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Conversão e liberdade: um vibrante debate público em Lisboa

A maioria dos escravos africanos envolvidos no trato durante as déca- das finais do século XVe a primeira metade do XVIforam destinados à

Península Ibérica, contrastando, juntamente com os grupos chegados, posteriormente, de outros continentes, com o objectivo de uniformiza- ção religiosa e racial dos reinos de Portugal e de Castela que os éditos de expulsão das minorias judaicas e muçulmana, muitas vezes acompanha- dos por baptismos forçados, e pela discriminação dos que passaram a ser chamados «cristãos-novos», encerravam.20Era a clara indicação de qual

seria o modelo de convivência baseado na distinção e discriminação des- tinado a impor-se, pelo menos inicialmente, também nos respectivos im- périos transoceânicos em formação. Obviamente, naquela altura, havia ainda interações e reflexos constantes entre as principais dinâmicas que se passavam no espaço ultramarino e no centro metropolitano. Foi neste contexto que, em Lisboa, se desenvolveu um vibrante debate público, que ameaçava pôr em crise os fundamentos legais do império.

A fundação da Irmandade da Nossa Senhora do Rosário, nos finais do século XV, respondeu a um projecto de inclusão civil e religiosa dos negros

africanos.21Tratava-se de materializar a retórica oficial da coroa, sancionada

pelas bulas, segundo a qual o objectivo do baptismo e da conversão ao Cristianismo tornava legítima a deportação de um número crescente de seres humanos da Guiné. As fontes que sobreviveram são unânimes no tes- temunhar a pouca preocupação inicial pela vida espiritual dos escravos por parte de portugueses e outros europeus implicados na organização do trato. Ao serem carregados nos navios, nem sempre os africanos recebiam o sa- cramento da iniciação cristã e, mesmo quando isto se verificava, tratava-se muitas vezes de ritos administrados de modo sumário e brusco, através de liturgias irregulares e cerimónias colectivas. Ao que parece, era raro que al-

20Sobre os escravos africanos transportados para a Península Ibérica, ver Ivana Elbl, «The volume of the early Atlantic slave trade, 1450-1521», Journal of African History, 38 (1977): 31-75; António de Almeida Mendes, «Traites ibériques entre Méditerranée et Atlantique: le noir au cœur des empires modernes et de la première mondialisation (ca. 1435-1550)», Anais de História de Além-Mar, 6 (2005): 351-387.

21Para uma introdução ver Saunders, A Social History of Black Slaves and Freedmen..., 151-156; José Ramos Tinhorão, Os Negros em Portugal. Uma Presença Silenciosa (Lisboa: Editorial Caminho, 1997), 133-147; Didier Lahon, «Black African slaves and freedmen in Portugal during the Renaissance: Creating a new pattern of reality», in Black Africans in Renaissance Europe, orgs. T. F. Earle e K. J. P. Lowe (Cambridge e Nova Iorque: Cam- bridge University Press, 2005), 260-279.

guém se interrogasse sobre o carácter involuntário daquela passagem reli- giosa, cujo significado também escapava aos novamente convertidos. O espectáculo do abandono espiritual dos escravos africanos transferidos no reino e empregados no serviço dos portugueses não se conjugava, porém, com a imagem do ardente impulso missionário que se dizia supor- tar as explorações régias, mas parecia reduzir-se a um domínio duro e vio- lento sobre os seres humanos encontrados ao longo do caminho.

A história da Irmandade do Rosário, criada em Lisboa e depois difun- dida em muitas localidades do reino e do império, deve-se inserir no con- texto de uma tentativa da coroa de promover alguma inversão desta «po- lítica da negligência» em relação à conversão dos escravos. Mas também pode ser entendida como um prisma das dificuldades e discriminações que distinguiriam o «Governo dos Outros» no império. A característica principal da Irmandade, na fase inicial da sua história, foi a sua natureza mista. A instituição incluía entre os seus associados quer brancos portu- gueses, quer negros africanos. Integravam o segundo grupo escravos e li- bertos. Como mostram os documentos do início do século XVI, os liber-

tos eram eleitos nos órgãos do governo da Irmandade e geriam, juntamente com os brancos portugueses, a organização de um caminho de devoção que tinha como objectivo a maturação de uma conversão sincera dos africanos.22Aquele esforço concentrou-se no culto do Rosá-

rio, uma oração promovida pela ordem dominicana. Em Lisboa, não por acaso, a Irmandade era alojada no Convento de São Domingos. O em- penho dos dominicanos no apoio de uma instituição com uma fisiono- mia tão peculiar, pela tentativa de derrubar, ao menos a nível da devoção, as barreiras que separavam os escravos dos donos, os negros dos brancos, resultava da tradição tomista, que aconselhava cautela nas estratégias de proselitismo.

Nas décadas iniciais do século XVI, o problema da conversão dos afri-

canos estava em aberto. Na metrópole continuavam a viver muitos escra- vos não-baptizados. Em 1515, o escândalo causado pela visão daquela humanidade rejeitada levou o rei D. Manuel I a mandar realizar uma vala comum num espaço próprio (na zona ainda chamada «Poço dos Negros») para que os corpos dos escravos mortos sem baptismo – que evidente- mente não eram poucos – não fossem abandonados sem sepultura fora da cidade.23Remonta ao ano anterior outra intervenção em que se obri-

22Ver Lahon, «Black African slaves...», 265.

23Lei régia de 13 de Novembro de 1515, publicada em Eduardo Freire de Oliveira, Elementos para a História do Município de Lisboa, 17 vols. (Lisboa: Typographia Universal, 1896-1943), vol. I, 509.

gava o clero a baptizar os «escravos da Guiné» ao desembarcarem em Lis- boa, se mostravam a intenção de receber o sacramento.24Precedida e con-

firmada por bulas papais específicas, aquela disposição foi o início de um período de cerca de três decénios de suporte aberto à política de conversão dos africanos, mediante a sua manumissão. Quem beneficiou desta vira- gem foi a Irmandade do Rosário, dentro da qual sobretudo os libertos se aplicaram para superar uma prática que datava dos exórdios do tráfico dos escravos: a recusa absoluta de que o baptismo se transformasse num meio para a emancipação. A questão era controversa, porque o direito ca- nónico tinha tradicionalmente favorecido, na Europa da Idade Média, a associação entre conversão e liberdade. Contudo, as bulas do século XV

tinham estabelecido que aquela associação não tinha valor para os escra- vos que os portugueses traziam da África ocidental. A Irmandade pôs um grande empenho no objectivo de alforriar os escravos, o qual culminou, na segunda metade dos anos 20, na concessão régia da faculdade de os manumitir contra pagamento de uma compensação aos donos.25

Nesse resultado, apresentado como um instrumento ao serviço do pro- selitismo religioso, pode ver-se a obra dos libertos em favor dos irmãos com quem tinham partilhado, no passado, a pesada condição civil. As la- cunas da documentação não permitem avaliar os efeitos concretos desse privilégio, que tinha um alto valor simbólico. Não se sabe quantos escra- vos eram membros da Irmandade de Lisboa na altura, nem quantos deles gozaram da possibilidade da emancipação. Contudo, a prática de tal ma- numissão teve uma difusão rápida em outras cidades, inclusive no impé- rio. Ao que parece, esta batalha de liberdade, evidentemente apoiada pelos dominicanos, teve algum êxito nos anos 30 e 40, mesmo em simultâneo da polémica de Bartolomé de las Casas contra a escravização dos nativos na América espanhola, mas, tal como neste último caso, protestos e opo- sições, sobretudo por parte dos proprietários, não terão faltado.

O choque que então se verificou na metrópole portuguesa teve reper- cussões radicais sobre a estrutura da Irmandade no reino e no império. Contra a negligência a respeito da vida religiosa dos escravos africanos residentes em Lisboa, levantou-se em 1547, no Concílio de Trento, a voz isolada do franciscano português Francisco da Conceição.26Mas a frente

24Ver Costa, org., Ordenações Manuelinas..., liv. V, tít. 99.

25Saunders, A Social History of Black Slaves and Freedmen..., 155-156. Data-se de 1529 o privilégio de Lisboa in Lahon, «Black African slaves...», 270.

26Francisco da Conceição, Annotatiunculae aliquot in abusus et collectas a patribus circa sa- cramenta provisione, em Archivio Segreto Vaticano (Roma) – Conc. Trid. 16, 395r-398v.

dos proprietários, que devia incluir vários membros brancos da Irman- dade do Rosário de Lisboa, estava já a prevalecer contra uma prática que transformara uma instituição destinada a promover a devoção num ins- trumento de resgate social e ruptura de uma hierarquia cuja imobilidade era um fundamento da ordem imperial. A procura de uma mitigação da condição civil dos irmãos escravizados, obtendo sua promoção para o estado de libertos, acabou por estabelecer uma barreira insuperável no interior da Irmandade. O conflito acerca do privilégio de emancipação dos escravos levou à sua separação nítida em dois ramos. Ao que parece, não se tratou de uma fractura súbita. Só por volta de 1550 é que as fontes reflectem claramente a imagem de uma Irmandade «repartida em duas, uma das pessoas honradas e outra dos pretos forros e escravos».27Aquela

divisão, oficialmente ratificada em 1565, assinalou o declínio da capaci- dade de acção da componente africana.28Constituiu também o crepús-

culo da prática da libertação dos escravos. Enfraquecidos e discriminados, os irmãos negros já não conseguiam sustentar as suas reivindicações.

Essa profunda alteração interna à Irmandade provocou um agrava- mento drástico das perspectivas materiais dos escravos. É provável que dois factores tenham contribuído para a sua aceleração: o início do trato atlântico em vasta escala, devido à procura crescente de trabalho forçado na América espanhola, e a escolha da coroa e das autoridades eclesiásticas portuguesas em aumentar a pressão relativamente à conversão dos escra- vos, através uma maior vigilância sobre a sua conduta religiosa (são prova disto as condenações inquisitoriais por apostasia, em Lisboa, de wolofs parcialmente islamizados, no início dos anos 50)29e de uma série de dis-

posições que tinham como fim tornar mais difícil a existência no reino e no império de escravos não-baptizados. Não se conhecem testemunhos directos sobre as reacções dos irmãos negros perante esta nova fase, mas várias fontes de origem dominicana revelam as tensões que ela produziu. De um códice do Convento de São Domingos de Lisboa pode-se deduzir que o ramo africano continuou a batalha para o privilégio de emancipa- ção dos escravos pelo menos até ao final do século.30No seu conjunto,

27Cristóvão Rodrigues de Oliveira, Lisboa em 1551. Sumário em que Brevemente se Contêm Coisas assim Eclesiásticas como Seculares que Há na Cidade de Lisboa (1551), org. José da Fe- licidade Alves (Lisboa: Livros Horizonte, 1987), 67.

28Ver o estatuto do ramos dos negros de 1565, publicado em Isaías da Rosa Pereira, «Dois compromissos de Irmandades de Homens Pretos», Arqueologia e História, IX (4) (1972): 9-48.

29Saunders, A Social History of Black Slaves and Freedmen..., 158-164.

30Ver Arquivo Nacional da Torre do Tombo (Lisboa), daqui em diante ANTT – São Domingos, liv. 30, em particular os docs. 14, 96r; 25, 145r; 29, 160rv;

todavia, a Ordem Dominicana alinhou rapidamente com as hierarquias do reino.31

A questão da conversão e liberdade dos negros africanos adquiriu par- ticular relevo porque ocorreu em Lisboa, lugar que permitiu a quem, a partir dos anos 50, elaborou reflexões teóricas relativas aos seres humanos envolvidos no trato dos escravos, ter uma percepção mais clara das va- riáveis em causa. Isto foi muito evidente no debate entre teólogos domi- nicanos, ou de formação dominicana, no qual teve influxo directo tam- bém a crise resultante da separação entre brancos e negros na Irmandade do Rosário. Também influenciada pelas disputas castelhanas sobre os di- reitos dos nativos americanos, a reflexão que se desenvolveu em Portugal acerca da licitude da redução à escravatura e do trato dos africanos foi marcada por polémicas e contestações contra a intransigência que cir- cundava os escravos. O conflito que atingiu uma irmandade consagrada à conversão dos negros na cidade que estava no coração de um vasto im- pério missionário não passou despercebido. A voz do protesto mais cla- moroso foi a de um ex-dominicano, que nos anos 40 passara por um processo inquisitorial. Naquela ocasião, Fernando Oliveira tivera de de- fender-se da acusação de ter afirmado que «nas terras dos infieys se salvão os que bem vivem na ley da natureza».32Na metade dos anos 50, Oliveira

publicou um tratado sobre a guerra naval, no qual discutiu também os fundamentos legais do império português. Lançou palavras duras sobre- tudo contra a hipocrisia do sistema de compra-venda pelo qual os ne- greiros pretendiam justificar o trato.33

Escapou aos estudiosos como o argumentado e eficaz ataque de Oli- veira visava deslegitimar a posição dos donos de escravos em Lisboa, que contrariavam o privilégio da emancipação de que gozava a Irmandade do Rosário. Em resposta àqueles, o ex-dominicano apelava para o rei, pe- dindo que garantisse aos negros africanos a possibilidade da alforria, um «jubileu despoys de servirem certo tempo limitado per ley». Oliveira não ocultava a existência de «algumas pessoas», que contrariavam a libertação dos escravos afirmando que «se forem forros, serão ladrões». Esse temor regia-se por um preconceito injusto. Em vez de agitarem a sombra de

31Os dominicanos exprimiram-se em favor da divisão em dois ramos já em 1559. Ver Lahon, «Black African Slaves...», 267. Outras provas da sua posição hostil ao ramos dos negros em ANTT – São Domingos, liv. 30, docs. 8, 45v-46r; 27, 153r-154v.

32Memorial entregue aos inquisidores de Lisboa, 23 de Dezembro de 1547, publicado em Henrique Lopes de Mendonça, O Padre Fernando Oliveira e a Sua Obra Náutica (Lisboa: Typographia da Academia Real das Sciencias, 1898), 121.

delinquentes futuros, lamentava, os portugueses deviam preocupar-se com a culpa implícita na «cor piadosa que damos ao cativeyro desta gente»: «Dizemos que os fazemos christãos e trazemos a estado de salva- çam, e as almas valem mais que o serviço e liberdade corporal, e poys lhe ministramos espiritualidades, nam he muyto receber deles tempora- lidades.» A respeito dessa justificação, Oliveira escrevia um impiedoso elenco das faltas dos portugueses:

Os que vam buscar esta gente [...] nam pretendem sua salvaçam, e consta, porque se lhe tirarem o interesse não iram lá. [...] Item, nos tomamos a estes as liberdades e vidas por força e engano. [...] Quanto mays que muytos nam ensinam a seus escravos como ham de conhecer nem servir a Deos, antes os constrangem fazer mays o que lhes eles mandão, que a ley de Deos, nem da sua Ygreja, tanto que nem os deyxão yr ouvir missa, nem evangelho, nem sabem a porta da ygreja pera isso, nem guardam domingos, nem festas.

O acto de acusação contra negreiros e proprietários de escravos pros- seguia com uma passagem sobre a questão do baptismo que, a ser con- cedido, não o era por mérito dos traficantes de escravos, «os quaes nem procuram por lho dar, nem sabem se sam bautizados». Assim regressava ainda ao problema geral da legitimidade da escravatura em nome da con- versão: «Fazerlhe sem justiça pera os trazer a estado de salvaçam nam he doutrina apostolica», concluía, «nem esse mal he causa de sua salvação, antes de escândalo pera eles e pera outros». O «cativeiro» dos negros afri- canos era assim condenado como «desarrezoado».34

As palavras de Oliveira tiveram alguma eco, como confirmam emba- raços e cautelas do principal professor de Teologia da Universidade de Coimbra, o dominicano castelhano Martín de Ledesma, discípulo de Francisco de Vitoria. Em 1560, Ledesma publicou o segundo volume dos seus comentários, onde tentou atenuar a força da denúncia de Oli- veira. Censurou alguns modos de proceder dos negreiros portugueses na Guiné e sublinhou como a perspectiva da conversão não bastava para justificar a redução à escravatura perpétua de seres humanos. Invocava, em contrapartida, a moderação e o maior respeito pela vontade livre dos negros africanos, evitando, ao mesmo tempo, exprimir-se sobre o pro- blema concreto da emancipação, o qual tinha quebrado os equilíbrios da Irmandade do Rosário.35

34Fernando Oliveira, Arte da Guerra do Mar (Coimbra: João Álvares, 1555), xvr-xviv. 35Martín de Ledesma, Secunda Quartae (Coimbra: João Álvares, 1560), 225rv.

Acabava o silêncio dos homens de cultura que tinha longamente ocultado a questão da escravatura em Portugal: a partir de então, o trato e as formas da conversão dos negros africanos tornar-se-iam matéria de discussão oficial. A linha observada por Ledesma encontrou uma cor- respondência perfeita nas posições assumidas pelos teólogos da corte no órgão oficial destinado a resolver as dúvidas morais em que a coroa podia estar implicada na sua ação política, o tribunal da Mesa da Cons- ciência e Ordens. Em 1559, este sentenciou «sobre os modos com que licitamente se pode fazer captivos e cativar pessoas».36No ano seguinte,

exprimiu-se «sobre o baptizmo dos escravos, que o nam fazem nos na- vios, senam depois de virem à terra nossa», declarando que aos menores de sete anos se devia administrar logo o sacramento, enquanto para os maiores era necessária uma instrução preventiva de duração de, pelo menos, vinte dias; passado esse período, quem tivesse renunciado ao baptismo, deveria ser inscrito num registo próprio «com os seos signaiz».37As sentenças da Mesa da Consciência foram as premissas de

uma intervenção mais ampla, efectuada pelo cardeal infante D. Henri- que, figura poderosa da vida política e eclesiástica portuguesa, o qual, em 1568, estabeleceu a obrigação do baptismo também para os escravos maiores de sete anos.38

Concluía-se assim uma longa controvérsia. Já era inevitável a derrota do projeto de inclusão civil e religiosa do qual nascera a Irmandade do Rosário, sendo este substituído por uma separação mais nítida entre a salvação da alma e a disciplina do corpo. Enquadrados em rígidas bar- reiras sociais, abençoadas pela Contra-Reforma, os escravos negros afri- canos não confundiram mais a conversão com a esperança de uma li- berdade futura, claro sinal da distinção insuperável que devia permanecer, no reino e no império, entre os portugueses e os novos súbditos da coroa.

Os portugueses e a escravatura: um fenómeno