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Se este quadro de análise está correcto, que lugar é que se pode atribuir à cor na génese do pensamento racial? Colocar esta questão poderá pa-

24Em inglês, no texto original (N. da T.): «somehow created a racial inferiority». 25Norman Roth, Conversos, Inquisition, and the Expulsion of the Jews from Spain (Madison, The University of Wisconsin Press, 2002), 230-231.

recer surpreendente para a maior parte dos autores que reflectiram sobre a questão racial no contexto cultural, académico, e político das universi- dades anglófonas, e particularmente dos Estados Unidos. É surpreen- dente verificar que a maior parte dos estudos americanos de ciências so- ciais que incidem sobre a questão da raça estabelecem uma espécie de equivalência, de forma tão evidente que pode mesmo ser tácita, entre

raça e cor. Quanto aos estudos sobre a pureza de sangue ibérica, eles per-

tencem ao domínio das investigações sobre história judaica, da Inquisi- ção, dos marranos e dos mouriscos, mas não propriamente ao domínio dos race studies.

Se os estudos nas ciências sociais que concernem as discriminações ra- ciais se desenvolvem num quadro enformado pela questão da cor, tal tem como referente a obra pioneira de Du Bois e, em particular, esse cé- lebre parágrafo em forma de profecia:

O problema do século XXé um problema de cor – a relação das raças mais

escuras com as raças mais claras na Ásia e na África, na América e nas ilhas oceânicas. Foi uma fase deste problema que causou a Guerra Civil; e por muito que os que marcharam pelo Sul e pelo Norte em 1861 se tenham con- centrado nos pontos da união e da autonomia local como um slogan, todos sabiam, porém, como nós o sabemos, que a questão da escravidão negra foi a verdadeira causa do conflito. Também é curioso perceber como é que esta questão profunda emergiu à superfície, apesar das retratações e dos esforços contrários.26

Como foi recordado por Stephen Cornell e Douglas Hartmann no seu volume sobre raça e etnicidade, a diferença visível instala o indivíduo considerado pela sua diferença fisiológica aparente na situação de uma pessoa que – para retomar a expressão de Pap N’Diaye – não pode abolir a sua «condição».27O facto de, numa sociedade europeia, não podermos

não ver que um negro é um negro, ou de, numa sociedade asiática, que

26W. E. B. Du Bois, The Souls of Black Folk (Chicago: A. C. McClurg & Co., 1903), ca-

pítulo 2. Em inglês no original (N. da T.): «The problem of the twentieth century is the problem of the color-line,—the relation of the darker to the lighter races of men in Asia and Africa, in America and the islands of the sea. It was a phase of this problem that caused the Civil War; and however much they who marched South and North in 1861 may have fixed on the technical points of union and local autonomy as a shibboleth, all nevertheless knew, as we know, that the question of Negro slavery was the real cause of the conflict. Curious it was, too, how this deeper question ever forced itself to the surface despite effort and disclaimer.»

27Stephen Cornell e Douglas Hartmann, Ethnicity and Race: Making Identities in a Chan- ging World (Thousand Oaks: Pine Forge Press, 1998), 24-29; Pap N’Diaye, La condition noire: Essai sur une minorité française (Paris: Calmann-Lévy, 2008).

um branco é um branco, não é um fenómeno indiferente. Os processos perceptivos têm um impacto na experiência social das pessoas, quaisquer que sejam as performances que estas são capazes de fazer para se confor- marem aos cânones sociopolíticos e culturais dominantes, e qualquer que seja a disposição dos indivíduos do grupo maioritário no sentido de não reduzirem cada indivíduo de um grupo minoritário à condição exemplar de um tipo visivelmente distinto.

Mesmo que aparente ser uma experiência generalizada, sobretudo após cinco séculos de processos coloniais e de mobilização massiva do traba- lho escravo, a diferença visível resulta de situações específicas. Mas afir- mar que a diferença visível é a maneira como a distinção racial opera nas sociedades ocidentais enfrenta obstáculos lógicos e históricos. Quanto mais forte é a percepção da diferença sensorial, menor a necessidade de os processos de discriminação, de repressão ou de categorização se apoia- rem sobre argumentos de natureza biológica. Mais ainda: é plausível avançar com a ideia contra-intuitiva de que o racismo fundado sobre a diferença visível se enraíza numa primeira história, a história da resposta racial à invisibilidade do outro, resposta cujo instrumento principal é a técnica genealógica. Dito de uma outra forma, quando as sociedades co- loniais tiveram necessidade de teorizar a inferioridade do homem negro, atribuindo-lhe uma identidade natural transmissível por geração, as so- ciedades europeias (e as ibéricas, em particular) tinham já experienciado a eficácia da concepção genealógica da alteridade, a qual tinha como ob- jectivo perpetuar o estigma da infidelidade judia e muçulmana como dis- posição natural transmissível por via da geração.

Esta argumentação propõe uma cronologia da emergência das catego- rias raciais, enquanto instrumento da acção política, que situa o fenómeno do anti-semitismo ibérico numa posição de antecedência de facto em rela- ção às regras de discriminação postas em prática na formação das socie- dades coloniais. Esta antecedência não postula, por isso mesmo, qualquer descontinuidade entre um e outro fenómeno. Ela regista como dado his- tórico, ao invés, o facto de os grupos sociais que fundaram os territórios coloniais americanos, graças à exploração maximalista das sociedades na- tivas e à deportação de milhões de africanos, serem portadores de uma cultura política e de regras de organização nas quais a rejeição social dos judeus ocupava um lugar central.28Se a identificação desta sequência dá

28Hebe Maria Mattos, «A escravidão moderna nos quadros do império português: o Antigo Regime em perspectiva atlântica», in O Antigo Regime nos Trópicos, eds. João Fra- goso, Maria Fernanda Bicalho e Maria de Fátima Gouvêa (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001), 141-162.

conta de processos que ocorreram na época moderna, então torna-se ne- cessário concluir que a estigmatização dos convertidos não se construiu por analogia com a rejeição de populações visivelmente outras – como os negros, por exemplo. De maneira contra-intuitiva, esta sequência su- gere que foi a reprovação dos convertidos, indistinguíveis, a matriz e o terreno para a repulsa em função do fenótipo.

A questão da alteridade expressa na cor da pele não se torna menos essencial. Mas ainda faltam meios para que possamos abraçar este domí- nio em toda a sua complexidade. Por um lado, torna-se necessário con- frontar o que parece ser um universalismo de repulsão em relação aos de tez mais escura. Encontramos em inúmeras sociedades, aí se incluindo a Ásia oriental, a interpretação de que a palidez resultava da pertença a uma classe superior, desobrigada do trabalho ao ar livre, por oposição ao bronzeado que denotava o oposto. Depois, a ideia de que a pele negra significava uma condição servil refere-se à maldição bíblica de Caim, im- pondo-se às sociedades europeias depois de ter sido registada e temati- zada pelas sociedades ibéricas sob a influência duradoira do direito islâ- mico, no final da Idade Média.29Essa verificação problemática implica

uma referência à interacção entre Islão mediterrânico e Cristandade, o que, mais uma vez, coloca a Península Ibérica em posição estratégica para compreender a história deste processo. Ou seja, é importante integrar na análise o facto de os europeus da época moderna não saberem bem como interpretar a cor da pele negra, já que a melanina ainda não tinha sido identificada.30As explicações cosméticas e congenitais, i. e., a combinação

do desejo da mãe africana de querer dar à luz uma criança negra associada à existência de técnicas artificiais de escurecimento da pele, colocam o negrume africano do lado da vontade e da cultura, e não da natureza. Tal como persistem as explicações climáticas e ambientais, ainda que des- mentidas pela experiência.

Da mesma forma, a animalidade simiesca dos negros tornou-se cada vez mais evidente quando os africanos da América se aproximaram do estatuto de co-cidadãos, o que aconteceu no século XIX. In loco, Alexis de

Tocqueville percebeu rapidamente que uma das consequências da abo- lição era a intensificação do preconceito racial:

29Benjamin Braude, «The sons of Noah and the construction of ethnic and geograp- hical identities in the medieval and early modern periods»,William and Mary Quarterly, 54 (1997): 103-142; James Sweet, «The Iberian roots of American racist thought». William and Mary Quarterly, 54.

30Renato G. Mazzolini, «Il colore della pelle e l’origine dell’antropologia fisica», in L’epopea delle scoperte, ed. Renzo Zorzi (Veneza: Olschki, 1994), 229-237.

Aproximaram-se os negros dos brancos, nas partes da União onde não são mais escravos? Todo aquele que residiu nos Estados Unidos percebeu que se produziu um efeito contrário. O preconceito da raça parece-me mais forte nos estados que aboliram a escravatura do que naqueles onde a escra- vatura ainda existe, e em nenhuma parte se é tão intolerante quanto nos es- tados onde a servidão é praticamente desconhecida. É verdade que no Norte da União a lei permite aos negros e aos brancos casarem-se legitimamente: mas a opinião pública declara infame o branco que se une a uma negra, e seria difícil encontrar um exemplo de algo do género. Em quase todos os es- tados onde a escravatura foi abolida, atribuiu-se aos negros direitos eleitorais; mas se eles se apresentam para votar, correm risco de vida.31