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O ius commune nos trópicos – as continuidades entre o direito metropolitano e o direito

do império

Apesar de o pluralismo jurídico e político imperial não poder ser des- considerado, a hegemonia das categorias do direito erudito, com as res- pectivas consequências institucionais, também foi estimulada pelos me- canismos discursivos do ius commune. De facto, o império do direito letrado era promovido de forma muito efectiva pela oposição, muito dis- seminada na literatura do direito comum, entre política e eficácia do poder político (ratio imperii) e a força «doce» da «razão», o império da razão (imperio rationis). Apesar de tudo o que a doutrina jurídica dizia sobre a autonomia do poder e do direito locais e apesar da efectividade da autonomia das práticas institucionalizadas localmente, os juristas le- trados olhavam para as periferias como lugares menos cultivados e menos racionais, onde a ignorância, o erro, o abuso e a violência eram domi- nantes. Apesar de ser comum dizer-se «o erro comum faz direito» (error

communis facit ius), era igualmente comum denunciar as particularidades

locais como sendo odiosas (odiosa), repugnantes à razão e à elegância do direito civil (contraria rationi vel elegantiae iuris civilis), e, logo, como algo que devia ser corrigido, restringido ou ignorado por magistrados letrados,

razoáveis e leais ao seu rei. É duvidoso que esta invocação da primazia simbólica do direito letrado pudesse funcionar nos tribunais locais, mas é muito provável que ela dominasse nos tribunais de recurso (ouvidores [das capitanias, das donatarias, das câmaras ultramarinas],86Relações [Baía,

Goa, e mais tarde, Rio de Janeiro]).

Neste contexto, é possível argumentar que a relação entre discurso jurí- dico letrado (como o do ius commune) e o direito em acção nas periferias imperiais corresponde ao que os teóricos da globalização chamam glocali-

zação.87O ius commune representava um direito cosmopolita, tido como

universalmente exportável, globalizável. Por oposição, a prática do direito nas periferias incorporava os elementos locais de cada situação jurídica. Não há dúvidade de que a periferia era mais ou menos permeável às categorias, discursivas e cosmopolitas do ius commune. Todavia, essa abertura não era ilimitada. As categorias globais eram recebidas sob a condição de serem adequadamente traduzidas em termos práticos, de acordo com as necessi- dades dos contextos locais. Elas ofereciam, certamente, um nome para as coisas que já existiam; este nome tinha uma eficácia performativa, produ- zindo consequências normativas e dogmáticas; mas essas consequências tinham de obedecer minimamente às necessidades locais de regulação.

Este era o tipo de continuidade que existia entre o direito metropoli- tano e o direito nas colónias. Descuidar esta relação recíproca e ambiva- lente amputa tanto a história jurídica europeia quanto a história jurídica colonial. Não se pode fazer uma história do direito metropolitano sem considerar os «matizes locais» que ele podia absorver no ultramar. Tal como não se pode fazer história do direito colonial sem considerar o que ele herda dos esquemas categoriais e semânticos do direito «cosmopolita» da metrópole. Por outro lado, a própria relação metrópole-colónia deve ser mais reflectida. De alguma forma, as formas coloniais foram anteci- padas nas metrópoles, gerando esquemas mentais (e jurídicos) que, de- pois, foram aplicados no ultramar. Este circuito pelos campos semânticos do direito comum e pelas suas utilizações na conceptualização e regula- ção do ultramar procura justamente reaproximar as histórias das metró- poles e dos seus impérios.

86Alguns senados das câmaras ultramarinas usavam o vocábulo «ouvidor» para referir as suas justiças (em vez de «juízes da terra» ou «juízes pela Ordenação»), ainda que a sua jurisdição não fosse alterada.

87Ver um exemplo de aplicação do conceito ao direito, em Shalini Renderia, «Between cunning states and unaccountable international institutions: Social movements and rights of local communities to common property resources», WZB Discussion Paper, no. SP IV 2003-502.

Conclusão

O case-study de um composto imperial moderno – como o português, sem dúvida o mais extenso e politicamente mais assimétrico – ajuda a iden- tificar alguns dos limites e dos erros frequentes da história do direito colonial clássica. Como conclusão, os pontos que se seguem descrevem perspectivas estratégicas de uma descrição menos enviesada das relações e equilíbrios ju- rídicos nos impérios da época moderna. Sublinhando, ao mesmo tempo, a maneira como os diversos modelos de acomodação política e jurídica ao longo do império encaixaram num thesaurus jurídico dogmático, já dispo- nível na dogmática letrada europeia, facilitando a sua integração numa nar- rativa jurídica imperial que reduzisse o caos institucional do todo.

Eis as tais linhas estratégicas de uma história jurídica dos impérios. A história do direito do império deve assentar numa perspectiva não imperialista e não formalista, escapando ao imaginário imperial (român- tico e nacionalista) originado nos séculos XIXe XX, bem como ao imagi-

nário simétrico do anticolonialismo.

Um conceito de direito dominado pelo estadualismo deve ser substi- tuído por um mais realista, no qual o direito seja identificado com a efi- cácia social das normas. Ao mesmo tempo, o reconhecimento de que o direito assumir outras «texturas»88em culturas radicalmente diferentes

(incluindo as subculturas metropolitanas) facilitará a percepção do vasto espectro de normas jurídicas estabelecidas no espaço colonial, permitindo avaliar, de forma mais equilibrada, a capacidade de acção local.

De um ponto de vista estrutural, o «direito imperial» da época mo- derna é semelhante ao ius commune, combinando uma constelação de compostos heterogéneos e independentes. O direito do império combi- nava detritos do direito local metropolitano – privilégios «naturais» das comunidades de colonos, cartas de privilégios que lhes eram concedidos pela coroa, privilégios pessoais usufruídos por grupos específicos (como o clero) – com os fragmentos do direito das nações indígenas, entendidas ou como naturales fictícios, ou como estrangeiros amigos, cujo direito era juridicamente considerado como merecendo consideração.

A validade das ordens locais era escassamente limitada por princípios gerais do direito comum. É certo que os escolásticos ibéricos do século XVI

formularam algumas condições para a legitimidade do direito e do poder – o reconhecimento de um certo tipo de governo, um sistema (heterosse-

88Velcheru Narayana Rao, Vlcru Nryaarvu, David Dean Shulman e Sanjay Subrahma- nyam, Textures of Time: Writing History in South India (Londres: Other Press/LLC, 2003).

xual, patriarcal, monogâmico) de relações entre os sexos,89a abertura

à comunicação religiosa e ao comércio, como características naturais da comunicação humana. Todavia, uma casuística intricada erodia forte- mente a eficiência prática dos critérios doutrinais.

O estilo casuístico do discurso jurídico letrado enfatizava a precarie- dade da universalidade das normas do direito.90Logo, o direito indiano

(derecho de Indias) – onde a noção existia, como na Espanha – tinha uma

dimensão temática e não-conceptual. Ou seja, não era um sistema de di- reito, mas um tema ou assunto de que o direito tratava.

A unidade jurídica é mais discursiva do que institucional-normativa, resultando de uma metalinguagem jurídica que procura combinar har- monicamente a diversidade das normas vividas e praticadas, com recurso a conceitos ou tópicos comuns como a relação harmoniosa entre as par- tes e o todo, a acomodação da natureza com a vontade, a ponderação de pontos de vista divergentes, etc., todos eles propícios para compor uma unidade composta de diferenças.

O tecido jurídico-político das diferentes esferas jurídicas e institucio- nais do império estava enquadrado implicitamente por categorias dou- trinais já inscritas no discurso dogmático do ius commune. Era isto que constituía a primazia simbólica do direito letrado sobre os usos da co- munidade rústica.

A hegemonia jurídico-metropolitana e as transferências do direito da metrópole para as colónias são mais um efeito da imaginação – frequen- temente performativa, é certo – dos juristas oficiais letrados do que uma realidade. Na verdade, o direito metropolitano raramente dispunha de um aparato logístico disseminado; na periferia, era aplicado por magis- trados pouco preparados e com pouco acesso às fontes jurídicas do di- reito comum e régio; raramente era aceite de boa vontade pelas popula- ções, culturalmente diferentes. Era distorcido pelas práticas jurídicas de colonos, crioulos e populações indígenas, e tinha de se acomodar às téc- nicas locais de prova judicial e de qualificação dos factos. O conceito de direito crioulo91é provavelmente o mais adequado para descrever estes

89Exclusão de promiscuidade, ainda que reconhecendo a possibilidade de uma estru- turação diferente da família (ver Baptista Fragoso, Regimen Reipublicae Christianae, Ulysi- pone, 1641, III, 632 ).

90Cf. Vitor Tau Anzoategui, Casuismo y Sistema (Buenos Aires: Instituto de Investiga- ciones de Historia del Derecho, 1992).

91Kenneth David Jackson, «Goa portuguesa e pós-colonial: literatura, cultura e socie- dade» (comunicação apresentada no Simpósio do Centro de Estudos Comparatistas, Lis- boa, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 24-25 de Maio, 2012).

processos de combinação diferenciada de vários níveis jurídicos, em que a predominância de um dos elementos não é facilmente identificável, nem suscetível de ser subsumida a um modelo geral.