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A restauração da galera Minerva

Debrucemo-nos agora sobre o caso que constitui o cerne do presente estudo. Cumpre porém, e antes de mais, principiarmos por explicar que dispomos essencialmente de três documentos relativos ao processo. Fala- mos da Primeira sentença da Ouvidoria Geral, datada de 21 de Junho de 1799; dos Embargos à Sentença antecedente, que não contêm nenhuma data; e finalmente da Segunda, e ultima Sentença do Juizo da Ouvidoria Geral. Esta remonta a 13 de Julho do mesmo ano de 1799 e constitui uma detalhada resposta aos Embargos. As duas sentenças são da lavra de Félix Correia de Araújo enquanto os Embargos foram apresentados por Bernardo Lourenço Viana, Paulo da Silva Rego e António José Rodrigues Chaves. Trata-se no fundo dos elementos que Luís Prates de Almeida e Albuquerque reuniu e depois publicou em tomo em Lisboa no ano de 1807, acrescentando- -lhe somente uma curta nota preambular e brevíssimos comentários finais.

Procuraremos analisar cuidadosamente esta documentação nas páginas que se seguem e assim compreender os contornos e a inegável novidade do processo em questão.

Os factos

Na Primeira Sentença,19Correia de Araújo começa por fazer uma descri-

ção sucinta mas bastante completa da sequência de acontecimentos que desencadeara o processo. Um navio corsário francês apresara «na altura da Capitania de Benguella» a galera portuguesa Minerva no dia 28 de abril de 1799. Nos princípios de maio os assaltantes determina ram que a embarcação capturada fosse levada até às Maurícias. Foi nessa altura que «nove Pretos Marinheiros portugueses» que se achavam a bordo e ti- nham sido poupados pelos corsários acordaram em «fazerem huma união para se restaurarem a si, e ao Navio». Passaram do plano à acção por volta do dia 9 do mesmo mês. Durante o assalto «matarão, quatro Brancos, e ferindo dois, passarão o resto a ferros, que vinhão a ser tres Brancos, e seis Pretos Francezes». Já senhores da embarcação, alteraram a sua rota e diri- giram-se «com prudente cautela» para o porto de Luanda. No entanto, e como «não poderão conseguir» foram «dar no dos Ambriz, Nação Amiga, e Alliada» – o que tinha já sido devidamente comprovado. A Minerva foi então finalmente reconduzida até Luanda, onde se avaliou «a mesma Ga- lera, e seu massamme, e vellamme» bem como a carga que trazia. O valor obtido foram uns relativamente impressionantes «nove contos trezentos oitenta mil setecentos e noventa reis». Ora, de acordo com § IV do alvará de 9 de Maio de 1797, os responsáveis pela recuperação do navio tinham direito a 1/5 do valor da embarcação.

Este é o ponto fulcral da questão. A quem pertence o saque? Aos ma- rinheiros que resgataram a Minerva das mãos dos corsários ou – devido ao facto de estarem em causa nove escravos – aos seus proprietários?

Quem eram pois os principais intervenientes no processo? Por um lado, (i) temos António de Sousa Portela, o qual reclamava ser proprie- tário da Minerva.20Por outro, (ii) surge-nos Bernardo Lourenço Viana,

correspondente de Sousa Portela no Brasil.21 Depois, (iii) há referência a

Paulo da Silva Rego, o qual era desde 1798 sargento-mor do regimento

19Transcrita em Luiz Prates de Almeida Albuquerque, Sentenças..., 5-8.

20Trata-se com quase toda a certeza do comerciante lisboeta desse nome que vinha mantendo interesses importantes no giro mercantil angolano e brasileiro. A sua casa co- mercial não resitirá porém muitos anos ao episódio em estudo. Nesse sentido veja-se a Gazeta de Lisboa, n.º 106, 3 de Outubro de 1809.

21Viana era um abastado comerciante sediado no Rio de Janeiro com interesses nas redes comerciais que se mantinham entre as possessões portuguesas na América e Angola – cf. Roquinaldo Ferreira, Cross-Cultural Exchange in the Atlantic World. Angola and Brazil during the Era of the Slave Trade (Nova Iorque: Cambridge University Press, 2012), 22.

e milícias de Angola, e a (iv) António José Rodrigues Chaves, mestre da galera. Finalmente, (v) encontramos o corsário francês responsável pelo apresamento da Minerva. Correia de Araújo chama-lhe «Mr. Carlos Ma- riet» e diz-nos ser capitão do L’Eclair. Falamos indubitavelmente de Char- les Nicolas Mariette, personagem à qual Auguste Toussaint dedicou uma pormenorizada biografia na década de 70 do século passado.22Mariette

viveu uma existência movimentada. Nascido em Dieppe em 1759, dedi- cou-se à marinha até ter decidido estabelecer-se com a sua mulher em Port-Louis nos alvores da década de 1790: guiava-o o sonho de se tornar dono de uma das grandes plantações que então abundavam na ilha. No entanto, rapidamente se divorcia e aliena a propriedade. É então que – capitaneando o l’Eclair, que mais tarde é substituído por uma chalupa que baptizará com o nome de Consolante – regressa à vida de marinheiro e mais concretamente ao corso. Toussaint descreve com grande cópia de detalhes essa faceta da sua existência, nomeadamente o período que in- clui a captura da Minerva.23O que retirar das considerações feitas por

este autor no que diz respeito ao nosso caso? Em primeiro lugar, que se sabe muito pouco de concreto sobre o l’Eclair. Tratava-se de uma embar- cação recente (construída em 1799) e que teve vida efémera. Em segundo lugar, que após ter assumido o comando do l’Eclair, Mariette escolheu um campo de acção pouco comum entre os corsários sediados nas Mau- rícias: começou a operar nas costas da África oriental em detrimento das águas do golfo de Bengala. Eram espaços que o corsário normando co- nhecia desde logo devido às suas idas a Moçambique. Mariette porém depressa dobrou o Cabo, passou à costa ocidental africana e rumou às proximidades de Angola: estava lá em 17 de Maio de 1799, altura em que capturou uma embarcação portuguesa, o Flora. Ora, graças ao pro- cesso em análise e à sentença de Correia de Araújo sabemos que o Flora não fora a sua primeira presa na região: cerca de quinze dias antes, Ma- riette apossara-se do Minerva (a 28 de Abril) e mandara-o para as Maurí- cias. Toussaint é contudo omisso relativamente a todos esses factos. Re- gista apenas a tomada do Flora. No entanto, chama a atenção para as declarações prestadas pelo capitão desta embarcação: para além da sua, o corsário normando apresara outros quatro navios. Toussaint consegue identificar dois deles. Um era o Envie, outro um barco depois enviado

22A. Toussaint, «Un corsaire normand dans l’Océan Indien au XVIIIesiècle: Charles Nicolas Mariette», Annales de Normandie, 27 (1) (1977): 19 e segs. Disponível em http:/ /www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/annor_0003-4134_1977_num_ 27_1_5210 (consultado a 26-2-2014).

para o Rio da Prata para ser aí vendido. Acreditamos que uma das res- tantes embarcações é muito provavelmente a Minerva – o que nos leva a uma terceira conclusão. Mas a que razões se deve, conforme sublinha Toussaint, não haver «trace des deux autres dans les actes de l’amirauté»? No que toca à Minerva, a resposta é dada pelo caso em estudo. Não se encontra qualquer registo dela em Port-Louis por na verdade jamais lá ter chegado. A intervenção dos «nove Pretos Marinheiros» que garantiu que tornasse a Angola turvou os propósitos de Mariette.

Restam os protagonistas, ou seja, (vi) os marinheiros. A saber: Pedro Caetano, Roque José, João Miguel, Joaquim José e José de Cabonda (es- cravos de Bernarlo Lourenço Viana); António Manuel e Pedro Manuel (escravos de Paulo da Silva Rego) e Domingos e Joaquim (escravos de António José Rodrigues Chaves).

O direito

Quais eram as principais questões juridicamente relevantes que se co- locavam ao julgador (no caso, Félix Correia de Araújo) no âmbito do processo em estudo? Com base no texto da Primeira Sentença da Ouvidoria

Geral identificamos quatro matérias diferentes. Em primeiro lugar impor-

tava determinar se a recuperação da Minerva configurava um caso da- quilo a que então se chamava boa presa. De seguida havia que apurar se os escravos marinheiros dispunham de legitimidade para praticar aquela acção, isto é, para recuperar a galera. Depois era necessário decidir se os mesmos tinham direito a recorrer ao uso de armas a bordo e consequen- temente a matar parte da tripulação da embarcação, nomeadamente os corsários brancos. Finalmente – e esta era, como vimos, a problemática maior – esclarecer a quem pertencia o valor atribuído por lei aos autores do resgate. Correia de Araújo procurou dar resposta a todas elas.