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I. Das Declarações para memória Futura

8. Hiperligações e referências bibliográficas 1 Hiperligações

1.9. Leitura e valoração das declarações para memória futura em audiência de julgamento O regime da reprodução ou leitura das declarações para memória futura tomadas nos termos

2.3.2. O papel do técnico especialmente habilitado para acompanhar a vítima

Prossegue o n.º 4 do artigo 271.º do Código de Processo Penal em análise que deve “o menor ser assistido no decurso do acto processual por um técnico especialmente habilitado para o seu acompanhamento, previamente designado para o efeito”.

Abraçou-se idêntica solução legal quer nos casos de vítimas de violência doméstica – artigo 33.º, n.º 3, da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro – quer em relação às testemunhas especialmente vulneráveis – artigo 27.º da Lei n.º 93/99, de 14 de Julho e 24.º, n.º 5, do Estatuto da Vítima.

A formulação vaga da lei tem dado azo a que os técnicos designados tenham as mais diversas origens e formação.46 Não obstante, as funções do técnico a que a lei se refere visam, não

apenas o apoio necessário no âmbito da diligência de declarações para memória futura mas, igualmente, um acompanhamento prévio e posterior em ordem a que o acto referido seja o menos impactante possível e emocionalmente prejudicial, muito em especial quando a vítima é uma criança, pelo que as nossas atenções se centrarão nestes casos.

44 CARMO, Rui do, op. cit., p. 133; Neves, Andreia, Fernandes, Bárbara R. O. e Almeira, Íris, “Workshop: Boas

práticas nas Declarações para Memória Futura”, disponível em

https://apav.pt/25/images/PDF/Workshop_Boa_Praticas_nas_Declara%C3%A7oes_para-Memoria_Futura.pdf.

45 Entre nós o sistema judicial está sensibilizado para tais necessidades. Veja-se o espaço criado e especialmente

concebido para a audição de menores no DIAP de Lisboa, “Sala DIAP Júnior”, inaugurada no ano de 2010 – o local pode ser “visitado” em vídeo disponível no site da RTP, em: https://arquivos.rtp.pt/conteudos/diap-junior/.

46 Os técnicos que fazem este acompanhamento são provenientes, muitas vezes, da Direcção-Geral de Reinserção

Social e dos Serviços Prisionais (DGRSP), do Gabinete de Apoio à Vítima (GIAV), da Instituição que acolhe a criança ou que lhe vem já fazendo anterior acompanhamento ou, por vezes, é mesmo designado o psicólogo que, nos termos do artigo 131.º, n.ºs 2 e 3, do Código de Processo Penal procedeu a perícia sobre a personalidade. Note-se, contudo, que deve ser convenientemente ponderada a designação de um psicólogo que possa retrair o menor e constituir um óbice à recolha de um depoimento fluente e fidedigno (por exemplo, o da Instituição onde o mesmo ser encontra acolhido, com o qual aquele se pode sentir desconfortável).

DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA

4. Enquadramento jurídico, prática e gestão processual

De facto, se a experiência traumática da criança com origem nos factos em investigação já é, de per si, extremamente prejudicial para o são e integral desenvolvimento daquela, o “recontar” dos factos de que foi vítima pode despoletar sentimentos igualmente prejudiciais, redundando, por vezes, numa autêntica “revivência” dos mesmos, o que justifica a intervenção curial de um técnico especializado que, em regra, deverá ser um psicólogo, no acompanhamento do menor.

Assim, o papel do técnico especialmente habilitado a que a lei faz menção não se resume ao acompanhamento do menor ao longo da diligência propriamente dita mas reconduz-se a uma intervenção centrada, no essencial, em três fases fundamentais:

a) A fase de pré-inquirição, que se traduz em encontros anteriores à diligência entre o técnico e a criança para avaliação do seu desenvolvimento global, ao estabelecimento de uma relação de confiança e à respectiva preparação para a diligência propriamente dita, com eventual recurso a estratégias, se necessário, em ordem a regular e reduzir a sua ansiedade;

b) A fase de inquirição, no momento da diligência em si mesma, em que o técnico monitoriza o comportamento do menor e, idealmente, dirige a sua inquirição; c) A fase pós-inquirição, com vista a analisar o desempenho do menor e diminuir a tonalidade emocional do acontecimento e, ainda, se necessário sensibilizar os cuidadores/progenitores para os cuidados a ter após a inquirição.47

Uma questão central que se tem colocado, em especial no seio da doutrina, quer ao nível nacional, quer internacionalmente, é a de saber se a inquirição dos menores vítimas de crimes sexuais não deveria ser levada a cabo pelo próprio técnico, psicólogo forense, que a lei impõe que acompanhe o menor ao longo da diligência, que detém uma formação especializada que lhe permite fazer uma condução da audição do menor que, por um lado, promova a fidedignidade e sinceridade do depoimento e que, por outro, diminua os riscos de revitimização, já que aquele se encontra devidamente preparado e munido de estratégias que permitem lidar com o sofrimento da vítima.

Ligada a tal questão surge uma outra que atine ao teor literal da norma ínsita no n.º 5 do artigo 271.º que estatui que “a inquirição é feita pelo juiz” e que se prende com a (in)compatibilização da lei processual penal actual com diversa forma de proceder, mormente permitindo que seja o técnico com formação em psicologia a orientar a inquirição e colocar as questões, ainda que sob a orientação do juiz e com a presença do Ministério Público e restantes sujeitos processuais, aproximando, assim, o sistema português aos instrumentos supranacionais a que Portugal está vinculado.

Na verdade, é, desde logo, recomendado nas Directrizes do Comité de Ministros do Conselho da Europa sobre uma Justiça adaptada às crianças, cujo ponto 64 prescreve que “Os interrogatórios e a recolha de depoimentos de crianças devem, tanto quanto possível, ser conduzidos por profissionais qualificados. Deve envidar-se todos os esforços para que as

47 GIAV, “Declarações para Memória Futura e o Papel do Psicólogo Forense”, 2 de Maio de 2014, Edição 1, Volume

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4. Enquadramento jurídico, prática e gestão processual

crianças prestem depoimento no ambiente mais favorável possível e nas condições mais adequadas, tendo em atenção a sua idade, maturidade e nível de compreensão e quaisquer dificuldades de comunicação que possam ter”.48

Por sua vez, o artigo 35.º da Convenção de Lanzarote a que já vimos fazendo referência, consigna que as audições da criança devem ser efectuadas por profissionais com formação adequada a esse fim.

Perante este quadro, impõe-se questionar se, perante a redacção actual da lei, o Estado Português, enquanto Parte na Convenção aludida e que vincula os Estados signatários, tomou efectivamente as necessárias medidas legislativas com vista a garantir à criança a sua audição por alguém com formação especializada para esse fim.

O magistrado do Ministério Público jubilado Rui do Carmo, com vista a ultrapassar tais vicissitudes e a encontrar uma solução conforme com a Convenção de Lanzarote, propôs a nomeação de um técnico com formação apropriada para auxiliar o juiz na condução e execução das declarações para memória futura, numa dupla vertente: assegurar que as condições do espaço e o ambiente da diligência são amigáveis e garantir que a inquirição é conduzida tendo em consideração a sua idade e nível de desenvolvimento e por forma a obter um relato o mais completo possível e sem contaminações decorrentes, nomeadamente, do modo como a inquirição é conduzida e as perguntas são formuladas.49 Ou seja, no fundo, este

técnico não seria aquele a que se refere a lei no n.º 4 do artigo 271.º do Código de Processo Penal, mas um outro, que assumisse as funções de apoio do juiz na execução e inquirição nas melhores condições e de modo cientificamente informado não havendo, contudo, no entendimento daquele autor, qualquer óbice a que o mesmo técnico desempenhasse ambas as funções.

Ainda que os propósitos sejam meritórios, não cremos que tal fosse possível de concretização em virtude de todos os problemas práticos que convocaria, a começar pela gestão da audiência e mediação das perguntas (entre o juiz e o técnico e, ainda, entre o juiz, os restantes intervenientes que podem formular perguntas adicionais e o técnico). Além do mais, a falta de meios e técnicos na DGRSP (de resto, mais vocacionada para a problemática dos arguidos e não das vítimas) e no GIAV redundaria na assimilação de ambos os papéis pelo mesmo técnico, o que, em termos práticos e acima de tudo logísticos, não se nos afigura concretizável.

Resta questionar se a interpretação literal da norma que consagra que a inquirição é feita pelo juiz se coaduna, ainda, com o entendimento de que pode ser o técnico especialmente habilitado para acompanhar o menor a proceder à sua audição, formulando ele as perguntas. Se perspectivarmos o psicólogo como um “intérprete” que fala a mesma língua do menor, à semelhança daquele que é nomeado às testemunhas que não conhecem a língua portuguesa ou que recorrem à linguagem gestual, um tal entendimento parece já não colidir com o teor da norma aludida.

48 Adoptado pelo Comité de Ministros do Conselho da Europa em 17-11-2010, disponível em

https://rm.coe.int/16806a45f2

49 CARMO, Rui do, op. cit., 137.

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Por fim, ainda a propósito da questão sob análise, atente-se no projecto-piloto implantado na Comarca do Porto que surgiu na sequência de um estudo sobre as declarações para memória futura no sistema judicial português, desenvolvido por Carlos Peixoto e mais sete investigadores, publicado no final de Março de 2017 e que concluiu que a generalidade das perguntas são de escolha forçada e direccionadas, o que pode inquinar a maioria dos detalhes fornecidos pelas crianças aos juízes e afectar a credibilidade do seu testemunho.

O referido projecto-piloto consiste na inquirição dos menores para memória futura por um psicólogo forense com formação para o efeito, e não por um juiz de instrução criminal, numa sala com vidro unidireccional, onde estão presentes o JIC, o magistrado do Ministério Público e os advogados, sem que a vítima se aperceba da sua presença. Não obstante, a diligência realiza-se sob a supervisão do juiz de instrução criminal, com garantia do respeito pelo princípio do contraditório, já que, ao primeiro intervalo da audição, o técnico desloca-se à sala de observação onde estão os restantes intervenientes e recebe as questões formuladas por todos.

Idêntico procedimento tem vindo a ser adoptado, desde inícios de 2016, na Comarca de Aveiro (sobretudo, nos casos de vítimas menores de abusos sexuais que, por vergonha e na presença de estranhos, revelam maior desconforto em falar dos factos objecto do processo) sendo, também, a inquirição realizada por psicólogo, inquirição essa que é acompanhada em tempo real pelo Juiz, Ministério Público e Advogados presentes, instalados numa sala contígua, através de um sistema wireless (câmara GoPro) que permite o acompanhamento por áudio e vídeo da tomada de declarações que são gravadas em áudio através do sistema informático existente no Tribunal e em vídeo inserido em DVD que acompanha o processo.

De facto, parece-nos ser esta a fórmula ideal com vista a proteger a criança e a impedir ou, pelo menos, minorar, tanto quanto possível, a sua revitimização, esperando, de resto, que tal prática chegue a todas as Comarcas do país.

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