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1. As Perícias

1.1. O Conceito de Perícia

O regime da prova pericial encontra-se inserido no Livro III, Título II (Meios de Prova), Capítulo VI, do Código de Processo Penal, estando, assim, regulado nos seus artigos 151.º a 163.º. Tais disposições legais indicam quando a perícia tem lugar e explicam o seu procedimento. Não obstante, em nenhuma das referidas normas é fornecida uma definição de perícia.

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7. Enquadramento jurídico, prática e gestão processual

A doutrina tem vindo, deste modo, a elaborar diversas possíveis definições de perícia.

De acordo com GERMANO MARQUES DA SILVA, “a perícia é a actividade de percepção ou apreciação dos factos efectuada por pessoas dotadas de especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos”1.

Segundo MANUEL MAIA GONÇALVES, trata-se de um “meio de prova em que a percepção ou apreciação dos factos recolhidos exigem conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos de especialidade”2.

Para MANUEL DE ANDRADE, a perícia “traduz-se na percepção, por meio de pessoas idóneas para tal efeito designadas, de quaisquer factos presentes, quando não possa ser directa e exclusivamente realizada pelo juiz, por necessitar de conhecimentos científicos e técnicos especiais, ou por motivos de decoro ou de respeito pela sensibilidade (legítima susceptibilidade) das pessoas em quem se verificam tais factos; ou na apreciação de quaisquer factos (na determinação das ilações que deles se possam tirar acerca doutros factos), caso dependa de conhecimentos daquela ordem, isto é, de regras de experiência que não fazem parte da cultura geral ou experiência comum que pode e deve presumir-se no juiz, como na generalidade das pessoas instruídas e experimentadas”3.

Constitui, assim, a pedra angular desta definição o facto de as perícias terem, necessariamente, de ser elaboradas por pessoas com especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos, isto é, por peritos.

Neste sentido, a fim de contribuir para um conceito operativo de perícia, JOSÉ CARLOS DE OLIVEIRA aponta três critérios: “o critério objectivo – factos que reclamem conhecimentos especiais que o julgador comprovadamente não domina; o critério subjectivo – realizada por indivíduos devidamente habilitados com especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos; e o critério formal – ordenada por autoridade judiciária competente, a coberto de despacho prévio, em regra acto próprio, mas com possibilidade de delegação”4.

Quanto aos princípios subjacentes à realização de perícia, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 07-06-2017, no âmbito do processo n.º 590/12.5JDLSB.L1-9, cujo relator foi a Desembargadora Filipa Costa Lourenço, aclara que “(…) para a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem uma perícia deve cumprir uma tríplice perspectiva: ver assegurada a imparcialidade do(s) perito(s); realizar-se em prazo razoável; sujeitar-se aos princípios da igualdade de armas e do contraditório”5.

1 GERMANO MARQUES DA SILVA, Curso de Processo Penal, II volume, 4.ª edição revista e actualizada, Editorial

VERBO, 2008, p. 215.

2 MANUEL LOPES MAIA GONÇALVES, Código de Processo Penal Anotado, 17.ª edição revista e actualizada, Coimbra,

Almedina, 2009 – comentário ao artigo 151.º.

3 MANUEL A. DOMINGUES DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra editora, 1976, p. 261. 4 JOSÉ CARLOS DE OLIVEIRA, Exames e Perícias: (Des)Construir Conceitos, Lisboa, Salão Nobre da Ordem dos

Advogados, 04-02-2016, p. 15, disponível em https://portal.oa.pt/media/117975/e47a3007-21e4-4d94-a4c4- d261fdce7ece.pdf.

5 Acórdão disponível em www.dgsi.pt.

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1.2. Despacho que ordena a perícia

Nos termos do artigo 154.º do Código de Processo Penal, a perícia é ordenada oficiosamente ou a requerimento.

Tem legitimidade para determinar a realização de perícia a autoridade judiciária, que poderá ser o Ministério Público, o Juiz de Instrução ou o Juiz de Julgamento, conforme estejamos em fase de inquérito, instrução ou julgamento.

Importa, contudo, no que concerne à fase de inquérito, ter em consideração o disposto no artigo 270.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, que prevê que “o Ministério Público pode, porém, delegar em autoridades de polícia criminal a faculdade de ordenar a efectivação da perícia relativamente a determinados tipos de crime, em caso de urgência ou de perigo na demora, nomeadamente quando a perícia deva ser realizada conjuntamente com o exame de vestígios. Exceptuam-se a perícia que envolva a realização de autópsia médico-legal, bem como a prestação de esclarecimentos complementares e a realização de nova perícia nos termos do artigo 158.º”.

Além disso, como veremos adiante, há casos em que, na fase de inquérito, é ao juiz de instrução e não ao Ministério Público que incumbe determinar a realização da perícia, porquanto esta interfere com direitos fundamentais das pessoas.

Importa, ainda, salientar a importância de o despacho que ordena a realização de perícia dever definir, com precisão e clareza, o objecto da mesma. De facto, da leitura do artigo 154.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal, resulta que o referido despacho deve conter “a indicação do objecto da perícia e os quesitos a que os peritos devem responder, bem como a indicação da instituição, laboratório ou o nome dos peritos que realizarão a perícia”, bem como “toda a informação relevante” para o efeito.

A este propósito, GERMANO MARQUES DA SILVA afirma que “a matéria das perícias é muito delicada porque muitas vezes os peritos extravasam a sua competência, não se limitando a procurar meios de prova sobre os factos ou a apreciar as provas que lhe são submetidas para a apreciação, formulando verdadeiros juízos sobre a responsabilidade com recurso a elementos que não foram validamente admitidos no processo ou que não lhes compete apreciar”6.

1.3. A competência do juiz na determinação da realização de perícia sobre características físicas ou psíquicas de pessoas que não hajam prestado o seu consentimento

De acordo com o artigo 154.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, “quando se tratar de perícia sobre características físicas ou psíquicas de pessoa que não haja prestado consentimento, o despacho previsto no número anterior é da competência do juiz, que pondera a necessidade da

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sua realização, tendo em conta o direito à integridade pessoal e à reserva da intimidade do visado”. São os valores fundamentais da pessoa humana que o exigem.

Assim, o artigo 269.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, atribui ao juiz de instrução, mesmo no decurso da fase de inquérito, competência exclusiva para ordenar ou autorizar a realização de perícias, nos termos do referido artigo 154.º, n.º 3.

Incumbe, desta forma, ao juiz ponderar a necessidade de efectivação de perícia sobre características físicas ou psíquicas de pessoa que não haja prestado consentimento, uma vez que a mesma pode interferir com o direito à integridade física pessoal e com o direito à reserva da intimidade, direitos fundamentais consagrados, respectivamente, nos artigos 25.º e 26.º da Constituição da República Portuguesa.

De facto, os direitos fundamentais podem ser restringidos de acordo com os critérios previstos no artigo 18.º da nossa Lei Fundamental, isto é, desde que respeitado o princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso e os seus subprincípios: adequação, necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito.

Na verdade, quando uma pessoa de recusa a submeter a uma perícia estamos perante um conflito entre, por um lado, o direito à intimidade e identidade pessoal e, por outro, o direito à descoberta da verdade e realização de justiça. Destarte, o juiz terá de ponderar a necessidade da sua efectivação, respeitando o princípio da proporcionalidade e atendendo ao sacrifício que se vai impor ao visado.

O juiz assume, assim, um papel essencial no respeito pelos direitos fundamentais das pessoas, evitando a imposição de sacrifícios intoleráveis à integridade física dos visados e, assim, a violação do artigo 126.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, que consagra que “são nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante tortura, coacção ou, em geral, ofensa da integridade física ou moral das pessoas”.

A este propósito refere GERMANO MARQUES DA SILVA que “a verdade não pode ser investigada a qualquer preço, mormente quando esse preço é o sacrifício de direitos fundamentais das pessoas”.

Deste modo, nos termos do artigo 156.º, n.º 5, do Código de Processo Penal, tais perícias têm de ser realizadas por médico ou outra pessoa legalmente autorizada, não podendo criar perigo para a saúde do visado.

Acresce que, ao abrigo do disposto no artigo 8.º da Lei n.º 5/2008, de 12 de Fevereiro, é também da competência exclusiva do juiz a determinação da realização de colheita de vestígios biológicos tendo em vista determinação do perfil genético.

Da mesma forma, apesar de, na fase de inquérito, ser da competência do Ministério Público a determinação da realização de perícia médica a consumidores habituais, nos termos do artigo 43.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, e de perícia a estado de toxicodependência,

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de acordo com o artigo 52.º do mesmo Decreto-Lei, sempre que, nesse âmbito, for necessário proceder-se à análise de sangue ou de urina ou outra que se mostre necessária (artigos 43.º, n.º 3, e 52.º, n.º 3), a competência para a realização de tais perícias passa a ser do juiz se o visado não prestar o seu consentimento.

Diferentemente, entendemos que a determinação da realização de perícia quando haja indícios de que alguém oculta ou transporta no seu corpo estupefacientes ou substâncias psicotrópicas é, na fase de inquérito, da competência do Ministério Público, mesmo que o visado não preste o seu consentimento, atento o teor do n.º 3 do artigo 53.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, segundo o qual “na falta de consentimento do visado, mas sem prejuízo do que se refere no n.º 1 do artigo anterior, a realização da revista ou perícia depende de prévia autorização da autoridade judiciária competente, devendo esta, sempre que

possível, presidir à diligência” (negrito nosso).

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