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7.1. Considerações introdutórias: a importância do papel do Ministério Público

De acordo com o artigo 271.º, n.º 3, do Código de Processo Penal “Ao Ministério Público, ao arguido, ao defensor e aos advogados do assistente e das partes civis são comunicados o dia, a hora e o local da prestação do depoimento para que possam estar presentes, sendo obrigatória a comparência do Ministério Público e do defensor”. Neste âmbito, o Ministério Público assume um papel essencial, porquanto “na procura da verdade, o magistrado navega entre a lógica própria do inquérito que procura recolher um máximo de informações favoráveis e desfavoráveis ao acusado, e uma outra lógica, a do conforto e bem estar da vítima”.

Tal simbiose funcional assume particular importância nos crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexual, em que o magistrado do Ministério Público vê reunirem-se num só processo as funções relacionadas com a direcção da investigação criminal, a titularidade do exercício da acção penal, protecção e o bem-estar da vítima, mormente, a criança. Para além de que, tratando-se em alguns casos de um acto obrigatório, a sua omissão configura uma nulidade, nos termos do artigo 120.º, n.º 2, alínea d), do Código de Processo Penal, pelo que impende sobre o Ministério Público a obrigação de promover junto do juiz de instrução criminal a realização de declarações para memória futura quando estejamos perante a situação acautelada pelo artigo 271.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

7.2. A particular necessidade de articulação entre o magistrado do Ministério Público titular do inquérito e o magistrado junto do Juízo de Família e Menores

A crescente consciencialização e preocupação com os crimes sexuais perpetrados contra crianças têm acentuado a responsabilidade que recai sobre os magistrados do Ministério Público, exigindo-se que actuem de forma concertada. Na verdade, atentas as inerentes especificidades, torna-se necessário que a intervenção do Ministério Público se faça sentir “nos

37 Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 11 de Outubro de 2017, Relator Manuel Augusto de

Matos, Proc. 895/14.0PGLRS.L1.L1-A.S1, p. 47, disponível em www.dgsi.pt.

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diferentes procedimentos desencadeados pela notícia dos factos, tem uma particular responsabilidade na superação das dificuldades que decorrem da sua divisão por matérias, promovendo a comunicabilidade entre eles e a harmonização das decisões que em cada um vão sendo tomadas, à luz do superior interesse da criança que deles é sujeito, encarado como um critério de controlo e de decisão”.38

Pela crescente necessidade de uma actuação concertada pelo Ministério Público, com a Circular n.º 6/2006 começou a ser traçado um caminho que tem por premissa a articulação das diferentes normas legais que servem este propósito. Em concreto, o ponto 5.4. definiu que “quando houver lugar a processo-crime e a processo de promoção e protecção a correr termos na CPCJ, deve ser garantida a rápida articulação entre ambas as intervenções, nomeadamente, o magistrado interlocutor da CPCJ deve interagir com o magistrado titular do inquérito, tendo em vista avaliar a adequação das medidas de protecção, tendo em conta a situação processual do arguido”, prevendo-se também no ponto 3.3.b. “a articulação entre as intervenções no domínio da promoção e protecção e no âmbito penal”.

Posteriormente, também no Despacho n.º 3/2012, o Procurador-Geral Distrital de Coimbra, nos casos de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor, definiu um conjunto de regras de actuação, entre as quais destacamos por reflectirem verdadeiramente este esforço em propugnar uma actuação concertada, que “o magistrado que seja responsável pelo inquérito criminal deve verificar se já foi instaurado processo de promoção e protecção, assim como o magistrado responsável pelo processo de promoção e protecção deve verificar se já foi, quando pertinente, instaurado inquérito criminal. E ambos devem zelar para que esses processos entrem em comunicação” e que “os magistrados titulares desses processos zelarão para que haja uma avaliação conjunta de cada caso, para acordo sobre as medidas de promoção e protecção, as medidas de coacção e outras decisões interlocutórias ou finais que cada magistrado haja de promover, defender ou tomar no respectivo processo, com vista ao conseguimento da maior coerência e eficácia na defesa do superior interesse da criança”. Já mais tarde, o Procurador-Geral Distrital de Coimbra emitiu a Instrução n.º 1/2016, de 29 de Fevereiro de 2016, através da qual definiu um conjunto de orientações de actuação para os casos em que se verificava a necessidade de realização de declarações para memória futura de crianças vítimas de crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexual. Na linha do que já se encontrava definido, foi determinado no seu ponto 2 que “logo que lhe seja transmitida a notícia do crime, o magistrado do Ministério Público titular do inquérito, tendo em vista a recolha e troca de informação relevante, contacta o responsável pela investigação no órgão de polícia criminal, verifica se corre termos processo de protecção e promoção dos direitos da criança e, em caso afirmativo, contacta o magistrado que representa o Ministério Público no processo judicial ou que é interlocutor da Comissão de Protecção de Crianças e Jovens. Após o que decidirá quanto ao tempo e aos termos do requerimento a apresentar ao juiz de instrução criminal para efeitos do disposto no n.º 2 do artigo 271.º do Código de Processo Penal”.

38 Cf. Carmo, Rui do, in “Declarações para memória futura – Crianças vítimas de crimes contra a liberdade e a

autodeterminação sexual”, Revista do Ministério Público 134, Abril-Junho 2013, p. 143.

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No que concerne à prestação de declarações em memória futura, a Instrução n.º 1/2016, e sendo clara a preocupação em evitar a realização de sucessivas audições da criança, definiu nos seus pontos 1 e 3, respectivamente, que “as declarações para memória futura da criança vítima de crime contra a liberdade ou a autodeterminação sexual devem ser tendencialmente as primeiras declarações a prestar pela criança no âmbito do inquérito, e devem realizar-se em tempo próximo daquele em que houve a notícia do crime” e “se decidir que só requererá a tomada de declarações para memória futura em momento posterior da investigação, o magistrado titular do inquérito deve fazer constar dos autos despacho em que justifique sucintamente essa opção”.

Pela leitura de tais instrumentos, consideramos adequado quando se refere que neste âmbito o Ministério Público assume aqui “a sua responsabilidade de magistratura de iniciativa”39,

apelando à sensibilidade e habilidade dos magistrados no tratamento de tais questões.

7.3. O aproveitamento das declarações para memória futura no processo de promoção e protecção

Em estreita correlação com o referido no ponto que imediatamente precede, no Despacho n.º 3/2012, o Procurador-Geral Distrital de Coimbra definiu ainda que “os magistrados titulares desses processos zelarão para que se aproveitem em ambos as diligências realizadas em cada um deles, evitando repetições inúteis”.

As especificidades em que a audição da criança se reveste foram consagradas nos artigos 4.º e 5.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, os quais regulam a audição da criança que, por referência ao disposto no artigo 84.º da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, é aplicável aos processos de promoção e protecção. De acordo com o artigo 5.º, n.º 7, alínea d), do Regime Geral do Processo Tutelar Cível “quando em processo-crime a criança tenha prestado declarações para memória futura, podem estas ser consideradas como meio probatório no processo tutelar cível”. Com tal previsão legal, é clara a intenção do legislador em evitar as audições sucessivas da criança nos diferentes procedimentos, permitindo que “as declarações para memória futura prestadas na fase de inquérito do processo criminal possam abranger as questões relevantes para os processos que corram termos na jurisdição de família e menores, prevenindo-se, assim, os efeitos de contaminação e erosão da veracidade do depoimento e de vitimização secundária abundantemente apontados àquela prática”.40 No

entanto, devemos considerar que “no nosso sistema jurídico, quando existam simultaneamente intervenções criminal e de protecção (…) ter-se-á de atribuir centralidade às declarações recolhidas no processo criminal, ou seja, às declarações para memória futura. Centralidade que decorre de a satisfação dos seus pressupostos e requisitos ser condição da validade do depoimento como prova no processo penal, não existindo, por outro lado, qualquer

39 Cf. Rui do Carmo, in “As declarações como testemunhas – aplicar e clarificar a lei [As declarações únicas da

criança; o Estatuto de Vítima; Recusa a Depor]”, Revista do Centro de Estudos Judiciários, 2.º Semestre 2016,

Número 2, p. 104.

40 Cf. Carmo, Rui do, in “As declarações como testemunhas – aplicar e clarificar a lei [As declarações únicas da

criança; o Estatuto de Vítima; Recusa a Depor]”, Revista do Centro de Estudos Judiciários, 2.º Semestre 2016,

Número 2, p. 100.

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impedimento à sua recepção e valoração no processo de promoção e protecção; enquanto que as declarações prestadas neste não valem como prova testemunhal no processo penal”.41

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