdenciário dos agricultores familiares - tanto o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) quanto o Poder Judiciário –, ganha agora novos elementos para o debate e para a construção de entendimentos convergentes com a edição da Lei n.º 11.718, publicada no dia 23/06/2008, que mais adiante será analisada num tópico específico.

Deste modo, se o trabalho assalariado formal for o viés para se garantir maior efetividade do direito de proteção social aos assalariados rurais, certamente o desafio está posto e merece ser discutido. Até porque, há que se reconhecer que o trabalho rural assalariado para o exercício de atividades temporárias, de curta duração, é parte da rotina do processo produtivo do setor agrícola.

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