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IV. Hiperligações e referências bibliográficas

5. Gestão processual

4.3. Os pressupostos da tomada de declarações para memória futura

Conforme supra referimos e como decorre do respectivo regime processual, as declarações para memória futura constituem uma excepção ao princípio da imediação, na medida em que o juiz do julgamento pode tomar em consideração, na sua tomada de decisão, provas que não foram produzidas perante o próprio e, nessa medida, não foram directamente contraditadas em sede de audiência de discussão e julgamento.

Apesar de inicialmente terem sido pensadas com fins puramente processuais, relacionados com a descoberta da verdade material e a preservação da prova, as declarações para memória futura visam hoje também (e em nosso entender de forma preponderante) a protecção das vítimas de crimes, em especial quando estas sejam menores de idade.

Ora, consoante o fim visado, as declarações para memória futura podem ser de carácter facultativo, ou obrigatório.

Com efeito, o Ministério Público estará obrigado a promover junto do Juiz de Instrução Criminal, sob pena de nulidade sanável (ex vi artigo 120.º, n.º 2, al. d), do Código de Processo Penal13), a tomada de declarações para memória futura quando esteja em causa a prática de

crime contra a liberdade ou autodeterminação sexual e a vítima seja menor de idade. Obrigação essa que cessa quando a vítima atinja a maioridade (cfr. artigo 271.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal).

Não decorre daqui, frise-se, a possibilidade de o Ministério Público protelar no tempo a referida diligência, a fim de permitir que a vítima atinja a maioridade. Com efeito, além de contrário à lei e à descoberta da verdade material (fim último do processo crime), também o artigo 28.º, n.º 1, da Lei de Protecção de Testemunhas (Lei n.º 93/99, de 14 de Julho), prevê que “o depoimento ou as declarações da testemunha especialmente vulnerável deverão ter lugar o mais brevemente possível após a ocorrência do crime” (cfr. artigo 26.º, n.º 2, do citado diploma legal), previsão que, em nosso entendimento, inviabiliza tal possibilidade.

Nas demais situações, a tomada de declarações para memória futura é facultativa e dependerá, em primeira linha, da estratégia processual adoptada pelo Ministério Público em sede de investigação criminal, mas não só, na medida em que o requerimento pode ser também formulado pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis, nos termos do disposto no artigo 271.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, sendo que, em nosso entender, quando legalmente admissível será sempre benéfica a sua realização.

Com efeito, a prova testemunhal, muitas vezes fulcral para a descoberta da verdade, é uma prova que tende a deteriorar-se com o passar do tempo. Sendo certo que a investigação criminal pode alongar-se no tempo (e muitas vezes alonga-se), fazendo com que entre os

13 LOBO, Fernando Gama, “Código de Processo Penal Anotado”, Editora Almedina, 2015, p. 495 e GASPAR, António

Henrique, CABRAL, José António Henriques dos Santos, COSTA, Eduardo Maia, MENDES, António Jorge de Oliveira, MADEIRA, António Pereira, GRAÇA, António Pires Henriques da, “Código de Processo Penal Comentado”, Editora Almedina, 2016, 2.ª edição revista, p. 918.

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factos e a audiência de discussão e julgamento medeie um período de tempo alargado. Tais circunstâncias fazem com que, por vezes, o recurso às declarações para memória futura seja essencial à preservação da prova. Acresce que, actualmente, inexistem quaisquer outros interesses que justifiquem a recusa ao recurso a esta produção antecipada de prova, isto porque, em primeiro lugar, o contraditório do arguido é assegurado pela obrigatoriedade da presença do defensor na diligência e, por outro lado, a pessoa visada pode ser notificada para, em sede de audiência de discussão e julgamento, ser, novamente, inquirida, excepto se tal puser em causa a sua saúde física ou psíquica (artigo 271.º, n.º 8, do Código de Processo Penal).

Nas situações em que as declarações para memória futura assumem carácter facultativo, as mesmas dependem do preenchimento de um de três pressupostos:

i. A testemunha (assistente, parte civil, perito ou consultor técnico) sofrer de doença, física ou psíquica, grave e actual que previsivelmente a impeça de comparecer e ser ouvida em sede de audiência de discussão e julgamento14. Como

refere PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE a “gravidade” medir-se-á pelo efeito inibidor da doença na pessoa, podendo, por isso, aqui incluir-se a doença física permanente, a doença psíquica crónica ou degenerativa e ainda a “doença de efeito intermitente em que haja risco considerável de ocorrência de um novo episódio da doença”15;

ii. A testemunha (assistente, parte civil, perito ou consultor técnico) ter de se deslocar para o estrageiro e estar, nessa medida, previsivelmente impedida de ser ouvida em sede de audiência de discussão e julgamento. Resulta daqui que a deslocação justificadora do recurso à produção antecipada da prova há-de ser por tempo indeterminado ou superior àquele durante o qual é de supor que o julgamento decorrerá16. Importa ainda a este respeito notar que as deslocações no

interior da União Europeia tendem a ser excluídas do campo de aplicação deste instituto, atenta, desde logo, a existência de inúmeros instrumentos de cooperação entre os Estados-Membros;

iii. A testemunha em questão ter sido vítima de crimes de tráfico de pessoas e/ou contra a liberdade e autodeterminação sexual (cfr. artigo 271.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).

O Regime Jurídico da Violência Doméstica (introduzido pela Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro) veio também ele prever, no seu artigo 33.º, a possibilidade de serem tomadas declarações para memória futura às vítimas de violência doméstica, ao assistente e partes civis

14 Como resulta da letra da lei, a tomada de declarações para memória futura em caso de doença ou deslocação

para o estrangeiro depende da formulação de um juízo de prognose sobre a impossibilidade futura de audição da testemunha. Já nas situações em que a impossibilidade de comparência é imprevisível (em virtude de falecimento, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade duradoira), o Código de Processo Penal, prevê a possibilidade de leitura das declarações prestadas perante autoridade judiciária (artigo 356.º, n.º 4, do Código de Processo Penal).

15 ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de, in, “Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e

da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, Editora Universidade Católica, 3.ª edição, 2009, p. 701.

16 GASPAR, António Henrique, CABRAL, José António Henriques dos Santos, COSTA, Eduardo Maia, MENDES,

António Jorge de Oliveira, MADEIRA, António Pereira, GRAÇA, António Pires Henriques da, “Código de Processo

Penal Comentado”, Editora Almedina, 2016, 2.ª edição revista, p. 918.

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dos referidos processos e, bem assim, aos peritos e de consultores técnicos. Todavia, a iniciativa para a realização da diligência apenas pode partir do Ministério Público ou da própria vítima (n.º 1 da referida norma).

No mesmo sentido, o artigo 28.º, n.º 2, da Lei de Protecção de Testemunhas (Lei n.º 93/99, de 14 de Julho) estabelece que “Sempre que possível, deverá ser evitada a repetição da audição da testemunha especialmente vulnerável durante o inquérito, podendo ainda ser requerido o registo nos termos do artigo 271.º do Código de Processo Penal”.1718

Ou seja, quando confrontado com a existência de uma testemunha tida por especialmente vulnerável nos termos do disposto no artigo 26.º, n.º 2, do referido diploma legal19, o

Ministério Público deverá, sempre que possível, requerer que lhes sejam tomadas declarações para memória futura, desde logo com vista a evitar a sua vitimização secundária, bem como a distorção das declarações a serem prestadas, situação que habitualmente tenderá a acontecer quanto maior for o hiato temporal decorrido entre os factos presenciados e a sua inquirição. 4.3.1. Da prévia constituição como arguido

Durante algum tempo, a melhor jurisprudência e doutrina discutiram a necessidade de, previamente à tomada de declarações para memória futura, o suspeito ter sido já constituído como arguido. Com efeito, entendia-se que apenas desta forma poderia o contraditório ser efectivamente exercido, na medida em que somente o arguido, porque interveniente directo nos factos, teria conhecimento da verdade dos mesmos e, nessa medida, podia colocar em causa a versão apresentada pela testemunha, assistente ou parte civil ou até mesmo as declarações prestadas pelos peritos ou consultores técnicos.

Entendemos, tal como a maioria da jurisprudência actual20, que a realização e a

admissibilidade da tomada de declarações para memória futura não está (e ainda que em oposição com doutíssima doutrina21) dependente da prévia constituição como arguido de

17 Também o Estatuto da Vítima (aprovado pela Lei n.º 130/2015, de 04 de Setembro), veio estabelecer, no seu

artigo 24.º a possibilidade de serem tomadas declarações para memória futura à vítima especialmente vulnerável.

18 Com a entrada em vigor desta norma, a tomada de declarações para memoria futura deixou de ter uma mera

função cautelar e de proteger as vítimas de certo tipo de crimes, passando a abranger todas as pessoas que se incluam no amplo conceito de testemunha, tal como ele se encontra definido pelo artigo 2.º, al. a), da Lei n.º 93/99, de 14 de Julho, e a abarcar qualquer tipo legal de crime.

19 A especial vulnerabilidade pode decorrer designadamente “(…) da sua diminuta ou avançada idade, do seu estado

de saúde ou do facto de ter de depor ou prestar declarações contra pessoa da própria família ou de grupo social fechado em que esteja inserida numa condição de subordinação ou dependência” (cfr. artigo 26.º, n.º 2, do referido

diploma legal).

20 Neste sentido, exemplificativamente podem mencionar-se os seguintes arestos: acórdão do Supremo Tribunal de

Justiça, de 25 de Março de 2009, proferido no âmbito do processo n.º 09P0486 e relatado pelo Desembargador Fernando Fróis; de 16 de Junho de 2004, proferido no âmbito do processo n.º 049721 e relatado pelo Desembargador Henriques Gaspar; o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 1 de Fevereiro de 2006, no âmbito do processo n.º 0515949, relatado pelo Desembargador Jorge França; de 12 de Outubro de 2005, proferido no âmbito do processo n.º 0544648 e relatado pelo Desembargador Pinto Monteiro todos disponíveis em www.dgsi.pt.

21 Meramente a título de exemplo veja-se, os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, de 18 de Abril de 2001, na

Colectânea de Jurisprudência, ano XXVI, tomo 2, p. 229 e do Tribunal da Relação de Évora, de 29 de Março de 2005, também na Colectânea de Jurisprudência, ano XXX, tomo 2, p. 269, mas também Damião da Cunha (“O regime

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qualquer suspeito, ou sequer a existência de um suspeito determinável (ainda que tenhamos por certo que, mesmo nestas situações, é essencial a nomeação de defensor ao futuro arguido – cfr. artigos 64.º, n.º 1, al. f), e 271.º, n.º 3, última parte, do Código de Processo Penal22)

desde logo porque, no caso concreto, podem verificar-se circunstâncias que se sobreponham à delonga inerente à investigação criminal e que, nessa medida, importem, desde logo acautelar. Neste sentido importa, desde logo, notar que a letra da lei não impõe a presença do arguido na diligência, mas tão-somente do defensor. Com efeito, nos termos do disposto no artigo 271.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, são comunicados, ao Ministério Público, ao arguido, ao defensor e aos advogados do assistente e das partes civis, o dia, a hora e o local da prestação do depoimento, sendo apenas obrigatória a comparência do Ministério Público e do defensor.

Em primeiro lugar, entendemos que daqui não podemos retirar que a diligência apenas poderá ser realizada depois da constituição como arguido, mas antes que, tendo-se esta já verificado, ao mesmo deve ser dado conhecimento do despacho que autorizou a realização da diligência e que procedeu ao respectivo agendamento.

Acresce que a obrigatoriedade da presença do defensor decorre, em primeira linha, da necessidade de assegurar ao arguido (encontre-se ele já constituído no processo, ou não) o exercício pleno do contraditório23, enquanto garantia elementar do seu direito de defesa

constitucionalmente garantido (cfr. artigo 32.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa). E isto porque, constituindo as declarações para memória futura uma excepção ao princípio da imediação (artigo 355.º do Código de Processo Penal) e da produção de prova em sede de audiência de discussão e julgamento, sempre terá de ser assegurado ao arguido a possibilidade de contraditar o ali declarado, podendo, inclusivamente, formular questões que pretenda ver esclarecidas pela testemunha, tal como aconteceria se a mesma viesse a ser inquirida em sede de audiência de discussão e julgamento (artigo 271.º, n.º 5, do Código de Processo Penal).

Sem prejuízo, a verdade é que, no caso concreto, podem verificar-se circunstâncias que não permitam, em tempo útil, a constituição de determinada pessoa como arguido, ou sequer a identificação, em concreto, de um qualquer suspeito, mas que, ainda assim, impliquem, sob pena de perda da prova, por exemplo, a realização da referida diligência processual.

processual de leitura de declarações na audiência de julgamento – artigos 356.º e 357.º do CPP – algumas reflexões à luz de uma recente evolução jurisprudencial”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, n.º 7, 1997, p. 405), Mouraz Lopes (“O interrogatório da vítima nos crimes sexuais: as declarações para memória futura”, Sub Júdice, n.º 26, 2003, p. 16) e Joaquim Malafaia (“O acusatório e o contraditório nas declarações prestadas nos actos de instrução e nas declarações para memória futura”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, n.º 14, 2004, pp. 532-533).

22 Sob pena de uma compressão desproporcionada do direito ao defensor e ao exame contraditório das provas,

decorrentes do princípio da defesa efectiva num processo equitativo (ex vi artigos 20.º, n.ºs 1 e 2 e 32.º, n.ºs 1, 3 e 5, da Constituição da República Portuguesa, artigo 6.º, n.º 3, al. c), da Convenção Europeia dos Direitos Humanos e artigos 47.º e 48.º, n.º 2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia).

23 O qual, nas palavras de António Gama se traduz na “estruturação da audiência de julgamento e dos actos

instrutórios que a lei determinar em termos de um debate ou discussão entre a acusação e a defesa” (Reforma do

Código de Processo Penal: Prova testemunhal, declarações para memória futura e reconhecimento”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 19, N.º 3, Julho-Setembro, 2009, p. 398).

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Sobre esta questão em particular, o Tribunal da Relação do Porto pronunciou-se já tendo, em nossa opinião, com integral correcção, defendido a admissibilidade da tomada de declarações para memória futura, em momento prévio à constituição como arguido, desde logo, porque assim o pode aconselhar “(…) a protecção dos interesses na realização da justiça e da descoberta da verdade material (…)”24, sendo apenas necessário que ao arguido

posteriormente constituído (sem prejuízo da sua representação na diligência através do defensor nomeado), seja dada a real possibilidade de contraditar as declarações assim prestadas.

E continua o douto aresto a esclarecer que tal solução decorre, não só, da letra do artigo 271.º do Código de Processo Penal, o qual não define como pressuposto das declarações para memória futura, a prévia constituição de arguido, ou que o inquérito corra contra pessoa determinada; como também do facto de as referidas declarações não serem “uma antecipação parcial da audiência de julgamento, apesar do que consta na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 109/X, que esteve na base da norma, dado que a prova aí recolhida pode nem vir a ser utilizada no julgamento, por exemplo por se ter tornado desnecessária, e que há outros desvios importantes em relação às regras da audiência” e ainda do facto de, não correndo contra pessoa determinada o inquérito, não ter sentido falar em contraditório, desde logo, por inexistir qualquer interesse em confronto e também por existirem outras situações em que a produção de prova pode verificar-se sem a presença do arguido, seja a seu pedido, seja por imposição2526.

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