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Para uma interpretação do papel específico da língua na construção da personagem do negro, sirvo-me de uma situação representada na peça de Gil Vicente Frágua d’Amor,26classificada como uma «tragicomédia» na

Copilaçam de todas as obras... e representada em Évora em 1525, por oca-

sião do casamento – na ausência da noiva – do rei português D. João III com D. Catarina de Áustria, irmã de Carlos V, imperador, rei de Castela. A frágua ou forja que dá o nome à peça é trabalhada por quatro ferreiros ilustres, Mercúrio, Júpiter, Saturno e o Sol, todos sob o comando de Cupido. Como uma manifestação concreta da transmutação em curso na relação entre Portugal e Castela, colocada sob o signo do Amor, a forja de Cupido oferece a possibilidade de metamorfosear a condição fí- sica de qualquer pessoa que o deseje, homem ou mulher, grande ou pe- quena, gorda, velha, negra ou parda. A primeira pessoa a entrar na forja é precisamente o negro que, numa cena precedente, tinha entrado em diálogo com Vénus, mãe de Cupido, tentando seduzi-la. O diálogo trans- porta em si uma série de estereótipos e metonímias de autodenegrimento: o negro entra no palco «cantando na língua de sua terra», revela-se um bêbado inveterado e apresenta a ridícula pretensão de seduzir Vénus, deusa do Amor e personificação da beleza física. Na cena seguinte di- rige-se à forja e afirma a sua pretensão de ser feito «branco como ovo de galinha», com o seu nariz, lábios e dedos refeitos à maneira dos brancos: «minha nariz feito bem», «nariz mui delgada», «beiça delgada», «fermosa minha dedo». O negro entra então na máquina e sai dela feito um «muito gentil homem branco»; porém, «a fala de negro nam se lhe pode [pôde] tirar na frágua». O negro, agora branco, queixa-se enfaticamente e pede de volta a sua cor de pele original, apercebendo-se de como são inúteis mudanças na cor da pele se não forem acompanhadas de uma metamor- fose similar a nível do discurso.

A situação cómica consiste aqui numa inversão do que está disponível para mudança na natureza e na sociedade: o poder alquímico da forja torna possível uma metamorfose do aspecto físico, indisponível na ordem natural. Mas logo a linguagem, característica humana adquirida na vida social e como tal susceptível de ser mudada, ocupa o lugar do que é físico e torna-se, por assim dizer, congénita. Nem o poder mira - culoso de entidades supranaturais a pode branquear. Esta situação parece

corresponder à inversão para efeitos cómicos de provérbios clássicos e anedotas que insistiam na impossibilidade de branquear a pele dos ne- gros. Com origens antigas, até às fábulas de Esopo, um desses provérbios foi compilado por Alciato no seu Livro de Emblemas (Emblematum Liber), impresso em 1531 e com ampla difusão na Europa dos séculos XVIe XVII.

No emblema 59, que representa o «impossível», uma gravura mostra dois homens lavando a pele de um negro, com a legenda seguinte: «Porque lavas, em vão, o Etíope? Oh, não o faças: ninguém consegue dar brilho à escuridão da negra noite».27

A cena da Frágua d’Amor pode, por sua vez, funcionar como um em- blema do modo de funcionar daquilo a que aqui tenho chamado língua de denegrimento. É como se o discurso errado se colasse à figura do negro, como segunda pele e segunda natureza, denotando tanto como a cor. Podemos mesmo falar de uma linguagem fenotípica, que denota imediatamente a presença ou as qualidades de um negro na cena, inde- pentemente, aliás, da sua presença física nela – como de resto acontece na leitura do texto teatral.

Se a maneira de falar se cola assim à pele do negro, ela não deixa ao mesmo tempo de ganhar certa autonomia. Por um efeito de metonímia – um sinal ou parte da coisa representa e substitui a própria coisa – a «língua do negro» ganha valor cómico fora de qualquer preocupação rea- lista.28É o que acontece noutra peça de Gil Vicente, a última deste autor

que se conhece, Floresta de Enganos, apresentada também em Évora pe- rante a corte de João III em 1536.29Trata-se de uma farsa atravessada pelo

tema da sucessão de fingimentos e enganos. As personagens que desfilam em cena enganam-se umas às outras sem cessar, criando uma cadeia có- mica de consequências imprevistas. Numa dessas situações, um alto ma- gistrado («doutor justiça Maior do Reino»), casado e já idoso, tenta se- duzir uma moça que trabalha no serviço doméstico. A moça finge ir na conversa do juiz e convida-o a visitá-la à noite, secretamente, na casa dos seus amos. Quando o juiz chega, a moça convence-o a despir as roupas de magistrado e a disfarçar-se de criada para que a sua patroa o não des- cubra. É nesta posição humilhante, a joeirar o trigo, que a ama o encon- tra. Antes de ser desmascarado pela moça como «doutor em fraldas de panadeira», é admoestado e insultado pela velha mulher como «cadeli-

27«Abluis Aethiopem quid frustra? Ah desine: noctis Illustrare nigrae nemo potest te- nebras», in Alciato’s Book of Emblems: The Memorial Web Edition in Latin and English (2005): http://www.mun.ca/alciato/059.html. Consultado a 2 de Junho de 2016.

28Cf. Fra Molinero, La Imagen de los Negros..., 25. 29Obras Completas de Gil Vicente..., vol. 1, 479 e segs.

nha» – injúria habitualmente reservada às negras. Assumindo a sua nova identidade. o juiz deixa o seu castelhano – língua de prestígio – para uma língua de denegrimento de base castelhana atravessada de lusismos:

Por qué vos mia señora estar tanto destemplado? Ya tudo estar peneirada que bradar comigo ahora que cousa estar vós hablanda? A mi llama Caterina Furnando nunca a mi cadella não (v. 642-648)

Por que estais, senhora tão destemperada? Já está tudo peneirado Por que bradais comigo agora Que coisas dizeis?

Chamo-me Catarina Fernando Não sou nenhuma cadela

Ao tirar as roupas de juiz e envergar as da criada, o magistrado é so- cialmente ridicularizado por três lados: torna-se a um tempo mulher, criada e negra. Quanto à língua, ela funciona essencialmente aqui como signo. O juiz transforma-se em criada negra a partir do momento em que fala. O disfarce é uma simples máscara pronta a usar que não parece ser acompanhada de grande preocupação realista. As roupas da criada e a adopção da sua maneira de falar funcionam como elementos significati- vos exteriores, contribuindo para a mudança de status do juiz. O seu do- mínio aparentemente espontâneo da maneira de falar de uma criada negra revela na verdade o seu aspecto estereotipado, fácil de reciclar, de tirar e pôr como uma máscara.

Outras peças portuguesas do século XVIapresentam este uso da língua

de denegrimento como puro signo que deixa de requerer um referente presencial. Nos autos de Chiado personagens de brancos falam esponta- neamente «fala de negro» numa variedade de circunstâncias. Na Prática

de Compadres, apesar de não entrarem negros, a fala que os parodia irrompe

numa discussão entre marido e mulher. Para explicar ao marido, de com- preensão lenta, que a capa deste tinha sido roubada, a mulher suprime o artigo definido e inverte a sintaxe: «Quereis que vos fale Guiné? / Capa de vossa mercê / já levou ele ladrão» (v. 98-101). Algumas linhas depois, para contrariar os gritos do marido, aconselha-o a arranjar uma

escrava a quem possa berrar. Reaparece aqui a associação comum entre negros, escravos e e ladrões

Mais interessantes são dois exemplos breves, ainda de autos de Chiado. No Auto das Regateiras a personagem Pero Vaz dirige-se à escrava Luzia, que estava incluída no dote de casamento da noiva do filho. Fala-lhe na- quilo que ele imagina ser a sua fala. Tal provoca o espanto da ama de Luzia: «não é ela tão selvagem / falai-lhe vossa linguagem» (v. 810-811). Na já referida cena do Auto da Natural Invenção em que um senhor con- funde um músico com um escravo e ameaça castigá-lo, a ironia da situa- ção é sublinhada pelo facto de que o talentoso músico negro também fala português correcto. O senhor completa então a ironia da situação usando palavras e formas verbais de língua de denegrimento (v. 210-213). Em ambos os autos entram figuras de negros que, falando português cor- rectamente, se dissociam aparentemente do estereótipo da incompetência linguística. No entanto, em ambos os casos, tal desempenho linguístico correcto perturba visivelmente as expectativas dos interlocutores (que as- sumem o ponto de vista de uma audiência imaginada), produzindo co- micidade às avessas, algo que o uso da «fala de negro» pelos brancos vem sublinhar.

Nestes dois exemplos a língua de denegrimento funciona como me- tonímia, pronta a usar em diferentes situações teatrais. Em vez de repre- sentarem simplesmente um negro em cena, os actores brancos usam ré- plicas numa linguagem que o invoca, assim como aos seus estereótipos. Ao fazê-lo, estão a ser duplamente paródicos: parodiam uma língua já de si paródica.