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I. Das Declarações para memória Futura

8. Hiperligações e referências bibliográficas 1 Hiperligações

1.9. Leitura e valoração das declarações para memória futura em audiência de julgamento O regime da reprodução ou leitura das declarações para memória futura tomadas nos termos

2.3.3. A possibilidade de recusa do menor em depor

Uma outra vicissitude que surge, amiúde, no âmbito da diligência de tomada de declarações da vítima menor para memória futura, em especial nos casos de crime contra a liberdade ou autodeterminação sexual é a aplicação e interpretação do artigo 134.º do Código de Processo Penal.

É que, na prática judiciária, têm sido diversos os entendimentos sobre o assunto, alguns dos quais extravasam mesmo, em nosso entendimento, o sentido da norma: quer, por um lado, a exigência de a advertência ser sempre feita não obstante a idade e maturidade da criança, quer, por outro, o da atribuição da decisão sobre a recusa ao representante legal da mesma. Com vista a dar uma resposta a estas questões, convém, desde logo, olhar ao teor do artigo 1881.º, n.º 1, do Código Civil que estabelece que o poder de representação compreende o exercício de todos os direitos e o cumprimento de todas as obrigações do filho, ressalvando,

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porém, os actos puramente pessoais do menor, isto é, aqueles que este tem o direito de praticar pessoal e livremente que se reportam àqueles que, por estarem eminentemente ligados à vontade de quem os pratica, só pelo próprio podem ser levados a cabo.

Ademais, estabelece o artigo 123.º do mesmo diploma legal que “salvo disposição em contrário, os menores carecem de capacidade para o exercício de direitos”. Todavia, somos de parecer que a regra inscrita no artigo 131.º do Código de Processo Penal que atribui ao menor a faculdade de testemunhar e de recusar o depoimento nos termos do artigo 134.º é exemplo da salvaguarda feita pela previsão da primeira norma citada.50

Os argumentos valem ainda para os casos de nomeação de representante nos termos do artigo 7.º, n.º 6, do Estatuto da Vítima.

Por outro lado, importa salientar a previsão do artigo 12.º da Convenção sobre os Direitos da Criança, adoptada pela Assembleia Geral nas Nações Unidas em 20 de Novembro de 1989 e ratificada por Portugal em 21 de Setembro de 1990 com o seguinte teor: “Os Estados Partes garantem à criança com capacidade de discernimento o direito de exprimir livremente a sua opinião sobre as questões que lhe respeitem, sendo devidamente tomadas em consideração as opiniões da criança, de acordo com a sua idade e maturidade”. Nesta senda, a legislação portuguesa reconhece às crianças que, atendendo à sua idade e maturidade, mostrem compreensão dos temas que estão a ser tratados o direito a se exprimirem sobre a sua situação pessoal e familiar, situando, para este efeito, o nível de maturidade adequado nos 12 anos.

A este propósito, importa distinguir a diferença entre a capacidade de uma criança para ser testemunha em processo penal e de relatar factos de que foi vítima ou que observou da sua capacidade de entender e decidir da faculdade de recusar depor quando o arguido se trata de um seu familiar próximo. Como bem sugere Rui do Carmo51, no primeiro caso, está tão-só em

causa a compreensão das questões e da competência para expressar respostas ao nível do seu desenvolvimento; no segundo, está em jogo a capacidade, atendendo ao desenvolvimento psicológico e maturidade, para compreender o alcance da recusa em depor, o que implica um entendimento sobre o sentido da preservação das relações familiares e da sua protecção contra possíveis posteriores violações dos seus direitos. 52

Perante o exposto, cremos que uma interpretação conjugada das normas citadas, importa que seja o menor, e não o seu representante legal, a reflectir sobre o exercício do direito de recusa

50 Os argumentos transcritos encontram-se vertidos no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26-06-2002,

processo n.º 1868/2002 cujo sumário pode ser lido em CARMO, Rui do, “As crianças como testemunhas – aplicar e

clarificar a lei [as declarações únicas da criança; o estatuto da vítima; recusa a depor]", in Revista do CEJ, Lisboa, N.º

2, ano 2016, p. 106.

51 CARMO, Rui do, op. cit., p. 107. Este autor, na obra citada, sugere, mesmo, uma alteração do artigo 134.º do

Código de Processo Penal no sentido de ser clarificado, que, quanto a si, deveria passar a afirmar o entendimento de que a recusa em depor é um acto pessoal do menor, não cabendo no direito de representação da criança e obrigar à advertência prevista no actual n.º 2 apenas no caso de crianças com idade igual ou superior a 12 anos, ou de idade inferior que mostrem possuir capacidade e maturidade para a compreender.

52 Note-se que não é finalidade da norma proteger os direitos de defesa do arguido que, embora possa beneficiar

do direito à recusa em depor de um seu familiar, não lho pode, todavia, exigir.

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a depor, sendo certo que deve ser ponderada pelo juiz ou pelo técnico que proceda à inquirição a necessidade de advertência do menor, consoante a sua idade e maturidade para a compreender.

Antes de concluir, aponte-se para a orientação hierárquica contida na Instrução n.º 1/2016, da Procuradoria-Geral Distrital de Coimbra, de 29-02-2016, que, quanto à problemática em análise, dirigindo-se aos magistrados do referido Distrito, veiculou, no respectivo ponto 7 que: “o magistrado do Ministério Público deve opor-se a que, nas situações previstas no artigo 134.º CPP, seja válida recusa de depoimento a prestar pela criança formulada pelos pais, representante legal ou guardião de facto em representação da criança, considerando que se trata de um acto pessoalíssimo que só pode ser praticado pela mesma, desde que para tal tenha discernimento”, solução que merece o nosso aplauso.

2.4. A articulação entre o magistrado do Ministério Público titular do inquérito e o magistrado junto do Juízo de Família e Menores

Vimos já que ao Ministério Público, enquanto magistratura legal e constitucionalmente encarregada de exercer a acção penal orientada pelo princípio da legalidade e, também, estatutariamente vocacionada para a protecção dos interesses dos menores, incumbe, não raras vezes, um papel especialmente delicado quando a vítima se trata de uma criança. Há, portanto, que levar a cabo os interesses da justiça e descoberta da verdade material por um lado e, por outro, proteger e promover os direitos da criança.

O problema assenta no facto de a prova pericial, em grande parte dos casos, não dar quaisquer respostas, pelo que a voz da criança acaba por ser o único meio de prova de que o Ministério Público dispõe e do qual não pode prescindir em ordem a tomar uma decisão de encerramento do inquérito.

Todavia, o que não raras vezes sucede é que coexistem simultaneamente a acção penal e a intervenção proteccional e/ou processo tutelar cível, o que suscita a necessidade de o magistrado do Ministério Público titular do inquérito procurar comunicar com os magistrados a exercer funções junto dos Juízos de Família e Menores tendo em vista uma acção conjugada que pugne pela coerência na condução dos diferentes procedimentos e harmonização e articulação das decisões, sempre com vista a acautelar o superior interesse da criança que, a final, é seu papel defender.

No cerne do problema está a questão curial do elevadíssimo número de vezes que a criança é inquirida no âmbito do processo-crime e noutros processos como o de promoção e protecção, em face da dura realidade actual que aponta para o relato dos factos em investigação numa média muito superior à que seria desejável, o que, como é sabido e por nós já foi, por diversas ocasiões, sublinhado, potencia os riscos de vitimização secundária da criança.

Tal assume proporções sérias e preocupantes, o que tem sido salientado por psicólogos especialistas, que alertam para a importância de evitar os prováveis efeitos psicológicos

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negativos da colaboração da criança com a justiça. Vem-se apontando para os efeitos perniciosos que a inquirição da criança provoca ao nível da sua reorganização psicológica após o evento traumático (que se traduz na prática do crime e o qual a criança tem de reconstituir para o relatar). Não podemos olvidar que “para a criança vítima, relatar a situação de vitimização pode significar reexperimentar de forma intensa e desgastante uma experiência traumática”.53

Perante as referidas preocupações, o Ministério Público “deverá maximizar as sinergias que resultam da sua estrutura hierárquica, com vista à criação de canais de comunicação e de coordenação entre os magistrados por forma a que a sua acção conjugada pugne pela coerência na condução dos diferentes procedimentos e das respectivas decisões do ponto de vista da afirmação do superior interesse da criança ou do jovem, que lhe cabe defender”.54

Desde logo, quando, a par do processo penal, corra igualmente termos processo de promoção e protecção – quer junto das CPCJ, quer junto dos Tribunais – ou processo tutelar cível no âmbito do qual haja necessidade de ouvir a criança, ter-se-á, quanto a nós, de atribuir centralidade às declarações para memória futura recolhidas no procedimento criminal.55 Se é

certo que a verificação dos pressupostos daquelas declarações são condição de validade do depoimento da criança como prova no processo penal, não vislumbramos qualquer óbice à sua recepção e valoração no âmbito dos processos a correr termos junto do Juízo de Família e Menores.

Tal solução é a sufragada pela Convenção de Lanzarote quando, no seu artigo 35.º, n.º 2, impõe a gravação vídeo das declarações da criança com o objectivo de evitar riscos de um novo traumatismo, delimitando, tanto quanto possível, o número de vezes em que aquela é inquirida.

Para que o referido desiderato seja, todavia, alcançado com sucesso na prática judiciária impõe-se que as declarações para memória futura sejam realizadas com grande proximidade do momento do conhecimento dos factos e que, no âmbito da diligência, sejam recolhidas todas as informações necessárias à prossecução dos fins que se visam salvaguardar – evitar os contactos múltiplos e vitimizadores da criança com a justiça.

A evolução da lei também tem vindo a reflectir as preocupações que o particular caso das crianças suscita, sendo as alterações legislativas que remontam a 2015 um claro exemplo disso.

A audição da criança no processo tutelar cível vem regulada nos artigos 4.º e 5.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, aplicáveis ao processo de promoção e protecção por força do artigo 84.º da Lei de Protecção das Crianças e Jovens em Perigo que remete para aquele regime.

53 RIBEIRO, Catarina, op. cit., p. 117. 54 CORREIA, João Conde, op. cit., p. 174.

55 No mesmo sentido, CARMO, Rui do, “Declarações para memória futura: Crianças vítimas de crimes contra a

liberdade e autodeterminação sexual”, Revista do Ministério Público, n.º 134, Abril-Junho, 2013, p. 141.

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Com especial relevo, estatui a alínea d) do n.º 7 do artigo 5.º que “quando em processo-crime a criança tenha prestado declarações para memória futura, podem estas ser consideradas como meio probatório no processo tutelar cível”, solução que vale, como vimos, para a intervenção proteccional.

Em face deste regime, como bem aduz Rui do Carmo, “a lei é, hoje, clara quanto à sua tendencial realização numa única diligência, em declarações para memória futura, válida para outros procedimentos que corram paralelamente ao processo-crime, devendo abranger a temática por eles tratada”.56

É aqui que o Ministério Público, com especial responsabilidade na harmonização das intervenções à luz do denominador comum do superior interesse da criança, assume um papel fulcral e que se funda na multiplicidade de funções que estatutariamente lhe incumbem, o que tem justificado e desencadeado a emissão de vários instrumentos hierárquicos no sentido de agilizar a sua actuação.

Disso são exemplo: a “Directiva Conjunta” do Procurador-Geral da República e do Presidente da Comissão Nacional de Protecção das Crianças e Jovens em Risco, de 23 de Junho de 2009, sobre a “uniformização de procedimentos funcionais entre os magistrados do Ministério Público interlocutores e as CPCJ”, o Despacho n.º 3/2012, de 08-02-2012 e, mais recentemente, a Instrução n.º 1/2016, de 29-02-2016, do então Procurador-Geral Distrital de Coimbra, que veiculou uma série de boas práticas para a intervenção articulada nos casos de abusos sexuais de menores, incidindo na questão da comunicabilidade entre o magistrado titular do inquérito e o magistrado que representa o Ministério Público no processo judicial ou que é interlocutor da CPCJ por forma a acautelar o superior interesse da criança vítima, evitando duplicação de diligências e a consequente vitimização secundária, potenciando-se a eficiência de ambos os procedimentos, aí se estabelecendo, entre o mais, o aproveitamento das diligências realizadas em cada um deles, evitando-se repetições inúteis.57

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