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A história da formação das categorias raciais descreve o processo atra- vés do qual se reconhece uma alteridade em alguns grupos, entendendo esta como diferença natural. Trata-se de um subconjunto específico no interior de um conjunto bem mais vasto de governo da alteridade social, a qual, por sua vez, faz parte do arsenal da dominação política. A produ- ção da alteridade resulta da acção através da qual um segmento da socie- dade descreve as diferenças colectivas, atribuindo-as a um outro seg- mento social, e postulando a sua fixidez. De entre os dispositivos de estigmatização herdados da Idade Média, os segmentos da sociedade

ecclesiastical legislation in a practical process of discrimination and segregation that lum- ped them together as ‘the enemy within’. Both communities were subjected to procedures of spatial, social, and professional segregation, sometimes even after they converted to Christianity. The notion of purity of blood became particularly rooted in Iberia, where it was used to discriminate against and segregate converted Jews and Muslims, showing how religion and ethnic descent had become entangled. [...] Finally, prejudice against black people is documented in the Mediterranean area from classical antiquity onward. Medieval Islamic and Christian writers renewed it, anticipating widespread scorn triggered by the increase of slave trade from Africa to Europe and then to America in the following centuries.»

13Yosef Hayim Yerushalmi, «Assimilation et antisémitisme racial: le modèle ibérique et le modèle allemand», in Yosef Hayim Yerushalmi, Sefardica. Essais sur l’Histoire des Juifs, des Marannes & des Nouveaux-Chrétiens d’Origine Hispano-Portugaise (Paris: Chandeigne, 1998), 255-292.

designados nas crónicas, nos tratados morais, em textos de direito, como portadores de uma «diferença» em relação ao modelo dominante, repre- sentavam a grande maioria da população: mulheres, camponeses pobres, trabalhadores manuais, vagabundos, filhos ilegítimos, feiticeiras, loucos, leprosos, ciganos, judeus, escravos, grupos linguísticos minoritários, he- réticos, homossexuais, etc.14Nos contextos imperiais e nas situações co-

loniais, o peso demográfico do segmento dominante é ainda mais redu- zido do que nas sociedades europeias.

A opção por estudar as categorias raciais não significa esquecer outros fenómenos de estigmatização que se constroem sobre critérios distintos daqueles sobre os quais assenta uma teoria política da raça: a infidelidade religiosa, o grau de desenvolvimento, algumas condutas (sexualidade, vestuário e nudez, alcoolismo) objecto de condenação moral, as relações de classe e de trabalho, o carácter infamante de certas profissões, os efei- tos de segregações territoriais, etc.

Ao longo do Antigo Regime, as sociedades europeias foram objecto de descrições sociais e institucionais sob a forma de nomenclaturas. A partir de textos, regras, disposições de todo o tipo engendradas pela vontade de distinguir os grupos sociais, António Manuel Hespanha pu- blicou uma suma consagrada à análise da imputação de fragilidade e de inferioridade colectiva na época moderna.15Os grupos em causa são as

crianças, as mulheres, os loucos e irresponsáveis, os rústicos, os pobres, os nómadas, os selvagens e os bárbaros. A análise sublinha que estas dis- criminações sociais e culturais encerravam uma grande rigidez. De facto, no sistema do Antigo Regime, a fixação de posições resulta da primazia ideológica atribuída à ordem imóvel face a todo o tipo de indetermina- ção. Quando se tem em conta a dimensão colonial deste modelo, o es- tudo da categorização de grupos inferiores não mobiliza, todavia, a ca- tegoria da raça. O projecto de Hespanha sugere, por um certo tipo de ausência, que a investigação sobre as categorias raciais não se pode con- fundir com o estudo geral das práticas de dominação, e muito menos substituir-se a este. Ou seja, no arsenal complexo e no conjunto mais rico de recursos dos modos de dominação política, a discriminação a partir da raça parece continuar a ser um recurso disponível.

14Robert Bartlett, «Medieval and modern concepts of race and ethnicity», Journal of Medieval and Early Modern Studies, 31 (1) (2001): 39-56; António Manuel Hespanha, Im- becillitas: As Bem-Aventuranças da Inferioridade nas Sociedades de Antigo Regime (São Paulo: Annablume Editora, 2010).

Enquanto a investigação histórica continuar a inventariar, apenas, os esteréotipos registados nos textos e imagens do Antigo Regime, conti- nuará a ser escasso o ganho de informação crítica. A investigação sobre sistemas ideológicos é mais exigente. Ela pretende reconstituir as confi- gurações sociais e os processos políticos a partir dos quais a inferioridade natural dos grupos dominados opera como enquadramento da acção in- dividual e colectiva, um enquadramento que dominantes e dominados podem partilhar. O livro magistral de Giuliano Gliozzi sobre a antro - pologia que acompanha a expansão europeia da época moderna como ideologia colonial é, deste ponto de vista, um exemplo do coerência.16

Partir do estudo das ideologias de dominação permite integrar na análise das relações sociais de finais da época moderna/colonial a mobilização dos argumentos raciais. Ela evita considerar que a questão racial, identi- ficada na Idade Média tardia, absorve o conjunto de processos de socio- génese da alteridade. Esse é o sentido das reflexões introdutórias de Ania Loomba no seu livro sobre a questão racial no teatro de Shakespeare:

A emergência do racismo moderno é frequentemente entendida como a transição de uma percepção cultural da diferença racial (mais benigna) para uma percepção biológica (mais inflexível). Apesar de o entendimento bio- lógico da raça ter sido mais pernicioso, devemos ser mais cuidadosos na opo- sição simplista entre natureza e cultura, ou na sugestão de que uma inter- pretação cultural da raça é mais benigna e flexível. Efectivamente, o que chamamos «raça» e o que chamamos «cultura» não podem ser facilmente se- parados, especialmente durante a época moderna, quando da cultura inferior de um «povo» resultavam pessoas biologicamente inferiores.17