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O mais antigo texto ibérico conhecido em que intervém fala paródica de negro africano é, como referi, um poema composto por Fernão da Silveira, coudel-mor da casa do rei D. João II. Em duas oitavas, para ser recitado ou cantado acompanhando uma dança chamada «mourisca re- torta», consiste na homenagem feita na primeira pessoa por um rei da Serra Leoa ao rei de Portugal e à sua filha (ou, como já veremos, nora), que encomendara o poema por ocasião do seu casamento. O texto foi tradicionalmente datado de 1455 como tendo sido recitado nas festas de casamento da princesa Joana e do rei Henrique IV de Castela. É hoje in- sustentável defender tal datação. O poema menciona um topónimo, a Serra Leoa, que não foi usado antes da década de 1460, quando navega- dores portugueses deram nome àquele cabo. A partir da descrição feita pelo cronista régio Garcia de Resende das festas de casamento da princesa Isabel de Castela e do príncipe Afonso de Portugal, em Évora, no final de 1490, José da Silva Terra deu argumentos sólidos para uma nova da- tação do poema da «mourisca retorta».18Em primeiro lugar, o relato do

cronista descreve, durante as referidas festas, uma «muito grande repre- sentação de um Rei de Guiné» e uma «mui grande e rica mourisca re- torta». Resende, como é sabido, foi também o compilador do Cancioneiro

Geral, onde o poema foi pela primeira vez impresso, em 1516; por fim,

em diferentes passagens, o cronista refere o papel central de Fernão da Silveira, quer na organização das festas quer na própria preparação do casamento, tendo sido embaixador do rei português para tal fim a Sevilha no início de 1490.19Todos estes indícios apontam no mesmo sentido: a

«mourisca retorta», e a fala dramatizada que a acompanhava, foi repre- sentada nas referidas festas de casamento dos príncipes Afonso e Isabel,

18José da Silva Terra, «A datação do primeiro texto em ‘Língua de preto’ na literatura portuguesa», Diacrítica, 11, 1996, 513-527.

19Garcia de Resende, Chronica de D. João II e Miscelânea (Lisboa: Imprensa Nacional- Casa da Moeda, 1991), 150-152. A mesma informação se encontra nas Obras Inéditas de Aires Teles de Meneses e de Estevão Rodrigues de Castro (Lisboa, 1792), 121. Estes documentos foram recentemente colocados em linha na base de dados sobre história do teatro por- tuguês do Centro de Estudos de Teatro da Universidade de Lisboa. Cf. http://ww3.fl.ul. pt//cethtp/webinterface/documento.aspx?docId=2736 e http://ww3.fl.ul.pt//cethtp/we- binterface/documento.aspx?docId=2741. Consultados a 2 de Junho de 2016.

no final de novembro de 1490. A deferência no poema para com o «pai» da princesa castelhana pode continuar a ser interpretada como uma ho- menagem ao rei de Portugal, anfitrião da cerimónia, se entendermos esta forma de tratamento como sinal do novo laço afectivo entre a noiva e o seu futuro sogro.20

Passemos então aos textos. O relato de Garcia de Resende insiste na riqueza e dimensão da performance, que incluiu centenas de figurantes negros dançarinos e monos. O cronista detém-se no aspecto físico dos bailarinos, incluindo os seus acessórios, caros e ruidosos:

E ouue ali hũa muyto grande representaçam de hum Rey de Guine, em que vinham tres Gigantes espantosos, que pareciam viuos, de mais de qua- renta palmos cada hum, com ricos vestidos todos pintados douro, que pa- recia cousa muyto rica, e com elles hũa muy grande, e rica mourisca retorta, em que vinham duzentos homens tintos de negro, muyto grandes bailado- res, todos cheos de grossas manilhas pollos braços, e pernas dourados, e muyto bem concertados, cousa muy bem feyta, e de muyto custo por serem tantos, e em que se gastou muyta seda, e ouro, e faziam tamanho roido com os muytos cascaveis que traziam, que se não ouuiam com eles...21

Eis o poema, escrito na voz do rei da Serra Leoa dirigindo-se à princesa:

A min rrey de negro estar serra Lyoa lonje muyto terra onde viver nos, lodar caytbela tubao de Lixboa falar muao nouas casar pera vos. Querer a mym logo ver vos como vay, leyxar molher meu partyr muyto sinha, porque sempre nos seruyr vosso pay, folgar muyto negro estar vos rraynha. Aqueste gente meu taybo terra nossa nunca folguar, andar sempre guerra, nam saber quy que balhar terra vossa, balhar que saber como nossa terra Se logo vos quer mandar a mym venha fazer que saber tomar que achar, Mandar fazer taybo lugardes mantenha & loguo meu negro senhora balhar22

20Cf. Silva Terra, «A datação do primeiro texto...», 520–521. 21Garcia de Resende, Chronica de D. João II..., 173-175.

22Fernão da Silveira, «Por breue de hũa mourisca rratorta, que mandou fazer a senhora prinçesa quando esposou» (1490), em Cancioneiro Geral..., 204-205.

Eu sou o rei dos negros da Serra Leoa A terra onde vivemos fica muito longe. Andou numa caravela «Tubao» de Lisboa Falou muitas novas dum casamento para vós. Eu quis logo ver-vos, ver como vós íeis. Deixei minha mulher, parti muito asinha, porque nós sempre servimos vosso pai e os negros folgam muito de que sejais rainha. A gente daqui é muito boa. Na nossa terra nunca folgamos, andamos sempre em guerra. Não sei o que bailarei aqui, na vossa terra. Bailarei o que eu sei, como na nossa terra. Se vós quereis logo mandar que eu venha, farei o que eu sei, tomarei o que eu achar Mandai fazer bom lugar, Deus mantenha! e logo eu, negro, senhora, bailarei

[tradução para português corrente de Paul Teyssier]

Estes versos veiculam mensagens importantes sobre a linguagem, o poder e a moral. No que diz respeito à primeira, encontramos uma sim- plificação gramatical do português (ausência de conjugação verbal e de preposições, uso de a mim em vez do pronome pessoal «eu»). É interessante notar que as deformações fonéticas e a discordância gramatical quanto ao género, característicos de textos posteriores, estão praticamente ausentes aqui, com a possível excepção de duas aféreses («synha» por «asinha», «quy» por «aqui»). Do ponto de vista político e moral, duas imagens prin- cipais sobre a relação do negro africano com a sociedade ocidental emer- gem: apesar de ser ele mesmo um monarca, o rei africano corre a servir e prestar tributo aos príncipes europeus; a homenagem assume «esponta- neamente» uma forma de entretenimento (dança) e afirma, de passagem, a incapacidade estrutural dos africanos para fazerem a paz entre si.