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O teatro espanhol, e em especial alguns entremeses, também explora o aspecto cómico de colocar a fala de denegrimento numa personagem de branco. Também aqui encontramos a paródia de um registo paródico: não apenas disfarçar-se de negro na representação, mas usar a fala como significante cómico próprio. Num entremez encontramos mesmo a re- ferência ao envergar de máscaras. Na obra intitulada Los Negros de Santo

Tomé, um grupo de ladrões, para fugir à justiça, assume a identidade de

um grupo de negros ensaiando uma dança («danza de negros»). Colocam «máscaras de negros» e bonés e pegam em pequenos tambores. Interro- gados por um aguazil, respondem-lhe com uma canção que reenvia a resposta de um membro do bando para outro, indefinidamente, até que o representante da autoridade se cansa e conclui que está perante negros

boçais («bozales») que não o entendem. Pensando que são eles os igno- rantes, acaba por não ver que é ele o enganado.

Entra aqui a importante questão de saber como se caracterizavam as personagens de negros em palco. Neste artigo, uso textos de teatro como fonte essencialmente literária; a dimensão da presença em cena e da per- formance, fundamental para a compreensão do sentido, permanece es- condida atrás da superfície do texto. Eis porque é relevante estudar as- pectos concretos da identidade social dos actores e outros intervenientes nos espectáculos. Quanto à forma concreta de representar personagens de negros, segundo Fra Molinero, no teatro espanhol era habitual pintar as mãos e a cara de actores brancos.30O entremez acima citado dá-nos

um exemplo de outra forma de caracterização: o uso de máscaras, per- mitindo um disfarce rápido durante o espetáculo.

O uso de roupa apertada representando a pele negra era outra possi- bilidade. Encontramos esse adereço na peça de teatro jesuítico do padre António Sousa, Tragicomédia de la Conquista del Oriente, representada em Lisboa em 1619 pelos estudantes do colégio de Santo Antão para o rei de Portugal, D. Filipe II, e seu filho e herdeiro, o futuro Filipe III. O tema da peça, com longos trechos em latim,31são os feitos dos portu-

gueses na Ásia na época, considerada áurea, do rei D. Manuel I. A dada altura, um Brasil personificado (e acabado de descobrir) entra em cena. Vem acompanhado de um rei indígena («tapuya») e um séquito de outros indígenas, papagaios e macacos. Brasil trazia «un vestido justo de color de negra carne». Os restantes indígenas estavam caracterizados do mesmo modo, com um «vestido justo, y de pardo que fingia desnudez». Já o «ta- puya» era representado por um estudante de Filosofia e Direito Canónico que «era de su natural pardo, y sobre manera agraciado, que de muy lexos no se pudiera hallar mas pintado a lo que pedia la obra y el lugar» (p. 57). Para homenagear o rei europeu, o Ameríndio pede uma guitarra e toca, acompanhado do seu coro, «como rude e bozal». A canção que o rei escuta, no entanto, não é em língua americana, mas em «fala de negro». Funciona, sem qualquer espécie de intenção de realismo, como um simples marcador de diferença exótica.

Estes exemplos parecem revelar uma flexibilidade paradoxal na carac- terização da figura do negro. Tal como as gravuras de damas brancas que

30Fra Molinero, La Imagen de los Negros..., 20.

31Não se conhece o texto original da peça, mas sim uma extensa descrição multilingue feita por João Sardinha Mimoso: Relacion de la Real Tragicomedia con que los Padres de la Compañia de Iesus en su Colegio de S. Anton de Lisboa recebieron a la Magestad Catolica... (Lis- boa: Jorge Rodrigues, 1620).

podiam ser pintadas de negro, foi um dispositivo relativamente comum usar a língua como sinal ou máscara pronta a utilizar em situações có- micas. Temos aqui uma combinação paradoxal entre a rigidez dos este- reótipos e a leveza do seu uso em cena. A rigidez na caracterização social e moral das personagens não era incompatível com a facilidade com que identidades sociais «elevadas» podiam ser alvo de sátira recebendo atri- butos de identidades «baixas». A «fala de negro» podia ser utilizada contra representantes do poder judicial, como na Floresta de Enganos ou como instrumento de irrisão de autoridades, como no entremez Los Negros de

Santo Tomé. Ao fazerem «a personagem errada pronunciar um juízo acer-

tado»,32os autores teatrais usavam a representação do negro como sin-

toma de inquietação social ou instrumento, ainda que localizado, de crí- tica moral. Um bom exemplo é o diálogo de Henrique da Mota, em que uma mulher escrava é acusada por um clérigo de ter entornado um tonel de vinho.33A resposta da mulher em sua defesa, clamando inocência e

apelando para a justiça, é altamente persuasiva, voltando-se contra o acusa dor, fazendo pressentir no leitor o abuso do forte contra o fraco.

O negro do Clérigo da Beira dá-nos um cativante elogio da preguiça. Como escreveu Paul Teyssier, é a figura de negro mais desenvolvida das peças vicentinas. Trata-se de uma «farsa de folgar» de 1526, apresentada em Almeirim, uma vez mais perante a corte de D. João III. O clérigo que dá o título à farsa é um eclesiástico de vocação e de moral duvidosas, oriundo da região do interior de Portugal a que, nos textos vicentinos, foi atribuída a maioria dos estereótipos rurais. A meio da farsa, aparece a história de um camponês ignorante, Gonçalo, que é roubado múltiplas vezes, primeiro por dois moços do palácio e depois por um «negro grande ladrão». Para melhor o enganar, este último declara a Gonçalo a sua solidariedade com as suas desventuras e confessa a sua absoluta incapacidade para furtar. Capta a confiança da sua vítima com uma sofisticada teoria da (in)acção moral: não vale a pena roubar, não por particulares escrúpulos éticos, mas porque a vida é dura e cansativa para todos, do mais humilde escravo ao Papa de Roma. Para quê roubar?, pergunta-se ele, num longo aparte:

Para quê? Para comê? Muto comê, muto bevê, turo, turo sa canseyra

32A frase é de Constantine Christopher Stathatos, A Critical Edition with Introduction and Notes of Gil Vicente’s Floresta de Enganos (Chapel Hill: University of North Carolina Press, 1972), 27.

33Henrique da Mota, «A hũcreligo sobre hũa pipa de vynho q. se lhe foy polo chã, & lemētaua o desta maneyra», in Cancioneiro Geral..., vol. V, 195-202.

dirá [direi] mundo turo canseyra senhor grande canseyra

home prove canseyra muyere fermoso canseira muyere feo canseyra negro cativo canseyra senhoro de negro canseyra vay misa canseyra

pregaçam longo canseyra crérigo nam tem muyere canseira crérigo tem muyere grande canseyra firalgo solto canseyra

chovere muyto canseyra nam podê chovere canseyra muyto filho canseyra nunca pariro canseyra Papa na Roma canseyra

essa ratinho [o rústico Gonçalo] canseyra nam vamo paraíso grande grande grande canseira

Vira resa [desse] mundo turo turo hé canseyra! Mi nam falá zombaria

Pos para que furtá? que riabo sempre sá abre hoyo turo ria. (v. 484-512)

Para quê? Para comer? Muito comer, muito beber, tudo, tudo é canseira.

Eu direi: o mundo todo é canseira: senhor grande, canseira;

homem pobre, canseira; mulher formosa, canseira; mulher feia, canseira; negro cativo, canseira; senhor de negro, canseira; ir à missa, canseira; pregação longa, canseira; clérigo não ter mulher, canseira; clérigo ter mulher, grande canseira; fidalgo solto, canseira;

chover muito, canseira; não poder chover, canseira;

muitos filhos, canseira; nunca parir, canseira; o Papa em Roma, canseira esse ratinho, canseira;

não irmos ao paraíso, grande, grande, grande canseira Na vida deste mundo tudo, tudo é canseira!

Eu não falo zombaria. Pois para quê furtar? Que o diabo sempre está; abre os olhos todo o dia.

[tradução para português corrente de Paul Teyssier]

A hábil combinação entre uma quantidade de frustrações que tocam a vida de figuras de todas as classes e a repetição do refrão da «canseira» convida-nos a adoptar por um momento o ponto de vista do negro la- drão. No final de contas, e perante a fadiga do mundo, não será a inacção a atitude mais sábia? O estereótipo está todo representado aqui – um negro ladrão e preguiçoso –, nunca é negado, mas a cena oferece ao leitor todo o seu poder sugestivo de uma ética alternativa.

Um último exemplo deste fenómeno encontra-se no Entremés de los

Negros, de Simon Aguado, de 1602. Esta pequena história conta-nos

como o amor de dois escravos, Gaspar e Dominga, é visto como inopor- tuno pelos seus amos respectivos, perturbando os encontros amorosos dos escravos a execução normal das suas tarefas. Num primeiro mo- mento, os senhores tentam separar os dois amantes, mas acabam por de- sistir perante a insistência destes e graças à prudente mediação da mulher de um dos proprietários de escravos. Os argumentos utilizados pelos es- cravos em «fala de negro» têm uma lógica impecável, baseando-se em princípios cristãos de justiça. Quando o seu amo, Ruiz, a ameaça com castigos corporais se ela voltar a falar com Gaspar, Dominga pede recurso para os livros e leis:

Pues señolo de mi entrana, en qué libro habemus leiro que una pobre negra, aunque sea crava de Poncio Pilato, no se pora namorar? Hay alguna premática que diga que negro con negra no poramo hace negriyo cuando acabamo de acosar á nuesamo?34

Pois senhor das minhas entranhas, em que livro está escrito que uma pobre negra, ainda que seja escrava de Pôncio Pilatos, não se pode enamorar? Há alguma prag-

34Simon Aguado, Entremés de los Negros (1602), in Emilio Cotarelo y Mori, Colección de Entremeses..., 60, 232.

mática que diga que negro e negra não possam fazer negrinhos quando acabam de pôr o seu amo na cama?

A solução previsível para este conflito entre senhores e escravos é o ca- samento cristão, regulador de uma sexualidade desordenada. Gaspar e Do- minga acabam por poder dormir juntos, mas apenas ao sábado. Esta con- dição abre a porta ao jocoso: Gaspar pergunta ao amo quantos sábados tem cada semana. Confrontado com a frustrante resposta do senhor, não desiste e afirma que para ele todos os dias são sábado. Esta mesma história, com uma pequena variante, já aparecia no acima citado Entremés de los Mi-

rones. Outros exemplos portugueses podem ser dados para ilustrar estas

passagens de anedotas para o palco e para a página impressa. A anedota da criada negra que gostava de se ver ao espelho da sua ama está presente no Folheto de Ambas Lisboas, periódico jocoso dos anos de 1730-1731 onde a «fala de negro» aparece algumas vezes. A mesma anedota figura em so- netos «jocosérios» de folhetos e livros impressos da mesma época.

Podemos dizer, em conclusão, que a repetição de estereótipos de de- negrimento de auto para auto não era um mero recurso dramático «po- pular». Correspondia a uma circulação de temas e imagens que se fazia fora do palco, em diferentes suportes e contextos sociais, renovada ao longo do tempo e formando cadeias de anedotas que ficavam disponíveis para uso pelos autores. Para dar um último testemunho dessa circulação, em cópias manuscritas, cite-se o combate satírico entre António Ribeiro Chiado e Afonso Álvares, o qual é identificado como um «mulato» e um «poeta».35Confrontado com a crítica de Álvares ao seu comportamento

enquanto foragido da Ordem de São Francisco, Chiado responde-lhe em violentas décimas de ressentimento racial em que basicamente apa- recem os mesmos insultos metonímicos dos seus autos, associando Ál- vares a animais, escuridão, sujidade, roubo, o diabo e a escravatura. A única diferença é que nesta disputa não existem as máscaras cómicas (por leves que fossem). Não é coincidência que na terceira estrofe da sua primeira resposta a Afonso Álvares, Chiado se lhe dirija em «fala de negro». Chiado queria deixar claro desde o início, a outros leitores dos seus versos, a que condição o seu rival devia ser associado.

Comecei este capítulo exprimindo reservas metodológicas sobre a le- gitimidade de usar a língua atribuída aos negros africanos como fonte

35Sobre Afonso Álvares, que foi provavelmente também um autor de autos dedicados a vida de santos, ver a introdução de José Camões a Obras de Afonso Álvares..., 2006. Tam- bém T. F. Earle, «Black Africans versus Jews: religious and racial tension in a Portuguese saint’s play», in T. F. Earle e K. J. P. Lowe, Black Africans..., 345-360.

para estudar a sua fala. Ao fazê-lo, quis pôr em questão a transparência do laço entre a fonte literária e o mundo social, ou, por outras palavras, entre o estereótipo e a sua história. Reintroduzir esse laço pode ser uma forma de concluir. Os autores de comédias inspiraram-se em histórias que circulavam em textos não literários; por outro lado, reintroduziram no mundo social esses estereótipos, amplificando-os em espetáculos. Os estereótipos operam – por vezes violentamente – uma redução da com- plexidade da vida. Mas têm eles próprios uma história textual e material complexa que pode, até certo ponto, ser reconstituída.

Luís Cabral de Oliveira