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Como considerar as experiências imperiais portuguesas no que respeita a outros modos de pensar e praticar o relacionamento entre governos imperiais e populações do império, diferentes no tempo e na geografia? E, aproximando mais a objetiva, considerando outros impérios alguns deles contemporâneos do português, como fazê-lo tendo como hori- zonte as modalidades de governo dos outros por eles desenvolvidas? A inclusão neste volume de alguns estudos relativos a outros impérios (caso dos ensaios de Frederick Cooper e Jane Burbank, Sanjay Subrah- manyam e Tamar Herzog) com os quais o encerramos, constitui uma tentativa de encontrar algumas respostas a estas questões. O seu objectivo é, nesse contexto, o de «localizar» as experiências imperiais portuguesas, discuti-las não perdendo de vista outros palcos imperiais e seus reportó- rios de governabilidade e de gestão da diferença, ajudando a aferir a sua autoproclamada singularidade ou a ausência dela, contribuindo para ma- tizar a ideia de que a experiência imperial portuguesa (e, consequente- mente, as outras) teria sido, ela própria, diferente.

O modo pluralista de governar (os próprios e os «outros»), por exemplo, não constituiu uma especificidade da monarquia portuguesa. O capítulo «Império, direitos e cidadania, de 212 a 1946», da autoria de Jane Burbank

e Frederick Cooper,58disso mesmo dá conta, e o mesmo acontece com o

de Sanjay Subrahmanyam, «Uma história de três impérios da época mo- derna: mogóis, otomanos e habsburgos em contexto comparado».59

O império romano (que António Hespanha, no texto aqui publicado, relembra ter constituído uma das referências centrais do thesaurus mobi- lizado em contexto imperial português), o império russo (essencialmente pluralista, mas bastante distante do império português) e o império francês contemporâneo (referencial teórico do assimilacionismo dos séculos XIX

e XX),60aqui analisados por Jane Burbank e Frederick Cooper, convidam

a colocar em perspectiva as experiências de concessão de direitos e de ci- dadania no império português. Tal como nesta, as experiências imperiais romana, russa e francesa contemporânea são sintomáticas das tensões que, em cada situação imperial, articularam imaginários políticos e rea- lidades concretas, do modo como, num dado momento, soluções de- senvolvidas noutros lugares puderam ser convocadas para legitimar de- cisões políticas, e da maneira como tais tensões permitiram gizar alguns avanços no sentido de uma maior igualdade, mantendo sempre, porém, a diferença e a hierarquia.

Por exemplo, a atribuição de uma cidadania que abrangia todos os súb- ditos de Roma pelo imperador Caracala (212 d. C.) pode ser entendida como uma tentativa de reforço do poder imperial numa época de crise, bem como uma forma de pacificação das populações descontentes. Essa cidadania comportava direitos que aproximavam dominantes e domina- dos, mas não permitia o exercício igual da liberdade garantida pelas insti- tuições do direito civil romano ou a igualdade no acesso ao exercício de cargos políticos, o que hoje tendemos a associar ao pleno exercício da ci- dadania. Em contrapartida admitiam-se, no contexto do império romano pós-Caracala, diversas formas de ser cidadão romano, que não obscureciam outras identidades (locais, provinciais), o que acabou por conferir à cida- dania romana um potencial de flexibilidade e de inclusão apreciáveis.

58Este estudo foi anteriormente publicado, em língua francesa, como Jane Burbank e Frederick Cooper, «Empires, droits et citoyenneté, de 212 à 1946», Annales HSS, 2008, 3: 495-531. Ver ainda Frederick Cooper, Citizenship between Empire and Nation (Princeton: Princeton University Press, 2014).

59Este texto foi inicialmente publicado em língua inglesa como «A tale of three em- pires: mughals, ottomans, and habsburgs in a comparative context», Common Knowledge, 12 (1) (2006): 66-92.

60Ver, a esse propósito, Saliha Belmessous, Assimilation and Empire, cit., e Serge Mam Lam Fouk, Histoires de l’assimilation, des «vieilles colonies» françaises aux départements d’outre- -mer. La culture politique de l’assimilation aux Antilles et en Guyane françaises (XIXème et XXème

No império russo, e ao invés, seria o particularismo a grande matriz organizadora da concessão dos direitos. Primeiro, identificava-se a dife- rença (ou a especificidade) de cada povo/grupo submetido ao poder do czar, atribuindo-se-lhe, em seguida, direitos correspondentes ao estatuto reconhecido. Estes direitos eram sempre concedidos pelo czar, e percep- cionados como o produto da sua vontade política, e não como algo que decorria da própria natureza (ao contrário do que acontecia, por exem- plo, no caso português). A desigualdade das identidades de partida re- sultava em direitos desiguais, e cabia ao czar, sempre, o processo de re- conhecimento e de atribuição de um determinado estatuto.

Por fim, as discussões que ocorreram, já durante os séculos XIXe XX,

acerca dos estatutos dos territórios e das populações ultramarinos da re- pública francesa, igualmente analisadas por Burbank e Cooper, dão conta das dificuldades em compatibilizar uma visão unitarista do império, a di- versidade ultramarina e as aspirações das suas populações. A leitura desses parágrafos permite confirmar a similaridade entre processos que ocorreram nos impérios francês e português da época contemporânea. Sabe-se, por exemplo, que muitas das decisões que se tomaram, durante a vigência da monarquia constitucional, no que diz respeito à concessão de direitos e ao reconhecimento do estatuto de cidadão às populações do império, foram directamente influenciadas pelos acontecimentos e pelas decisões tomadas em França depois de 1789.61E também que, tal como sucedeu

na França pós-revolucionária, no Portugal liberal a ideologia convidava à unidade e a uma maior igualdade, ao mesmo tempo que o reconheci- mento de que a igualização era incompatível com a manutenção da si- tuação imperial obrigou a desenvolver argumentos que permitissem lidar com essa tensão, tais como o da natureza progressiva do «avanço civiliza- cional» nas colónias, que remetia a igualização para o futuro.

Da mesma forma, o capítulo de Sanjay Subrahmanyam convida a re- lativizar o tema da singularidade do império português, e a analisar, em contrapartida, as similaridades entre o império português e outras expe- riências imperiais.

61Sobre estas discussões ver máxime Cristina Nogueira da Silva, Constitucionalismo e Império, cit., e «Como contar a história dos direitos humanos? Algumas questões meto- dológicas», in Direitos Fundamentais e Soberania na Europa. História e Actualidade, orgs. An- tónio Marques e Paulo Barcelos (Lisboa: IFILNova, 2014). Sobre estes temas na França revolucionária, entre muitos outros, e a título de exemplo, Robin Blackburn, «Slavery, emancipation and human rights», in Self Evident Truths? Human Rights and the Enlighten- ment, org. Kate E. Tunstall (Londres e Nova Iorque, Nova Deli e Sidney: Bloomsbury, 2012); Laurent Dubois, A Colony of Citizens..., cit.

Recorda Subrahmanyam que no caso do império espanhol (que entre 1580 e 1640, recorde-se, integrou a monarquia portuguesa e os seus do- mínios ultramarinos) o pluralismo coexistia com uma pulsão para a es- tandardização, como Serge Gruzinski designou este processo,62uma pul-

são para a translatio de instituições ibéricas e sua implantação mais ou menos sistemática nos espaços ultramarinos, ocidentalizando-os. Dando sequência ao processo de homogeneização política e cultural iniciado nos territórios metropolitanos com a expulsão dos judeus, ainda no sé- culo XV, a religião católica cumpria também essa função de estandardi-

zação, contribuindo fortemente, até por causa da atitude mais ou menos generalizada de intolerância, para a uniformização dos territórios atlân- ticos do império habsburgo.

Note-se que a diversidade das sociedades que os espanhóis encontra- ram no «seu Atlântico», quando comparadas com as dinâmicas socio- políticas dos povos brasileiros com quem os portugueses interagiram, terá contribuído, também, para a diferença que se pode identificar entre as experiências portuguesa e espanhola.63

Igualmente pluralistas, os otomanos manteriam de forma mais siste- mática a diversidade institucional em boa parte dos territórios incorpo- rados, assim como nos seus territórios centrais. Por isso, «os domínios otomanos eram reconhecidos como local de refúgio para os grupos re- ligiosos perseguidos na Europa», apesar de o acolhimento destas minorias não ser garantida da mesma forma em todos eles. Também no espaço otomano o grau de tolerância religiosa era variável, bem como a maior ou menor capacidade de negociação dos grupos envolvidos. O sistema

devshirme, no contexto do qual se recrutavam à força rapazes das popu-

lações submetidas, educando-os no mundo otomano, e transformando- -os numa espécie de soldados ou de burocratas, também revela uma re- lação complexa com a alteridade; muito embora as expectativas e as oportunidades destes escravos otomanos fossem inegavelmente mais am- plas (e o império mameluco disso dá conta) do que as dos escravos ibé- ricos, por exemplo.

A escala de diversidade e flexibilidade institucional terá sido ainda maior no império mogol dos finais do século XVIe primeira metade do

62Serge Gruzinski, Les quatre parties du monde. L’histoire d’une mondialisation (Paris: Édi- tions de La Martinière, 2004).

63Ver, a propósito dos povos encontrados pelos portugueses na América, Manuela Carneiro da Cunha, org., História dos Índios no Brasil (São Paulo: Companhia das Letras, 1992); Eduardo Viveiros de Castro, A Inconstância da Alma Selvagem e Outros Ensaios de Antropologia (São Paulo: Cosac & Naify, 2002).

século XVII, onde a elite dominante integrava indianos hindus e muçul-

manos, bem como grupos oriundos quer da Índia quer de outros lugares da Ásia central – nomeadamente iranianos. O peso que os zamindars – governantes locais, na maior parte dos casos com raízes duradoiras nos territórios que governavam – tinham na estrutura burocrática dos mogóis dá conta da dimensão de co-produção do poder mogol, distribuído entre elites originariamente mogóis ou suas vizinhas, e as elites locais.

Para além das inegáveis diferenças culturais, a variável demográfica pa- rece constituir, na perspectiva de Sanjay Subrahmanyam, um factor im- portante para a compreensão destas similitudes e destas diferenças. Ao contrário dos espanhóis e dos otomanos, cujos príncipes reinavam sobre 20 a 25 milhões de súbditos cada, os mogóis, apesar de dominarem ex- tensões territoriais que não eram necessariamente mais extensas do que as daqueles impérios, governavam cerca de 120 milhões de pessoas. Ou seja, no caso mogol, o problema da diversidade populacional colocava- -se a uma escala bem distinta, pelo que «era inconcebível que um império do tamanho do dos mogóis pudesse ser governado apenas pela força».

Sabendo que o reino de Portugal tinha, por essa altura, cerca de 1 700 000 habitantes,64 contabilizando, em finais do século XVIII,

2 931 930 habitantes,65e que as populações sobre as quais incidia o do-

mínio imperial português estavam longe de compor um quadro demo- gráfico tão extenso quanto o dos impérios atrás referidos, este panorama ajuda-nos, desde logo, a pensar as experiências pluralistas dos portugueses numa perspectiva comparada, aproximando-as e diferenciando-as das de outros impérios. A escassez de gente na metrópole e o facto de a sua geo- grafia ser das mais alargadas serão, no caso português, variáveis tão rele- vantes quanto a expressividade estatística das populações sobre quem se exercia domínio (cujo número é mais difícil de calcular).

Como começamos por afirmar no início desta introdução e como se documenta em muitos dos textos deste livro, a «mobilidade ontológica» constituiu uma das características transversais às experiências imperiais portuguesas. No império português foram vividas muitas situações nas quais não parece ter havido nem perfeitos colonizadores, nem perfeitos colonos, nem perfeitos colonizados. Estas estavam longe de ser identi-

64Nuno Palma e Jaime Reis, Portuguese Demography and Economic Growth, 1500-1850, em vias de publicação.

65Paulo Teodoro de Matos, «The population of the Portuguese Estado da Índia, 1750- -1830», no prelo, 175; Paulo Silveira e Sousa, Jelmer Vos P. Axelsson e Paulo Teodoro de Matos, «Populations trends in the Portuguese Empire, 1776-1822: an overview», Anais de História de Além-Mar, XVI ( 2015, no prelo).

dades fixas, identificando-se não apenas uma grande fragmentação no interior de cada categoria, como o trânsito entre elas, a metamorfose de colonizados em colonizadores, e, sobretudo, de colonos e colonizadores em colonizados. Não surpreende, pois, que muitos deles partilhassem «estatutos incertos»,66os quais podiam variar em função de contextos e

conjunturas.

Essa incerteza do estatuto, essa dificuldade em identificar o colonizador e o colonizado, terá caracterizado, de forma igualmente (ou mais) con- tundente, as experiências imperiais espanholas, como se deduz do inspi- rador estudo (capítulo) de Tamar Herzog.67Herzog mostra que a identi-

ficação do «outro» no império espanhol da época moderna não terá tido como referente o natural de Espanha (no sentido de o nascido no territó- rio), mas sim «aquele que se comportava como espanhol».68Mais do que

de um discurso assente sobre os conceitos de «nação» ou de «nacionali- dade», no caso do império espanhol da época moderna, a diferenciação fazia-se por recurso a um discurso civilizacional, cultural. Identificar al- guém como «espanhol» nos territórios atlânticos dos séculos XVIe XVII

não reenviava necessariamente para o sangue espanhol (i. e., para a natu- reza, para a biologia) e para o nascimento nas fronteiras metropolitanas (i. e., para o território), elementos que, de resto, não eram determinantes para identificar alguém como espanhol no próprio contexto peninsular, mas sim para a partilha de determinados códigos religiosos e culturais. Assim sendo, o grupo dos não-espanhóis podia incluir índios, portugueses ou ingleses, mas até mesmo os «nascidos na Espanha» que não cumpriam

66Cristina Nogueira da Silva, «Estatutos incertos: ser português e ser cidadão em ter- ritórios americanos e africanos do império português, sécs. XIX-XX», in Portugueses e Brasi- leiros na África: Tráfico de Cativos, Escravidão, Hierarquias e Direito (Séculos XV-XIX), ed. Ro- berto Guedes (Rio de Janeiro: MAUAD Publicações, 2013); Ângela Barreto Xavier, «Frei Miguel da Purificação entre Madrid e Roma. Relato de uma viagem à Europa de um frade português nascido na Índia», Cuadernos de Historia Moderna (La Memoria del Mundo. Clero, Erudición y Cultura Escrita en los Imperios Ibéricos de la Edad Moderna), XIII (2014).

67 Este estudo foi inicialmente publicado em língua inglesa como «Can you tell a Spa- niard when you see one? ‘Us’ and ‘them’ in early-modern Spain», in Polycentric Monarchies: How Did Early Modern Spain and Portugal Achieve and Maintain a Global Hegemony?, eds. Pedro Cardim, Tamar Herzog, José Javier Ruiz Ibáñez e Gaetano Sabatini (Eastbourne e Portland: Sussex Academic Press, 2012), 147-161.

68Ver, a esse propósito, o capítulo de António Manuel Hespanha incluído neste vo- lume, mas também as páginas que este autor dedica ao tema da naturalidade em Como os Juristas Viam o Mundo, cit. Sobre a polissemia da palavra «natural» e suas aplicações no Portugal da época moderna, ver Ângela Barreto Xavier, «Natural ou nom natural destes reynos. Inclusão, exclusão, mobilidade e trabalho no Portugal da época moderna», in Re- pensar a Identidade. O Mundo Ibérico nas Margens da Crise da Consciência Europeia, orgs. José María Iñurritegui, Pedro Cardim e David Martín Marcos (Lisboa: CHAM, 2015).

os critérios da civilidade espanhola. Ou seja, era à «civilização» que se as- sociava a «naturalidade», o que abria a possibilidade de integrar na comu- nidade dos espanhóis os habitantes dos territórios ultramarinos que se comportavam como tal (incluindo os índios). Porque centrado na dife- renciação entre espanhóis e não-espanhóis, neste estudo Herzog não ex- plora as maneiras como, quotidianamente, a integração era vivenciada. É provável que também aí se verificasse uma escala de diferenciação entre os diferentes tipos de «espanhóis», a partir de variados critérios, nomea- damente critérios assentes no «sangue», como a pintura de castas deixa entrever.69Em todo o caso, o capítulo de Tamar Herzog tem todos os in-

gredientes que convidam a transpor o seu campo problemático para o império português: o que é que definia um português no Atlântico ibérico (ou no resto dos territórios ultramarinos) da época moderna? A língua, o traje, o comportamento, a cultura? Ou a genealogia, o sangue, a cor?

Esta pergunta, bem como a natureza quase sempre incerta ou ambígua da resposta, repetiu-se até bem tarde. Não será por mero acaso que ainda em 1956 Marcelo Caetano afirmava, de forma que hoje parece confusa, que os «indígenas» que nasciam e residiam nas colónias portuguesas eram «[...] súbditos portugueses, submetidos à protecção do Estado português, mas sem fazerem parte da Nação [...]».70

69 Ver a esse propósito, Maria Elena Martínez, Genealogical Fictions. Limpieza de Sangre, Religion, and Gender in Colonial Mexico (Stanford: Stanford University Press, 2008) ou o volume editado por María Elena Martínez, Max S. Herring Torres e David Nirenberg, Race and Blood in Spain and Colonial Hispano-America (Berlim e Londres: LIT Verlag, 2012).

Parte I

Constantes

do governo dos outros

no império português