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Algumas características das relações flexíveis de trabalho

Capítulo 2 – A flexibilidade

2.6 Algumas características das relações flexíveis de trabalho

2.6.1 O tempo de trabalho

Existe um discurso corrente que prega que a inovação tecnológica poderia levar a uma redução do tempo destinado ao trabalho e um aumento do tempo livre. O sociólogo italiano Domenico De Masi (2000) é um dos defensores desta linha de raciocínio e publicou um livro de grande repercussão mundial intitulado O ócio criativo, no qual propõe um novo modelo social baseado na simultaneidade entre trabalho, estudo e lazer, em substituição ao atual modelo social centrado na idolatria do trabalho. De Masi (2000) defende também o trabalho em casa como um meio de melhorar a qualidade de vida dos trabalhadores. Outros autores mais críticos questionam não a relevância da proposta de De Masi, mas sim sua viabilidade no sistema econômico e social existente.

Esta é uma discussão extremamente relevante, pois alterações no tempo de trabalho interferem no tempo de não-trabalho que os indivíduos têm disponível. A jornada de trabalho no mundo varia entre 38 e 54 horas semanais, de acordo com a legislação de cada país. Rosso (2004) divide a duração das jornadas semanais em três grupos: 48 horas ou mais em 57 países, 41 a 47 horas em 33 países, e 40 horas ou menos em 44 países. Entre os países com jornada até 40 horas, 42 têm jornada com exatamente 40 horas e apenas 2 têm jornadas entre 38 e 39 horas. Podemos constatar, portanto, que mesmo entre os países com menores jornadas de trabalho o tempo destinado ao trabalho é bastante alto, com um mínimo de 8 horas por dia, 5 vezes por semana (com exceção de apenas 2 em 143 países). No Brasil a jornada semanal é de 44 horas nas atividades privadas e 40 horas no setor público. Rosso (2004) entende que o Brasil estaria no grupo das maiores jornadas, tendo em vista que praticamente metade da mão-de-obra trabalha mais do que as horas previstas pela legislação. A utilização de horas extras é uma rotina comum entre as empresas brasileiras.

Ao longo dos séculos XIX e XX houve uma tendência de redução da jornada de trabalho entre os assalariados. Já nos últimos anos, Rosso (2004) aponta que houve um alongamento da jornada de trabalho em diversos países e grupos de trabalhadores, mesmo em nações mais desenvolvidas. No Brasil este fenômeno também tem ocorrido. As atividades do segmento de serviços, que é aquele que mais tem criado postos de trabalho nos últimos anos, comumente fazem uso de sobrejornadas. Haveria, portanto, um processo de intensificação do tempo de trabalho. Para o autor, a promessa de que a flexibilização do tempo de trabalho o tornaria mais humano não se concretizou na prática, pois a flexibilização tem funcionado principalmente para proteger as empresas durante as oscilações.

Evans, Kunda e Barley (2004) investigaram a estruturação do tempo entre trabalhadores contigentes qualificados. Os defensores dos conceitos de carreiras sem fronteiras e de “agentes livres” argumentam que atuar diretamente no mercado dá às pessoas controle na decisão de quantas e quais horas serão dedicadas ao trabalho. No entanto existe uma diferença importante entre uma pessoa perceber que tem flexibilidade de tempo e de fato fazer uso disto.

A forma como os consultores pesquisados por Evans, Kunda e Barley (2004) lidavam com o tempo sem trabalho pode ser dividida em dois tipos: positiva e negativa. Alguns consultores procuravam agendar e desfrutar esse tempo sem trabalho. Para este grupo a atividade de consultoria era percebida como uma oportunidade de viver um estilo de vida diferente. Mas a maioria dos entrevistados (75%) procurava minimizar este tempo, o percebendo implicitamente como uma ameaça. Pouco mais da metade dos entrevistados tirava férias de no máximo uma ou duas semanas por ano.

Alguns consultores avaliavam o tempo com base em critérios apenas econômicos, igualando tempo com dinheiro. Como resultado muitos sentiam-se culpados quando ficavam voluntariamente sem trabalhar. Outros, entretanto, faziam esta avaliação de forma mais ampla. Apesar de levarem em conta aspectos econômicos, eles faziam uso da flexibilidade existente na consultoria para terem tempo disponível para outros interesses. Eles escolhiam não apenas quais horas trabalhar, mas também quantas horas seriam destinadas ao trabalho, não deixando a lógica econômica governar sua vida. Este é o perfil do profissional prometido pela literatura dos “agentes livres”, no entanto eles são um grupo minoritário, com apenas

14% dos entrevistados – com o restante trabalhando em média mais do que os funcionários em contratos padrão.

A pesquisa de Evans, Kunda e Barley (2004) dividiu a flexibilidade de tempo em duas categorias: flexibilidade ampla quando os entrevistados explicitamente disseram que usam o tempo sem trabalho para outras atividades e para férias, e flexibilidade fina quando os entrevistados disseram que eles trabalhavam menos de 30 horas por semana ou variavam sua programação diária ou semanal para acomodar interesses pessoais e familiares. Os que tinham flexibilidade ampla eram quase o dobro (26%) dos que tinham flexibilidade fina (14%).

Dessa forma o trabalho de consultoria na prática não permitia que os consultores tivessem mais controle sobre seu tempo de trabalho e eventualmente reduzissem sua carga horária. Os resultados encontrados na pesquisa indicam o oposto: os consultores se viam em “novas amarras” temporais quando atuavam diretamente no mercado. É interessante notar que estes profissionais acreditavam ter mais controle sobre o tempo do que os funcionários padrão, mas esta crença raramente os levava a limitar ou planejar seu tempo com mais flexibilidade.

A razão para este paradoxo residia na forma como o mercado influenciava a interpretação sobre o tempo e as escolhas dos entrevistados. Em primeiro lugar, o ciclo de trabalho do consultor repetidamente o expõe a períodos sem trabalho, e a maioria dos entrevistados percebia este tempo como tempo não-remunerado em oposição a tempo sem trabalho, procurando por isso minimizá-lo. O segundo ponto é que o alto salário do consultor é pago por hora, levando-o a igualar tempo e dinheiro, o que permite que o custo do lazer e tempo com a família seja calculado. O terceiro aspecto é que os consultores são chamados em momentos de crise para trabalhar em projetos, o que acarreta uma demanda de horas de trabalho significativa. Como a reputação é um aspecto fundamental para conseguir novos trabalhos, muitos consultores acabam trabalhando muitas horas, e várias destas horas acabam não sendo cobradas.

A pesquisa de Evans, Kunda e Barley (2004) sugere que os consultores trabalham mais do que os funcionários em contratos padrão. Isso coloca em cheque a argumentação que as carreiras baseadas no mercado dão aos trabalhadores maior flexibilidade e controle sobre o seu tempo. Os consultores podem achar que eles têm maior flexibilidade temporal, mas a maioria jamais vai fazer uso disso. Para os autores, os mercados são prisões como as

burocracias, mas prisões de um tipo diferente. No entanto, o contexto do trabalho do consultor pode dificultar que ele perceba esse fato.

2.6.2 O comprometimento no trabalho

Hirata (2001/02) faz uma análise crítica dos novos modelos de produção. Para a autora estes sistemas requerem forte envolvimento do trabalhador, pois a descentralização e a diminuição dos níveis hierárquicos aumentaram a importância do comprometimento da mão-de-obra. No entanto, a crescente permeabilidade das organizações tem conseqüências significativas para questões de comprometimento, pois a insegurança no emprego tem aumentado. Muitos trabalhadores se vêem em ambientes com múltiplos empregadores, o que em diversas situações leva a situações conflitantes, devido à necessidade de atender de forma simultânea interesses muitas vezes opostos, de clientes e de empregadores.

De acordo com McClurg (1999) o comprometimento tem sido associado a resultados desejáveis tais como redução da intenção de rotatividade, diminuição do absenteísmo e da rotatividade, melhor desempenho e aumento do tempo de permanência no emprego. Em função disso, McClurg (1999) explica que a variável comprometimento tem atraído o interesse de pesquisadores da área, e a literatura indica que características pessoais, fatores do trabalho e experiência de trabalho são categorias preditoras importantes para o comprometimento dos trabalhadores.

Rubery (2005) relata que os índices de satisfação e comprometimento com o trabalho permaneceram relativamente estáveis entre a década de 50 e 80. No entanto, nos últimos anos estes índices tiveram uma queda acentuada. Este declínio coincide com o período de mudanças mais intensas no mercado de trabalho americano. Broschak e Davis-Blake (2006) investigaram algumas conseqüências da existência de diversos tipos de contrato de trabalho de maneira concomitante em organizações. Os autores identificaram que, de acordo com a literatura sobre o tema, maiores proporções de trabalhadores não-padrões estavam associadas com atitudes menos favoráveis em relação aos supervisores e pares, aumento da intenção de saída da empresa e diminuição de comportamentos de apoio relacionados ao trabalho. Davis- Blake; Broschak e George (2003) encontraram resultados semelhantes em um estudo entre trabalhadores dos Estados Unidos, onde o uso de trabalhadores temporários afetava negativamente as relações entre gerentes e funcionários. Da mesma forma, em uma pesquisa conduzida por Pearce (1993), houve uma associação entre a presença de trabalhadores por

contrato e uma menor confiança organizacional dos trabalhadores regulares. Rubery (2005) ressalta que, mesmo assim, a pressão do grupo no trabalho em equipe pode funcionar em parte como um substituto para o comprometimento com a organização, pois mesmo que o funcionário não se sinta comprometido, ele pode ainda assim se esforçar no trabalho, de forma a não prejudicar o resultado do seu grupo de trabalho.

Dyne e Ang (1998) encontraram resultados diferentes em sua pesquisa. Eles realizaram um estudo em Cingapura e o relacionamento entre duas atitudes (o comprometimento e o contrato psicológico) e a cidadania organizacional era mais forte para os trabalhadores contingentes quando comparado com os trabalhadores regulares. Nessa pesquisa, quando os trabalhadores contingentes tinham atitudes positivas sobre seu relacionamento com a organização, eles estabeleciam comportamentos de cidadania organizacional. O estudo de Dyne e Ang (1998) foi conduzido em outro tipo de cultura, o que sugere a importância de fatores culturais em questões desta natureza.

Ao longo do Capítulo 2 discutimos o conceito de flexibilidade voltado para as relações de trabalho, o novo ambiente de trabalho e sua estruturação e características das relações flexíveis de trabalho. Com base nos conteúdos apresentados, vamos, no próximo item, sintetizar as principais características do vínculo de trabalho não-padrão e definir o objetivo da presente tese.