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IV. Hiperligações e referências bibliográficas

5. Gestão processual

4.1. As finalidades da tomada de declarações para memória futura

As declarações para memória futura, consagradas, actualmente, nos artigos 271.º e 294º. do Código de Processo Penal, surgem, no âmbito processual penal, pela primeira vez, com o Código de Processo Penal de 1987 (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de Fevereiro). Até então, no processo penal, apenas o Decreto-Lei n.º 605/75, de 3 de Novembro previa a possibilidade da produção antecipada de prova, quando fosse de pressupor a futura impossibilidade, ou grande dificuldade, em inquirir determinadas pessoas (artigo 15.º), sendo que, até à entrada em vigor deste normativo legal, se entendia ainda ser possível recorrer ao regime da produção antecipada de prova prevista no Código de Processo Civil (artigos 520.º e 521.º)3.

Como bem ensinava ALBERTO DOS REIS relativamente à possibilidade de produção antecipada de prova no âmbito do processo civil, “a justificação sumária da necessidade da antecipação deve consistir na alegação de factos e circunstâncias conducentes a mostrar que há justo receio de que venha a tornar-se impossível ou muito difícil a produção em audiência, da prova cuja antecipação se pretende obter”, referindo-se, inclusivamente, este autor à existência de um “periculum in mora”, o qual, no caso concreto da produção antecipada de prova, se consubstanciava no risco de um determinado meio de prova desaparecer, ou a sua produção se tornar extremamente difícil com o decorrer do tempo e o andamento normal do processo4.

3 CARMO, Rui do “Declarações para memória futura: Crianças vítimas de crimes contra a liberdade e a

autodeterminação sexual”, n. º 134, Ano 34 – Abril-Julho, 2013.

4 REIS, Alberto dos, Código de Processo Civil Anotado, vol. III, 3.ª ed., Coimbra Editora, 1981, pág. 336.

DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA

3. Enquadramento jurídico, prática e gestão processual

O artigo 271.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na sua redacção inicial5, previa que “Em

caso de doença grave ou de deslocação para o estrangeiro de uma testemunha, que previsivelmente a impeça de ser ouvida em julgamento, o juiz de instrução, a requerimento do Ministério Público, do arguido, do assistente ou das partes civis, pode proceder à sua inquirição no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento”.

Ou seja, conforme resulta da letra da lei, inicialmente, as declarações para memória futura pretendiam tão só acautelar situações excepcionais nas quais, em virtude de doença grave ou de deslocação para o estrangeiro, uma determinada pessoa não pudesse, previsivelmente, ser ouvida pelo juiz, em sede de audiência de discussão e julgamento.

Nestas situações, de cariz excepcional, o legislador permitia, então, que fossem tomadas, pelo juiz de instrução, declarações para memória futura a testemunhas, ao assistente, às partes civis, a peritos, a consultores e técnicos, bem como fossem realizadas acareações (n.º 4 da mesma norma), quer no decurso do inquérito, quer no decurso da instrução.

Em 1998, o legislador decidiu ampliar o campo de aplicação do instituto das declarações para memória futura, o qual passou a ser admissível para os depoimentos das vítimas de crimes sexuais. Ou seja, a partir de então o legislador assumiu que o instituto por si criado, além de possuir finalidades processuais, tinha ainda a susceptibilidade de proteger determinadas vítimas. Assim, a Lei n.º 58/98, de 25 de Agosto alterou a redacção do artigo 271.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o qual passou a prever especificamente a possibilidade de serem tomadas declarações para memória futura “nos casos de vítimas de crimes sexuais”.

A revisão do Código de Processo Penal de 2007 (operada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto), por sua vez, trouxe significativas alterações às declarações para memória futura tal como até então se encontravam previstas6.

Com efeito, o legislador ampliou o campo de aplicação deste instituto, o qual passou a ser admissível, não só, em caso de doença grave e de deslocação para o estrangeiro de uma testemunha (que previsivelmente a impeça de ser ouvida em julgamento), como também, em caso de vítimas de crime de tráfico de pessoas, contra a liberdade e autodeterminação sexual (relativamente às quais não é necessária a previsibilidade do impedimento de serem ouvidas em audiência e discussão e julgamento - ex vi artigo 271.º, n.º 1, do Código de Processo Penal)7.

5 Redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de Fevereiro.

6 CARMO, Rui do, “Declarações para memória futura: Crianças vítimas de crimes contra a liberdade e a

autodeterminação sexual”, n. º 134, Ano 34 – Abril-Julho, 2013.

7 ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de, “Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da

Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, Editora Universidade Católica, 3.ª edição, 2009, p. 702. No mesmo

sentido, também Maia Costa (Código de Processo Penal Comentado, 2016, 2.ª Edição Revista, Almedina, pp. 917- 918) refere que “inicialmente pensado pelo legislador como meio preventivo de recolha de prova susceptível de

perder-se ou inviabilizar-se antes do julgamento, o âmbito de recolha das declarações para memória futura foi posteriormente ampliado, já não para prevenir o perigo de perda da prova, mas para protecção das vítimas, especialmente das menores”, continuando o referido autor a explicar que nos “(…) crimes de tráfico de pessoas e contra a liberdade e autodeterminação sexual, a recolha antecipada de declarações funciona como meio de protecção da vítima, procedendo-se portanto a essa recolha mesmo que não seja previsível a impossibilidade de

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3. Enquadramento jurídico, prática e gestão processual

Acresce que, a partir da entrada em vigor da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, a inquirição em sede de declarações para memória futura de menores vítimas de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual passou a ser obrigatória, nos termos do disposto no artigo 271.º, n.º 2, do Código de Processo Penal8, devendo, ainda, a diligência ser realizada em local adequado

e de forma a garantir um ambiente informal e reservado e encontrando-se o menor acompanhado por um técnico especialmente habilitado (artigo 271.º, n.º 4, do Código de Processo Penal).

Foi também em 2007 que passou a ser obrigatória a presença, na referida diligência, do magistrado do Ministério Público e do defensor do arguido9. Com efeito, apenas desta forma é

possível assegurar, de forma efectiva, ao arguido, o exercício do seu direito de defesa, em especial do contraditório (cfr. artigos 6.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos e 32.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa).

O artigo 271.º, n.º 6, do Código de Processo Penal passou ainda a prever a possibilidade de o tribunal ordenar o afastamento do arguido da sala, tal como previsto para a audiência de discussão e julgamento. Assim, actualmente, quando existam razões para crer que a presença do arguido inibiria o declarante de dizer a verdade; quando o declarante seja menor de 16 anos e houver razões para crer que a sua audição na presença do arguido poderia prejudicá-lo gravemente; ou quando deva ser ouvido um perito e houver razão para crer que a sua audição na presença do arguido poderia prejudicar gravemente a integridade física ou psíquica deste, o juiz de instrução pode ordenar o afastamento do arguido da sala, nos exactos termos previstos no artigo 352.º do Código de Processo Penal.

Foi igualmente a partir da revisão operada em 2007 que a documentação destas declarações passou a ser realizada de forma idêntica à das declarações prestadas em sede de audiência de discussão, sendo-lhes aplicáveis as regras previstas nos artigos 363.º e 364.º do Código de Processo Penal, ex vi artigo 271.º, n.º 6, do Código de Processo Penal.

Por último, o legislador de 2007 entendeu ainda ser necessário prever expressamente a possibilidade das inquirições realizadas em sede de inquérito, ou de instrução, ainda que com integral respeito do formalismo previsto nos referidos artigos 271.º e 294.º do Código de Processo Penal poderem ser novamente efectuadas em sede de audiência de discussão e julgamento, o que apenas deverá acontecer quando possível, não ponha em causa a saúde

comparência das vítimas em audiência de julgamento. Nos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, a antecipação das declarações de vítima menor de 18 anos, nos termos deste artigo, é sempre obrigatória (n.º 2). (…) A norma é evidentemente ditada por uma especial preocupação do legislador na protecção da vítima menor”.

Igualmente no mesmo sentido, GASPAR, António Henrique, CABRAL, José António Henriques dos Santos, COSTA, Eduardo Maia, MENDES, António Jorge de Oliveira, MADEIRA, António Pereira, GRAÇA, António Pires Henriques da,

“Código de Processo Penal Comentado”, Editora Almedina, 2016, 2.ª edição revista, p. 917.

8 No mesmo sentido, o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 9 de Novembro de 2009, proferido no

âmbito do processo n.º 371/07.8TAFAF.G1, disponível em www.dgsi.pt, no qual se defendeu que “De acordo com o

artigo 271.º do Código de Processo Penal, na redacção conferida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, as declarações para memória futura de menor vítima de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual em inquérito constituem acto obrigatório e a documentar através de registo áudio ou audiovisual, valendo como prova de julgamento, independentemente do menor vir a ser novamente ouvido durante a audiência”.

9 Ex vi artigo 271.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.

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3. Enquadramento jurídico, prática e gestão processual

física ou psíquica de pessoa que as deva prestar novamente (artigo 271.º, n.º 8, do Código de Processo Penal).

Perante o caminho que tem vindo, neste âmbito, a ser traçado pelo legislador, dúvidas inexistem de que, actualmente, além da finalidade estritamente processual que visavam acautelar, através das declarações para memória futura, o legislador pretende ainda salvaguardar interesses relacionados com as próprias pessoas a inquirir, em especial as vítimas de crimes. Isto porque, o facto de as vítimas serem obrigadas a repetir, por inúmeras vezes, aquilo que vivenciaram, perante entidades diversas, não só contamina as declarações prestadas, como fá-las reviver a situação vivenciada tantas vezes quantas aquelas que as contam, o que resulta, nas mais das vezes, na sua revitimização, situação que, sabe-se hoje, deve ser evitada a todo o custo, em especial quando estamos perante menores de idade10.

4.2. O objecto das declarações para memória futura

As declarações para memória futura e o respectivo regime processual encontram-se previstos nos artigos 271.º e 294.º do Código de Processo Penal.

De acordo com as referidas normas legais, as declarações para memória futura apenas podem ter por objecto os actos processuais taxativamente previstos, os quais, actualmente, são os seguintes:

i. A inquirição de testemunhas, assistentes ou de partes civis, quando padeçam de doença grave ou venham a deslocar-se para o estrangeiro, sendo, nessa medida, previsível a impossibilidade de serem ouvidas em sede de audiência de discussão e julgamento ou quando sejam vítimas dos crimes de catálogo.

ii. A tomada de declarações de peritos e consultores técnicos, quando os mesmos padeçam de doença grave ou venham a deslocar-se para o estrangeiro e, por esse motivo, seja previsível a impossibilidade de serem ouvidos em sede de audiência de discussão e julgamento;

iii. Acareações entre testemunhas, assistentes ou partes civis, desde que um dos intervenientes na diligência sofra de doença grave ou venha a ser previsível a sua deslocação para o estrangeiro, inviabilizando a realização da diligência em sede de audiência de discussão e julgamento ou quando algum dos intervenientes seja vítima dos crimes previstos nos supra referidos normativos legais.

Sem prejuízo do carácter excepcional destas normas e, nessa medida, da impossibilidade da sua aplicação analógica, alguns autores defendem que a mesma pode ainda ser aplicada às seguintes situações:

10 Neste sentido, refere CATARINA JOÃO CAPELA RIBEIRO que “(…) a repetição de inquéritos acerca do mesmo

assunto, para além de ser penosa para a criança, leva a distorções da informação e, consequentemente, a alterações da percepção e relato do facto vivido, o que dificulta claramente a investigação judicial e a integração psicológica da situação por parte da criança” (in “A criança na justiça: trajectórias e significados do processo judicial de crianças vítimas de abuso sexual intrafamiliar”, Almedina, 2009, p. 121).

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i. Reconhecimentos feitos por testemunhas, assistentes ou partes civis, quando sofram de doença grave ou venha a ser previsível a sua deslocação para o estrangeiro, inviabilizando a sua presença na audiência de discussão e julgamento ou quando a referida testemunha, assistente ou parte civil tenha sido vítima de algum dos crimes mencionados no artigo 271.º, n.º 1, do Código Penal (tráfico de pessoas, crimes contra a liberdade ou autodeterminação sexual);

ii. Reconstituições de factos com participação de testemunha, assistente ou parte civil, que padeça de doença grave ou que venha a deslocar-se para o estrangeiro, inviabilizando, assim, a sua presença em julgamento ou quando tenha sido vítima de crimes do catálogo.

Sobre esta questão, Paulo Pinto de Albuquerque esclarece que as declarações prestadas em sede de reconhecimentos e reconstituições são, efectiva e objectivamente, declarações, podendo, nessa medida e com os mesmos fundamentos, justificar-se a sua tomada de forma antecipada11.

Opinião diversa tem Cruz Bucho o qual defende que “A circunstância de no reconhecimento e de na reconstituição do facto serem ou poderem ser produzidas declarações pelas testemunhas, assistentes ou partes civis não permite reconduzir aqueles meios de prova à natureza de prova testemunhal ou de prova por declarações do assistente e das partes civis. E, diferentemente do que sucede com a acareação, aqueles meios de prova não foram expressamente inseridos no n.º 7 do artigo 271º, ao contrário do que sucede em Itália, onde o Codice de Procedura Penal de 1988 - cujo Projetto Preliminare inspirou manifestamente o legislador penal português - prevê expressamente que o incidente probatorio tenha por objecto para além da prestação do testemunho a realização de exames de pessoas, de perícias, de reconstituição de facto e do reconhecimento [artigo 392.º, alíneas c), e), f) e g)].

Conclui-se, deste modo, que nem o reconhecimento nem a reconstituição de facto podem ser objecto de produção antecipada de prova ao abrigo do disposto nos artigos 271.º e 294.º, ambos do CPP”, acabando, no entanto, este autor por admitir que à “(…)testemunha, ao assistente ou à parte civil, em caso de doença grave ou deslocação para o estrangeiro, que a impeça de ser ouvida em julgamento, ou se ela for vítima dos crimes do catálogo legal, possam ser tomadas declarações para memória futura sobre o reconhecimento ou a reconstituição de factos já realizadas e em que interveio”12.

11 “Com efeito, em todos os casos referidos a prestação de declarações pela testemunha, pelo assistente ou pela

parte civil é registada para memória futura porque valem as particulares razões de urgência expressamente previstas na lei e só estas. As declarações prestadas em reconhecimento ou em reconstituição do facto são também “declarações” e, por isso, aquelas declarações estão incluídas no âmbito literal da disposição do artigo 271.º” (in, “Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, Editora Universidade Católica, 3.ª edição, 2009, p. 701), mas também GASPAR, António Henrique,

CABRAL, José António Henriques dos Santos, COSTA, Eduardo Maia, MENDES, António Jorge de Oliveira, MADEIRA, António Pereira, GRAÇA, António Pires Henriques da, “Código de Processo Penal Comentado”, Editora Almedina, 2016, 2.ª edição revista, p. 919.

12 BUCHO, Cruz, “Declarações para memória futura (elementos de estudo)”, 02-04-2012, pp. 21 e 22.

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