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Dar nome a um império O título dos reis portugueses

O caso do «império» português da época moderna é sugestivo da com- plexidade do direito imperial e das suas dinâmicas internas.

O «império» português21estava longe de ser um território contínuo e

homogéneo.22

Escrevendo em meados do século XVII, o jurista e conselheiro régio

18Bartolomé Clavero, «Gracia y derecho entre localización: recepción y globalización (lectura coral de las vísperas constitucionales de António Hespanha)», Quaderni Fiorentini per la Storia del Diritto Privado Moderno, 41 (2012): 675-767; Hespanha, «Modalidades e li- mites…».

19Cf. exemplos expressivos em Hespanha, «Modalidades e limites...».

20Os mesmos usados pelas populações subalternas na Europa metropolitana: António Manuel Hespanha, «Savants et rustiques: la violence douce de la raison juridique», Ius Commune, 10 (1983): 1-48; António Manuel Hespanha, «Porque é que existe e em que é que consiste um direito colonial brasileiro». Quaderni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno, 35 (2006): 59-81.

21O termo «império» nunca foi oficialmente usado até ao início do século XIX. Nem os títulos dos reis de Portugal o incluíram (Cf. Luís Filipe Thomaz, «Estrutura política e administrativa do Estado da Índia no século XVI», in Luís Filipe Thomaz, De Ceuta a

Timor (Lisboa: Difel. 1994); António Vasconcelos de Saldanha, Vincere Reges et Facere: Dos Tratados como Fundamento do Império dos Portugueses no Oriente. Estudo de História do Direito Internacional e do Direito Português (Lisboa: Fundação Oriente, 1998).

22Os impérios coloniais europeus nos finais do século XVIII: http://www.slideshare. net/Xiuhtecuhtli/the-european-colonial-empires, consultado em 7 de Agosto de 2012.

João Pinto Ribeiro sublinhava a estrutura compósita do império portu- guês, contrastando-o com o da rival Monarquia Hispânica:23«Vencidos

[os reis do Oriente], não os despojavam dos reinos e senhorios que pos- suíam. Ou os deixavam neles com toda a majestade real, impondo-lhes algum tributo, por razão da guerra, ou restituíam o reino a algum rei amigo a que injustamente estava usurpado. Mostraram os nossos capitães o ânimo livre e desinteressado com que procediam nas terras descobertas ou vencidas. A nenhuma mudaram seu antigo nome, a nenhuma o deram de uma cidade ou província de Portugal [...]. Nunca os sereníssi- mos reis de Portugal se intitularam de alguma província sujeita, se não foi a da Guiné e do senhorio do comércio.»24

A pluralidade de prerrogativas políticas (iurisdictiones) que um príncipe reclamava estavam habitualmente expressas no título, um longo con- junto de várias referências jurisdicionais,25cada uma vinculada a direitos

23Bibliografia recente comparando impérios, ainda que pouco atenta aos casos portu- guês e holandês: Anthony Pagden, Lords of All the World: Ideologies of Empire in Spain, Bri- tain and France, 1500-1800 (New Haven: Yale University Press, 1995); John H. Elliott, Empires of the Atlantic World: Britain and Spain in America, 1492-1830 (New Haven: Yale University Press, 2007).

24 Desengano ao parecer enganoso que deu a El-Rey de Castella Filipe IV certo ministro contra Portugal, 1645 (cit. em Saldanha, Vincere Reges..., 184).

25«Pela Graça de Deus, Rei de Castela, de Leão, de Aragão, das Duas Sicílias, de Jeru- salém, [de Portugal], de Navarra, de Granada, de Toledo, de Valência, da Galiza, de Maiorca, de Sevilha, da Sardenha, de Córdova, da Córsega, de Múrcia, de Jáen, dos Al- garves, de Algeciras, de Gibraltar, das Ilhas de Canária, das Índias Orientais e Ocidentais, Ilhas e Terra Firme do Mar-Oceano, Conde de Barcelona, Senhor da Biscaia e de Molina, Duque de Atenas e de Neopátria, Conde de Rossilhão e da Cerdanha, Marquês de Oris- tano e de Gociano, Arquiduque de Áustria, Duque da Borgonha, do Brabante e de Milão, Conde de Habsburgo, da Flandres e do Tirol, etc.».

Figura 1.1 – Mapa do império português

específicos sobre territórios e suas gentes. O título oficial do rei de Por- tugal era,26todavia, muito peculiar. Os seus domínios europeus eram des-

critos como polimórficos. Portugal era um reino separado do dos Algar- ves («Rei de Portugal e dos Algarves...»), sendo estes divididos em dois, separados pelo mar («... de aquém e de além-mar em África»). Os reis portugueses também eram (vagamente) senhores da Guiné («Senhor da Guiné»). Para além desta jurisdição territorial, eram senhores de uma ju- risdição imaterial e extraterritorial, descrita como «Senhor da Conquista, Navegação e Comércio» com uma referência geográfica vaga («Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia»). Um «etc.» final previa reivindicações políticas não listadas e virtuais.27No que respeitava aos mares, mesmo no caso da

mais familiar Guiné, o título real não continha nenhuma precisão juris- dicional; a referência geral a África e Ásia, possivelmente evocando a parte portuguesa na divisão papal do mundo, era um vazio a ser preen- chido politicamente por um qualquer tipo de configuração institucional, desde que ajustada às conjunturas locais específicas.

Era a um nível inferior que a estrutura política do império devia ser definida, caso a caso, de acordo com modelos políticos preexistentes no

thesaurus da tradição jurídica da Europa ocidental e da própria experiência

política do reino.

Efectivamente, a tipologia de domínio político do império português usava um conjunto de modelos já conhecidos na Europa, agora combina- dos de forma variada:28municípios (câmaras, concelhos), as unidades tradi-

cionais de autogoverno civil, moldadas pelos municípios romanos (munici-

pia) e pelos concelhos medievais; governo militar (capitanias29e fortalezas30),

26«Pela Graça de Deus, Rei de Portugal e dos Algarves, d’Aquém e d’Além-Mar em África, Senhor da Guiné e da Conquista, Navegação e Comércio da Etiópia, Arábia, Pér- sia e Índia, etc.». Sobre a titulação dos reis de Portugal, Saldanha, Vincere Reges..., 178, 288 e segs..

27Uma cláusula vaga deste tipo era frequente quando se descreviam as jurisdições e os direitos reclamados ou doados a alguém. Nas doações régias, uma terra era doada com «todas as suas entradas e saídas», significando todos os direitos anexos, nomeadamente para limitar territórios e espaços; cf. Hespanha, «L’espace politique...».

28Para mais detalhes, António Manuel Hespanha, Panorama da História Institucional e Jurídica de Macau (Macau: Fundação Macau, 2005), cap. 3.

29Concessão da terra a um senhor, que devia promover a sua colonização, assegurar a sua administração civil (devolvendo-a a instituições municipais, logo que possível) e de- fendê-la militarmente. Fonte: Cf. Jorge de Cabedo, De Patronatibus Ecclesiarum Regiae Co- ronae Regni Lusitaniae, t. II(Lisboa: Officina Georgij Rodriguez, 1602) 28 e 29, n. 7; bi- bliografia, Saldanha, Vincere Reges...; António de Vasconcelos e Saldanha, As Capitanias. O Regime Senhorial na Expansão Ultramarina Portuguesa (Lisboa: Centro de Estudos de História do Atlântico, 1992).

ambos inspirados no modelo político-militar do castelo (castella, castra, op-

pida)31; arrendamentos de terras régias, semelhantes a concessões feudais

(donatarias, sesmarias, prazos);32armazéns reais ou estabelecidos por tratados

(feitorias, centros de comércio com jurisdição privilegiada e extraterritorial);33

doações contratuais de prerrogativas régias e monopólios de navegação e comércio (viagens),34ambos inspirados na tradição de arrendamento de re-

galia;35padroado eclesiástico, incorporando o direito de nomeação dos ofí-

cios eclesiásticos (beneficia) e de recebimento das rendas da Igreja.36Para lá

das fronteiras, o império tinha postos avançados (arraiais, acampamentos, pri-

sões) e lidava com vassalos, amigos, aliados («vassalos» ou povos «de pazes»,

«sobas amigos mas não vassalos») ou inimigos (inimigos, infiéis, bárbaros). Em alguns casos, a hierarquia dos laços políticos era completamente in- vertida, ocupando o poder imperial português uma posição «subalterna» em relação ao «colonizado». Na China, onde os imperadores chineses ape- nas reconheciam entidades políticas externas se estas aceitassem a supre- macia imperial, os embaixadores portugueses usaram, com alguma fre- quência, estratégias diplomáticas, cerimoniais e linguísticas destinadas a iludir a questão da hierarquia entre portugueses e chineses. Em Macau, o senado da câmara reconhecia a suserania do imperador chinês sempre que comunicava com as autoridades chinesas, apesar de ser um município por- tuguês.37Já o extremo oriente – caso do Japão – estava fora da zona de ex-

pansão portuguesa (mal-)definida pelo incerto contrameridiano de Torde- silhas. A predominância da presença portuguesa na área era canalizada

31Fonte: Siete Partidas, II, tit. 18. Edição em ingês: Las Siete Partidas, vol. 2: Medieval Government, The World of Kings and Warriors (Partida II), ed. Robert I. Burns, trad. Samuel Parsons Scott (Filadélfia: Pennsylvania University Press, 2000); mais bibliografia sobre o regime dos castelos, ver Burns, Las Siete Partidas..., XV, nota 6.

32Allen F. Isaacman, Mozambique: The Africanization of a European Institution: The Zam- besi Prazos, 1750-1902 (Madison: University of Wisconsin Press, 1972); Malyn Newitt, Portuguese Settlement on the Zambezi (Upper Saddle River, NJ: Prentice Hall Press, 1973); Eugénia Rodrigues, «Portugueses e africanos nos rios de Sena. Os Prazos da Coroa nos séculos XVIIe XVIII», dissertação de doutoramento, FCSH-UNL, 2002.

33Cf. Virginia Rau, «Feitores e feitorias: instrumentos do comércio internacional por- tuguês no século XVI», Brotéria,LXXXI(5): 458-487.

34Cf. Carlos Francisco Moura, «Macau e o comércio português com a China e o Japão nos séculos XVIe XVII: As viagens da China e do Japão — a nau do trato — as galeotas»,

Boletim do Instituto Luís de Camões, 7.1 (1973): 5-35.

35O contrato assentava na doação tradicional em regime de tenência de regalia a privados. 36Cf. António da Silva Rego, Le patronat Portugais de l’Orient: Aperçu historique. Édition commémorative du double centenaire de la fondation et de la restauration du Portugal (Lisboa: Agência Nacional das Colónias, 1940).

37Cf. António M. Hespanha, Panorama da História Institucional e Jurídica de Macau (Macau: Fundação Macau, 1995).

pelo padroado eclesiástico português, dependendo o bispo do Japão do patriarca das Índias, em Goa (de acordo com a bula do papa Gregório XIII, de 1575). A mediação de missionários na construção de influência política foi frequentemente decisiva; nomeadamente através de viagens pioneiras e aventurosas (sobretudo de jesuítas) enviadas pelas autoridades eclesiásticas de Goa. Foi assim que missionários do Padroado português chegaram à Pérsia, ao império mogol, ao Tibete, à Ásia Central, ao Butão e ao Nordeste da China. Até finais do século XVIII, serviram de literati e astrónomos pres-

tigiantes na corte imperial de Beijing, intervindo em delicados eventos po- líticos e diplomáticos (v. g., tratado de Nerjinsky de 1689).

Em suma, ao contrário do modelo imperial clássico, inspirado no ima- ginário do que era percebido como a experiência romana, baseado num domínio territorial e pessoal uniforme ou monótono, que traduzia uma política de reputação real, o império português assentava numa lógica mais pragmática e económica, fundada na autonomia das suas partes, numa arquitectura modular e em estratégias de economia de custos. Esta lógica incorporava uma pluralidade de fontes assimétricas de regulação e uma diversidade de estatutos políticos e jurídicos. E apesar de esta eco- nomia imperial não poder ser entendida como uma estratégia intencio- nal, a verdade é que ela estava basicamente contida no programa de Afonso de Albuquerque, um dos primeiros governadores do Estado da Índia, que imaginava poder controlar as rotas marítimas dos mares orien- tais com a ocupação permanente de meia dúzia de redutos.

Insistir na singularidade do império português pode tornar-se, todavia, numa espécie de consagração, por contraposição da imagem de um «im- pério centralizado», como se tem considerado ser o de Espanha. Ora a verdade é que a historiografia mais recente tem enfatizado cada vez mais o pluralismo e a heterogeneidade do império espanhol. Um exemplo disto é o de François-Xavier Guerra que, ao descrever a estrutura do im- pério e da monarquia espanhola, sublinhou que aquela monarquia era um composto plural, muito diferente do modelo unitário prevalecente na França, ou na Espanha borbónica do século XVIII.38