• Nenhum resultado encontrado

Algumas considerações sobre estereótipos

Estas e outras formas de categorização ideológica dos negros africanos estão presentes nos textos dramáticos, com uma repetição de imagens e situações que se combinam para formar estereótipos. A identificação es- tereotipada de personagens no teatro era produzida também pelo nome, voz, linguagem, gestos, comportamento, além de roupa, maquilhagem, eventuais máscaras e outros adereços. Todos estes elementos tendiam a ganhar propriedades metonímicas, significando estatuto social e valores

morais. Como é conhecido, o carácter estereotipado das personagens não era exclusivo da representação dos negros. O mesmo acontecia, in- cluindo o uso de uma língua paródica, com mouros, judeus, ciganos, camponeses, certas figuras femininas.

O que parece ter sido específico na caracterização do negro é o papel central da cor da pele na cristalização dos estereótipos. Homem ou mu- lher, no serviço doméstico ou trabalhando fora de casa, a personagem é na maioria dos casos identificada pela simples designação de «negro» ou «negra». Associada à cor da pele vinha a incapacidade de falar correcta- mente, tornando-se a incompetência linguística um significante insepa- rável da personagem tal como a cor da pele. O fenótipo e a maneira de falar estavam, por sua vez, associados à inferioridade social e ao estatuto servil.

No entanto, esta associação entre a personagem negra e a escravidão nem sempre era total. Mostra-o o poema da «mourisca retorta», em que o negro representado é um rei. No universo de onze textos aqui consi- derados, quatro personagens de negros não são escravos: há dois reis afri- canos («mourisca retorta», 1490; Nau d’Amores, 1527), um músico (Auto

da Natural Invenção, c. 1550) e um médico (Auto de Vicenteanes Joeira, im-

presso em 1574). Ainda assim, penso que é possível falar de uma associa- ção implícita, naturalizada, à escravatura, mesmo quando os negros não se apresentam como escravos. A evocação da condição do negro é sinó- nimo quase proverbial de servidão. No monólogo que abre a Prática de

Oito Figuras, Paiva, um moço, caracteriza nestes termos a sua dura vida

de serviço no Paço: «não comeis, morreis, servis [i. e, ‘não comemos; morremos e servimos’] / como negros de Guiné». Quando é livre, a per- sonagem do negro tem um estatuto acima das expectativas das demais personagens e do público, podendo ser ameaçado de redução à condição servil, com insultos e referências a castigos próprios de escravos, como o «pingar do toucinho», isto é, o derrame de gordura a ferver sobre a pele. O Auto da Natural de Invenção, de Chiado, mostra um exemplo desta ex- pectativa de degradação. Um senhor que mandara representar um auto em sua casa pede a um negro, que toma por escravo, que se levante para libertar a cadeira, a usar na peça. Depois de o insultar e ameaçar com pu- nição corporal, ouve, para sua surpresa, que o negro participa no espec- táculo como (talentoso) guitarrista e cantor.

A identificação do negro com a música e a dança faz claramente parte do estereótipo, associação que já vimos estar presente na «mourisca re- torta» e que aparece também no Auto de Vicenteanes Joeira. Por outro lado, os negros são associados à bebida excessiva no diálogo de Henrique da

Mota conhecido como Pranto do Clérigo, na Prática de Oito Figuras e no

Pranto de Maria Parda, de Gil Vicente, onde, sem uso de linguagem de de-

negrimento, uma mulher mulata se lamenta da falta de vinho em Lisboa. A preguiça, a dissimulação e o roubo são atributos do negro que aparece no Clérigo da Beira. A figura do negro como ladrão é particularmente comum, aparecendo ainda na Frágua d’Amor, na Prática dos Compadres, na

Prática de Oito Figuras e no Auto da Bela Menina, de Sebastião Pires.

A metáfora e a metonímia são operadores habituais da associação entre negros e vícios. No Auto da Bela Menina a personagem do negro apela para «Santa Ladra», ocasionando uma identificação imediata com o acto de roubar. O mesmo processo ocorre na Frágua d’Amor: quando o negro entra «cantando na língua de sua terra», Vénus pergunta-lhe que notícias ele traz de Castela. Ao responder que as vinhas estão maduras e que já as vindimou, ele confirma a associação já esperada do negro com a be- bida. A estas associações recorrentes devemos juntar uma longa lista de insultos que jogam com a associação da cor da pele à escuridão ou aos excrementos e degradam a personagem do negro à categoria animal: dia- bos e bruxas, cães e cadelas («perro, perra»), mas também golfinhos («pele de toninha»), raposas e pássaros nocturnos («noitibó»).

Os estereótipo revelam-se também na antroponímia e na toponímia. Em seis peças portuguesas em que as personagens masculinas de negros são nomeadas, quatro chamam-se Fernando, nome presente também numa personagem feminina da Floresta d’Enganos, «Catarina Fernando» – na verdade, como já veremos, trata-se de um juiz branco disfarçado de serviçal. A fortuna deste nome próprio vem dos autos vicentinos, com início na Frágua d’Amor (1524); a associação entre o nome próprio Fer- nando e o negro aparece também numa réplica do Auto dos Cantarinhos (António Prestes),23que se refere às mentiras de um «Frunando» – o qual

não aparece na peça, mas em que a deformação do nome revela a cadeia de associações a que me venho referindo, entre nome próprio de negro, língua deformada e vício moral. De facto, o nome Fernando parece ter sido usado pelo seu valor cómico no momento de pronunciar o nome em «fala de negro»: a dificuldade, atribuída à personagem, de articular grupos consonânticos como rn, rt ou rg, obrigaria ao uso de um u como vogal de suporte antes (ou depois) da consoante. Fernando pronuciava- -se assim como «Frunando» ou «Furunando». Eis aqui mais um indício da prevalência de razões cómicas, expressivas, sobre uma representação

23Autos de António Prestes, ed. José Camões e Helena Reis Silva (Lisboa: INCM, 2008), 514, l. 944-945.

«realista» dos nomes dos negros. O mesmo se aplica aos topónimos de origem africana: aparentemente precisos (Manicongo, Benim, Guiné), repetem-se de peça para peça, com uma mera função de identificação.

O carácter estereotipado das personagens, já o referi, não era exclusivo da personagem do negro. Em certo sentido, é todo o espectáculo dra- mático deste período que se baseia em estereótipos. As expectativas do público construíam-se com base na sua produção e reprodução. Nos autos de Gil Vicente, a falta de indivualização é a regra, com personagens ou «figuras» identificáveis pelo estatuto social ou pelo seu significado ale- górico mais do que por uma biografia particular. O laço entre a persona- gem e a sua identidade social ou local era acentuado pela persistência de certas características psicológicas típicas e, frequentemente, por um nome próprio. Assim, se Fernando é por antonomásia o negro, nos autos vi- centinos – como em alguns poemas de Camões – o pobre de espírito era Joane, enquanto o rústico se chamava Gonçalo.

Neste contexto, é sugestivo estabelecer um paralelo entre as caracte- rísticas estereotipadas das personagens dos autos e as gravuras que as re- presentavam nas edições impressas. Se pegarmos no exemplo dos 19 fo- lhetos de teatro quinhentista reeditados por Carolina Michaëlis em 1922, encontramos uma reutilização sistemática das mesmas imagens. 16 xilo- gravuras originais, recombinadas em diferentes edições de folhetos tea- trais, produziram 48 imagens diferentes.24De peça para peça, as mesmas

gravuras representavam personagem distintas, permitindo um jogo de identificações nem sempre evidente à primeira vista. Para o tema deste artigo, o mais interessante desses exemplos encontra-se nas ilustrações das duas edições que se conhecem do Auto das Regateiras. Ambos os fo- lhetos contêm a imagem de duas damas de perfil – uma delas à frente, olhando ligeiramente para cima, e a outra atrás, mais estática, pegando na cauda do seu próprio vestido. Na edição que se conserva na Biblioteca Nacional de Lisboa, esta segunda figura tem a cara pintada de negro. Ou seja, o molde da gravura foi banhado de tinta escura para representar a personagem, presente no auto, da negra Luzia.25O resultado, voluntário

ou não, é a promoção social da criada, que na gravura impressa aparece vestida bem acima do seu estatuto social.

24Carolina Michaëlis de Vasconcelos, Autos Portugueses de Gil Vicente y de la Escuela Vi- centina (Madrid: Centro de Estudios Historicos, 1922), 64-68.

25A outra gravura do Auto das Regateiras encontra-se na Biblioteca Nacional de Madrid. A mesma imagem, com as duas senhoras «brancas», está presente no Auto das Capelas, de autor desconhecido. Cf. Teatro de António Ribeiro Chiado, ed. Cleonice Berardinelli e Ronaldo Menegaz (Porto: Lello e Irmão, 1994), 101, n. 1.