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Raça: sobre os usos do vocábulo

Enquanto objecto da História, a raça é uma construção social, tanto discursiva, quanto inscrita nas práticas institucionais, económicas, cultu- rais. A categoria racial assenta sobre a convicção de que os fundamentos da alteridade postulada entre grupos humanos não é – e apenas – social, mas também – e igualmente – natural.3A raça não é, por conseguinte,

uma categoria analítica das ciências sociais, nem mesmo das ciências da vida, mas sim um conjunto de enunciados e de normas políticas que as ciências sociais têm identificado.

Importa analisar a categoria racial nas instituições políticas e nos dis- cursos desde que estes sejam portadores da seguinte ideia: os caracteres morais ou sociais das pessoas e das colectividades transmitem-se de ge- ração em geração através dos fluidos (sangue, esperma, leite) ou dos te- cidos do corpo. A crença na transmissão fisiológica pode oscilar entre a significação literal (o sangue transporta, efectivamente, qualidades her- dadas) e o uso metafórico (reenviando para uma noção de herança na qual se misturam as qualidades corporais e os efeitos sociais de pertença a uma determinada linhagem). Não se trata de duas faces de uma mesma alternativa, e menos ainda de duas fases sucessivas da ideologia racial. Em todos estes casos, tais discursos e instituições privam o indivíduo da faculdade de não pertencer à raça na qual nasceu, e ao respectivo grupo,

2Karen Ordahl Kupperman, «Presentment of civility: English reading of American self-presentation in the early years of colonization», The William and Mary Quarterly, 3.ª série, 54 (1), (1997): 193-228.

3Lilia Schwarcz, O Espetáculo das Raças: Cientistas, Instituições e Pensamento Racial no Bra- sil, 1870-1930 (São Paulo : Companhia das Letras, 1993).

ou seja, de se poder transformar. O pensamento racial imobiliza as po- pulações num tempo sem história, e encerra os indivíduos na sua per- tença racial.

E que dizer do termo «racismo»? Na linguagem dos historiadores, o termo costuma ser empregue em substituição de ideologia racial. Assim sendo, não comporta nada de novo para além do conforto da escrita, permitindo evitar a armadilha das repetições. Parece-me mais interessante atribuir à palavra «racismo» um sentido específico. O vocábulo parece designar as ideologias e as práticas institucionais que situam no coração da política a gestão das diferenças raciais. O racismo postula a hierarquia das causalidades históricas que consideram que a segregação pela raça se constituiu como um motor fundamental da vida social e política. Como é abusivo empregar o termo para dar conta da diferença de raças nas so- ciedades, nenhum teórico nem nenhuma disposição institucional reco- nheceram outros motores da História para além da vontade divina ou do destino dos impérios.

Indispensável é reflectir, ainda, sobre o recurso ao prefixo grego proto (como em proto-racismo). Este prefixo é commumente utilizado para de- signar um fenómeno histórico como estando presente em potência, mas sem se ter ainda manifestado na sua plenitude. O termo é amplamente utilizado na maioria dos capítulos de The Origins of Racism in the West.4

Neste caso, como acontece, sem dúvida, na generalidade do campo his- toriográfico, o prefixo proto encerra uma visão teleológica e também o desconforto resultante de estarmos a observar um processo em curso, em relação ao qual podemos antecipar as consequências. Não há dúvida de que a capacidade de projectar para um tempo futuro está presente nas nossas acções, bem como nas nossas reflexões. Não se trata de negar, por- tanto, que o horizonte de futuros possíveis possa modelar os fenómenos presentes. Mas trata-se precisamente de futuros possíveis, e não apenas do único futuro do passado, o qual já sabemos ter acontecido, e que os con- temporâneos do passado podiam antecipar, mas não conhecer. Falar de proto-racismo antigo ou medieval significa dizer que esses períodos en- gendraram os recursos (textuais, plásticos, normativos) que, muito mais tarde, outras sociedades utilizaram para fins que se tornaram os seus.

A definição de raça proposta anteriormente (transmissão intergeracio- nal e fisiológica de caracteres morais) inscreve as políticas da raça no qua- dro de distinções assentes na imputação de traços do tipo natural (con-

4Miriam Eliav-Feldon, Benjamin H. Isaac e Joseph Ziegler, eds., The Origins of Racism in the West (Cambridge: Cambridge University Press, 2009).

génitos, hereditários). Esta escolha restringe o domínio da raça ao campo da biologia. Se aceitarmos este pressuposto, qualquer manifestação de dominação social e política que se traduz na inferiorização, segregação, ou perseguição de um colectivo não releva necessariamente de uma po- lítica racial. Esta contracção da noção de raça segue o percurso histórico dos países europeus do pós-guerra. Como é sabido, após a II Guerra Mundial, ao termo «raça» esteve associada uma tal infâmia que este se tornou progressivamente inutilizável. Sob os efeitos do nazismo, a noção perdeu a anterior riqueza de significados e respectivas ambivalências. Ao sublinhar a necessidade de dar conta de formas de discriminação colec- tiva que amalgamam imputações de diverso tipo (históricas, religiosas, culturais, económicas), a orientação que aqui se propõe parece reforçar a recusa em mobilizar a categoria «raça».

Por um lado, depois de décadas de investigação, biólogos, e sobretudo geneticistas, mostraram que, tendo em conta os resultados das suas teorias e das suas experiências científicas, a noção de raça não tinha sentido.5

Ou seja, não há uma urgência particular em distanciar as ciências sociais das luminárias sociobiológicas, cuja audiência científica está hoje acan- tonada a círculos ideológicos restritos. Por outro lado, o que é ainda mais importante, recusar considerar as dimensões raciais das relações sociais significa expulsar do inquérito das ciências sociais todas as formas de cul- turalismo.

É sabido que existem nas nossas sociedades manifestações de xenofo- bia que, por comodidade, qualificamos como racistas. Quer isto dizer que há boas razões para questionar a cegueira em relação à dimensão cultural das antipatias (unilaterais ou recíprocas), e discriminações que atravessam as sociedades. A verdade é que do ponto de vista dos conhe- cimentos que podem ser úteis para a definição de políticas públicas, a análise social que integra variáveis culturais tem sido acusada de desarmar as lutas socioeconómicas. Para muitos, esta opção privilegia comporta- mentos mais ou menos comunitários, antigos ou de criação recente, es- pontâneos ou induzidos por formas de guetização, contribuindo para não afrontar a causalidade última: a distribuição desigual dos recursos. Considerar os marcadores culturais, ou a inscrição da origem geográfica dos indivíduos nos territórios atravessados por intensos movimentos po- pulacionais, constitui, para estes, um padrão de substituição de dados objectivos por fantasmas identitários.

5André Pichot, Aux origines des théories raciales de la Bible à Darwin (Paris: Flammarion, 2008).

Também a expressão «racismo científico», utilizada como marcador cronológico que permite distinguir uma idade de racismo naïf e incoe- rente, seguida de uma idade de racismo maduro e sistemático, é chocante. Duas razões convidam a abandoná-la na escrita da História.

A primeira resulta do facto de esta expressão confundir métodos de identificação de singularidades fenotípicas e fisiológicas de indivíduos e grupos, com o tipo de inferência moral, social e política formulada pelos pensadores racistas. Esses desviaram essas medidas para fins ideológicos. O facto de terem aplicado com seriedade e com rigor os métodos de ins- crição dos dados fisionómicos e fisiológicos não lhes atribui qualquer dignidade científica em particular, já que a sua actividade intelectual re- leva em parte da propaganda política.

A segunda é a que defende que o uso do epíteto científico na argu- mentação historiográfica corrobora um estilo ultrapassado da história da ciência. Como é sabido, a narrativa evolucionista da emergência da big

science tem sido objecto, desde há trinta anos, de um profundo revisio-

nismo. Daqui resulta a convicção de que as reflexões e os conhecimentos produzidos no passado sobre a hereditariedade e sobre as variações cli- máticas não resultaram de um questionamento científico. Todavia, quer eles fossem Hipócrates ou Galeno, Aristóteles ou São Tomás de Aquino, Plínio ou Ptolomeu, ou ainda viajantes, missionários e botânicos con- temporâneos da expansão portuguesa, os autores dos textos sobre a trans- missão natural de caracteres humanos pensavam estar a produzir – antes de os códigos da ciência experimental moderna se terem imposto – co- nhecimento científico.6A teoria dos climas, a análise das doenças con-

génitas, as primeiras dissecações, são todas anteriores à emergência da ciência para a qual reenvia, inabilmente, a noção de «racismo científico». A atribuição do epíteto «científico» à raciologia da segunda metade do século XIX, e à primeira metade do século XX, já não se justifica. Mais

a mais, esta assinala a disposição mimética dos racialistas em relação aos procedimentos experimentais e estatísticos e às sociabilidades científicas do seu tempo (correspondência, sociedades científicas, congressos inter- nacionais, revistas). Que esses investigadores acreditavam estar a produzir ciência é verdade. Mas não estavam nem mais nem menos certos do que os seus predecessores longínquos que, ao invés, não têm o direito de fi- gurar na narrativa do triunfo da racionalidade científica ocidental.

6Maaike van der Lugt e Charles de Miramon, eds., L’Hérédité entre Moyen Âge et Époque Moderne: Perspectives historiques (Micrologus’, 27) (Florença: Sismel, 2008).