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Representação política e cultural das populações do império português

A consciência da sub-representação ou da má representação – i. e., de uma representação errada, inexacta – suscitou reacções, levando à pro- dução de representações sobre o território e suas gentes por partes das elites «nativas» ou «naturais» dos territórios ultramarinos, aspectos que são aqui explorados, sobretudo, nos textos de Pedro Cardim, Rodrigo Bentes Monteiro, Iris Kantor e Pedro Ferreira, mas que cruzam, também, os textos de Ângela Barreto Xavier, Sandra Lobo, Ronald Raminelli e Maria Fernanda Bicalho.

A sub-representação política do império na época moderna é eviden- ciada no capítulo de Pedro Cardim, «As Cortes de Portugal e o governo dos ‘territórios ultramarinos’ (séculos XVI-XVII)», através da análise da pre-

sença dos temas imperiais e das suas populações nas Cortes portuguesas da época moderna, bem como no de Rodrigo Bentes Monteiro, «O lou- vor da [in]distinção. Portugal e o ultramar na coleção de Barbosa Ma-

47Cláudia Castelo, Passagens para África: O Povoamento de Angola e Moçambique com Natu- rais da Metrópole (1920-1974) (Porto: Edições Afrontamento, 2007).

chado (século XVIII)», no qual se observa o mesmo problema a partir da

biblioteca do erudito Diogo Barbosa Machado.

Cardim mostra-nos que num dos lugares mais importantes da repre- sentação política da época moderna, as Cortes, o império e as suas po- pulações estiveram claramente sub-representados. No geral, as Cortes ocuparam-se escassamente das questões relativas aos territórios não-eu- ropeus da monarquia.48Depois de uma leitura atenta dos autos das ses-

sões de abertura das Cortes, e das actas de todas as sessões ordinárias, Cardim conclui que as questões americanas, africanas e asiáticas eram escassamente debatidas. Apenas o «reino» era discutido. E mesmo depois de 1645, quando passou a haver representantes de câmaras ultramarinas, o panorama pouco se alterou. A acreditar nas actas das sessões das Cortes, os representantes de Goa, Salvador e São Luís do Maranhão não partici- pavam activamente nas reuniões, apesar de estarem presentes em todas as sessões, ao contrário dos procuradores de muitas terras do Reino, que voltavam para as suas terras logo a seguir à sessão de abertura.

Resultava essa representação limitada do facto de as Cortes serem um órgão que se ocupava, fundamentalmente, do «reino», sendo as questões «imperiais» discutidas e decididas noutros lugares da administração central da Coroa? Essa é uma hipótese plausível, sobretudo atendendo ao enten- dimento pluralista da representação política que operava na monarquia portuguesa. Assim sendo, os procuradores discutiam e decidiam sobre o que directamente dizia respeito às câmaras e terras do «reino». Todavia, se for essa a razão, persiste, ainda assim, uma questão por responder: porque é que se encontram nas Cortes, então, procuradores de alguns territórios ultramarinos? É essa presença sintoma de que algo estava a mudar, tam- bém, em relação ao próprio conceito de «representação política», e às as- pirações que as populações do império tinham em relação a esta?

Seria apenas a partir do liberalismo, quando a ideia unitária de nação se afirmou, que se verificou um novo investimento na representação política dos espaços e das populações ultramarinas no parlamento metropolitano, a qual persistiu até ao fim do Estado Novo. Mas como seria de esperar, também nestes períodos se assistiu à mesma sub-representação desses es- paços e populações, pois o número de deputados eleitos pelos círculos ul- tramarinos foi sempre diminuto, quando comparado com os círculos me- tropolitanos, não obstante a afirmação inequívoca, durante todo o período

48Pedro Cardim, Portugal Unido y Separado. Felipe II, la Unión de Territorios y la Condición Política del Reino de Portugal (Valhadolid: Universidad de Valladolid Cátedra «Felipe II», 2014).

liberal e republicano, da igualdade política dos territórios (províncias) ul- tramarinos relativamente às províncias metropolitanas.49No entanto, e ape-

sar daquela sub-representação, os temas ultramarinos ganharam uma nova importância nos parlamentos portugueses da época contemporânea, como mostram as colectâneas de discussões parlamentares recentemente publi- cadas pela Assembleia da República.50Mas está ainda por concluir a bio-

grafia colectiva de todos os deputados que foram eleitos por círculos ultra- marinos51e, entre estes, os que daí eram naturais, bem como o conteúdo

e o impacto das suas intervenções, fossem eles naturais ou não fossem.52

Uma representação limitada do império e das suas populações tam- bém se verifica no extracto de 300 folhetos dedicados ao império na co- lecção de retratos, folhetos e gravuras de Diogo Barbosa Machado, eru- dito setecentista, legítimo representante do ethos das elites portuguesas do século XVIII, membro da Academia Real da História e autor da mais

importante obra bibliográfica impressa da época, a Bibliotheca Lusitana. Aí, como nos mostra Rodrigo Bentes Monteiro, não apenas todo o im- pério é sub-representado em relação a conjuntos maiores das colecções, como, e talvez surpreendentemente, os escravos e os africanos delas estão praticamente ausentes.

De entre o total destes folhetos das colecções em tela, uma documen- tação de tipo laudatório e comemorativo, apenas 10% se referem a situa- ções ultramarinas, dando-se mais peso à Índia (e sobretudo às batalhas e cercos que aí tinham ocorrido) do que ao Brasil, sintomático do peso sim- bólico que as «coisas da Índia» ainda continuavam a ter na imaginação im- perial portuguesa setecentista. Por seu turno, considerando agora também os retratos em gravuras e os folhetos, os protagonistas do império eram, na sua maioria, metropolitanos: os heróis pertencentes às hierarquias sociais dominantes, oriundos da família real, da aristocracia, do clero.

Nesses cerca de 300 folhetos, e em vários retratos, abundam, ainda, al- guns ícones da alteridade – muçulmanos bárbaros, ameríndios servis ou

49Cristina Nogueira da Silva, Constitucionalismo e Império, cit...; «L’Africa nelle Costituzioni Portoghesi del XIXsecolo», Le Carte e La Storia, Rivista di Storia Delle Instituzioni, VIII(1) (2002). 50 Coord. Valentim Alexandre, para o século XIX, e Cândida Proença, para o século XX. 51A identificação do conjunto destes deputados e um primeiro esboço daquela bio- grafia, para períodos cronológicos curtos, foi feita no âmbito do projecto «Materiais para a História Eleitoral e Parlamentar Portuguesa» (http://purl.pt/5854/1/) , coordenando por Pedro Tavares de Almeida, bem como dos investigadores da respectiva equipa, Paulo Jorge Fernandes e Paulo Silveira e Sousa, cuja colaboração queremos aqui agradecer.

52Parte deste levantamento, para os deputados nativos, foi realizado no âmbito do projecto «O Governo dos Outros», estando o grupo dos deputados eleitos por Goa a ser exaustivamente trabalhado por Luís Cabral de Oliveira.

etíopes dubitativos –, mas deles são omitidos os escravos e outros africanos, os mesmos que, no século XVI, tinham sido objecto de zombaria no teatro

e que continuavam a sê-lo, também, em alguns palcos setecentistas. O que é que significa essa omissão? Que os escravos, dada a carga negativa que lhes estava inevitavelmente associada, foram excluídos de uma colecção dedicada às glórias portuguesas? Ou, e sabendo-se que os africanos conti- nuavam a estar presentes noutros folhetos setecentistas (nomeadamente no subgénero de folhetos impressos, com intenções cómicas, como os lu- nários, prognósticos e almanaques em «língua de preto»), será que esta au- sência significa, e apenas, um desinteresse pessoal de Barbosa Machado?

Para Rodrigo Bentes Monteiro, estes dados parecem indiciar que no sé- culo XVIII– i. e., três séculos depois de a «expansão ultramarina se ter ini-

ciado» –, os portugueses continuavam a manter «uma relação ambígua com o mundo ultramarino». Possivelmente, a ambivalência de sentimentos em relação às experiências imperiais e/ou a necessidade de projectar uma imagem positiva no plano internacional ajuda a explicar a sobre-represen- tação de certos temas (a heroicidade portuguesa) e a sub-representação de alguns outros (os escravos e os africanos, nomeadamente).

Apesar de continuarem a alimentar, ainda hoje, os imaginários colecti- vos dos portugueses, determinadas populações do império (caso dos afri- canos escravizados) continuam a ser sub-representadas (um exemplo bem actual é o World of Discoveries/parque temático/Centro Interactivo, na ci- dade do Porto, cuja narrativa reduz a uma questão menor a escravatura), enquanto a cartografia imperial (e a cartografia imaginada) tenderam a apresentar, desde o seu início, um império que era virtualmente maior do que aquele que era dominado na prática.53Por outro lado, o investimento

na comemoração do império e na propaganda imperial, primeiro, a mul-

53É muita, como é sabido, a bibliografia em torno das representações do império e não cabe aqui recenseá-la. O livro mais recente sobre este tema é o de Filipa Lowndes Vicente, ed., O Império da Visão, cit. Zoltán Biedermann, «Mapping the backyard of an empire: Por- tuguese cartographies of the persian littoral, 1500-1600», in Portugal, the Persian Gulf and Sa- favid Persia, eds. Rudi Matthee e Jorge Flores (Ghent: Peeters, 2011), 51-78. Um momento alto da hiper-representação do império foi o dos finais do século XIX, no contexto da cha-

mada «época da partilha», no qual se assiste à génese do mito, persistente, do «grande terri- tório espoliado», e se investe na representação e exploração desse território imaginado, como é sublinhado no livro já antigo mas matricial, de Valentim Alexandre, Origens do Colonialismo Português Moderno (Lisboa: Sá da Costa, 1979) e «Ruptura e estruturação de um novo império e configurações políticas», in História da Expansão Portuguesa, vol. IV, eds. F. Bethencourt e

K. N. Chaudhuri (Lisboa: Círculo de Leitores, 1998), 10-211. Manifestações desse momento do ponto de vista iconográfico encontram-se, por exemplo, no livro também recente de Leonor Pires Martins, Um Império de Papel, Imagens do Colonialismo Português na Imprensa Pe- riódica Ilustrada (1875-1940) (Lisboa: Ed. 70, 2012).

tiplicação das expedições científicas, já no Estado Novo, bem como a emergência da fotografia e do cinema, terão introduzido alterações signi- ficativas na representação destas e de outras populações do império, ainda que obliterando quase sempre a dimensão da escravidão, enquanto ela foi legal, e do trabalho forçado. As populações africanas – tal como as asiáticas – foram exotizadas e exibidas enquanto exemplos da diversidade cultural do império, quer no âmbito de uma cultura mais racialista, quer, posteriormente, no seio da exaltação luso-tropicalista.54

O capítulo de Iris Kantor, «Impérios portáteis: três atlas na era das re- voluções atlânticas», o qual privilegia três atlas de finais do século XVIIIe

primeiras décadas do século XIX, quando já se aproximava a ruptura do

Brasil com a metrópole, aborda outro tipo de representação. Kantor pro- cura perceber dois problemas: como é que os imaginários políticos da época – desde ideias revolucionárias até ideias contra-revolucionárias – se manifestaram através deste suporte, e como é que os mapas revelavam uma nova percepção da geografia imperial. Um dos elementos que Kantor explorou foi, precisamente, a diferença de percepção e representação da geografia imperial, quando realizada a partir da metrópole, ou por agentes metropolitanos, ou quando realizada a partir dos territórios do império, ou por agentes que actuavam nesses territórios ou eram deles originários. Entre estes atlas, o Guia de Caminhantes, de 1816, é aquele que melhor ajuda a compreender as concepções territoriais e as aspirações políticas dos súbditos nascidos na América. Apesar de pouco se conhecer sobre a biografia do seu autor, autodesignado, sugestivamente, como O Velho

Pardo, este anuncia explicitamente que o objectivo do seu guia era corrigir

os erros feitos pelos engenheiros militares e pelos cartógrafos de gabinete que nunca tinham estado no continente americano. Para além desta in- tencionalidade, que relembra a reflexão da Subaltern School sobre quem tinha o direito de falar sobre os colonizados,55o Guia do Pardo «indige-

niza» a toponímia brasileira, como que reclamando uma posse pré-colo-

54Ver, para uma panorâmica geral, Maria Isabel João, Memória e Império. Comemorações em Portugal (1880-1960) (Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002). A representação ci- nematográfica do Império foi também recentemente estudada em Maria do Carmo Piçarra e Jorge António, coords., Angola, O Nascimento de uma Nação, vol. I– O Cinema do Império

(Lisboa: Guerra e Paz Editores, 2013), e Maria do Carmo Piçarra e Jorge António, cords., Angola, O Nascimento de uma Nação, vol. II– O Cinema da Libertação (Lisboa: Guerra e Paz

Editores, 2014); e ainda de Maria do Carmo Piçarra, Azuis Ultramarinos. Propaganda e Censura no Cinema do Estado Novo (Lisboa: Ed. 70, 2015).

55Ranajit Guha, ed., Subaltern Studies V: Writings on South Asian History and Society (Deli: Oxford University Press, 1987); Gyan Prakash, «Subaltern studies as postcolonial criticism», The American Historical Review, 99 (5) (1994).

nial do território. Para além de situar o meridiano zero na província da Baía – um patriotismo cartográfico que desafiava as convenções euro- peias –, a referência às civilizações pré-colombianas parece reforçar esta ideia de civilidade anterior à presença dos portugueses, assim considera- dos, ainda que subtilmente, como estrangeiros. Desafiando a cartografia produzida a partir do reino, Pardo reivindicava para os colonos e os co- lonizados (ele próprio era o fruto da união entre uns e outros) o direito de falarem sobre si mesmos e sobre o território onde residiam.

Já a capacidade de as populações de origem africana fazerem ouvir a sua voz, e de se auto-representarem, fez-se sobretudo através da imprensa e de movimentos associativistas, e foi muito pequena, até em virtude da forte repressão que as mesmas associações sofreram no contexto do Es- tado Novo.56Aquela capacidade acabou por se tornar efectiva, apenas

em meados do século XX, já no contexto dos movimentos nacionalistas

africanos, aqui relembrados por Pedro Ferreira, «Casa dos Estudantes do Império. Da opção imperial à luta contra o colonialismo português (1944-1965)». Focado nessa associação de estudantes naturais das colónias cuja criação contou com o patrocínio do ministro das Colónias e do co- missário nacional da Mocidade Portuguesa, que acolhia estudantes uni- versitários provenientes das colónias, o capítulo de Pedro Ferreira mostra como esta instituição, que procurava ser um espaço de integração (e de domesticação?) dos colonizados na metrópole, promovendo a ideia de um Portugal uno e indivisível, ideia muito cara ao regime salazarista, se tornou, ao invés, num espaço de socialização dos resistentes ao poder colonial, contribuindo para a formação das elites anticolonialistas, pro- motoras dos nacionalismos africanos. Ou seja, um espaço de diferencia- ção, e até mesmo de cisão.

Ironicamente – ou significativamente –, seria no centro do império, no coração da cidade de Lisboa, que aqueles que frequentavam a Casa dos Estudantes do Império acabariam por reflectir sobre a sua africanidade (e não sobre a sua portugalidade, como Salazar desejaria), permitindo, como Amílcar Cabral iria chamar-lhe, a «reafricanização dos espíritos», «abrindo caminhos não só para uma militância política, como para o que virá a ser

56Para Moçambique ver Aurélio Rocha, Associativismo e Nativismo em Moçambique: Con- tribuição para o Estudo das Origens do Nacionalismo Moçambicano (1900-1940) (Promédia, 2002) (Maputo: Alcance, 2006); para Angola, Eugénia Rodrigues, A Geração Silenciada. A Liga Africana e a Representação do Branco em Angola na Década de 30 (Porto: Ed. Afrontamento, 2003). Ver também a bibliografia citada em Augusto Nascimento, «Associações e Ligas das/nas Colónias», in Dicionário de História da I República e do Republicanismo, vol. I, A-E (Lis-

a luta pela emancipação colonial, assente na base do nacionalismo». To- davia, e como mostra Pedro Ferreira, mesmo neste contexto, os coloniza- dos estavam divididos em grupos com sensibilidades políticas não neces- sariamente coincidentes – uns abertamente marxistas, contra a ditadura e o colonialismo; outros nacionalistas e anticolonialistas, mas não se imis- cuindo, necessariamente, na política metropolitana; outros, ainda, «apo- líticos», estando em Lisboa, essencialmente, para estudar. Em todo o caso, o contributo da Casa para o fim do império português nos territórios afri- canos é tangível, tornando evidente uma dupla ironia – terá sido na me- trópole que se reforçou a consciência política do colonizado relativamente ao seu estatuto subalterno, até por via do contacto com os «outros» da metrópole (criados e empregadas de limpeza brancos, que causavam sur- presa aos moçambicanos mulatos e «assimilados» que, como Joaquim Chissano e outros, aterraram em Lisboa ),57erodindo, também por essa

via, as estruturas que permitiam a permanência imperial, abrindo terreno para a descolonização.