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A aparição de pessoas mestiças, ou mesmo de populações mestiças, acompanha a formação das sociedades coloniais desde o início da ex- pansão europeia ultramarina. Esses processos sociais associam dois tipos de transformação: por um lado, a transformação retroactiva dos europeus no ambiente, natural e cultural, das sociedades extra-europeias; por outro, o surgimento de crianças nascidas das relações entre europeus e mulheres africanas, americanas e asiáticas.

O primeiro fenómeno resulta do que qualificamos como selvajaria, desde os lançados portugueses da costa da Guiné à experiência de Hans Staden entre os Tupinamba, ou da cativa Mary Rowlandson na Nova In- glaterra.32Mas o processo de transformação dos europeus por causa de

novos contextos não se iniciou com a expansão para África ou para a América. Uma parte da consciência combativa da Espanha cristã foi ali- mentada pela rejeição que inspirava a metamorfose dos cristãos dos rei- nos visigóticos em moçárabes, sob o califado de Córdova. Mais próxima das dinâmicas coloniais modernas, a evolução dos Old English, primeiros ocupantes anglo-normandos do Pale de Dublin, em senhores de cultura anglo-irlandesa, assombrou as políticas de plantação da época isabelina. O segundo fenómeno acabou por ter um papel bem mais profundo na história da formação das sociedades coloniais. Foi objecto de um investi- mento ideológico massivo e estratégico, em particular na sociogénese das

31 Alexis de Tocqueville, De la Démocratie en Amérique, t. I, vol. 2. (Paris: Michel Lévy, 1864), 305-306.

32Hans Staden, Nus, féroces et anthropophages, eds. Henri Ternaux Compans, Marc Bouyer e Jean-Paul Duviols (Paris: Métailié, 2005); Gary L. Ebersole, Captured by Texts: Puritan to Post-Modern Images of Indian Captivity (Charlotesville e Londres: University of Virginia Press, 1995), 15-60.

nações latino-americanas depois do período das independências. Esse in- vestimento contemporâneo constitui um desafio para a interpretação his- tórica do fenómeno mestiço durante o período colonial.33Efectivamente,

os processos em curso na época moderna podem ser entendidos como uma epopeia de mestiçagem, tornando essas realidades, retroactivamente, como resultantes de um projecto de uma nova sociedade. Ora, é legítimo duvidar de que os ibéricos envolvidos na acção colonizadora, formados na escola da pureza de sangue, tenham considerado que a concepção de uma população mestiça fosse a finalidade desejada da sua presença ultra- marina.34Sob o Antigo Regime, as suas disposições eram mais favoráveis

às alianças mistas do que as dos puritanos ingleses e holandeses?35

A América Latina pós-esclavagista distingue-se, não há qualquer dúvida, dos Estados Unidos, até porque em nenhum dos seus países foi adoptada uma legislação racista comparável às leis de Jim Crow. Essa aquisição ju- rídica, à qual se pode acrescentar, para o caso brasileiro, as meditações de Gilberto Freyre e a lenda da democracia racial, alimentaram um discurso colectivo que considera a mestiçagem das populações latino-americanas como o resultado de uma história homogénea e coerente que remonta aos primeiros tempos da colonização. Na rivalidade perpétua com os Es- tados Unidos, a ideia de uma colonização católica que tinha como prin- cípio um programa de mestiçagem releva mais de uma ideologia anti-ame- ricana do que de um exame sério das condições estabelecidas para os mestiços desde a sua aparição nos inícios do século XVI.36

Torna-se necessário afrontar menos do que uma contradição e mais do que uma tensão, entre a rigidez da natureza (num mundo pós-dar - winiano) e a mutabilidade das condições sociais. Verificamos que o pen- samento racial não impede a manumissão (ainda que a restrinja), e que a liberdade atribuída a certos escravos não desmente o preconceito de raça. Sabemos igualmente que os descendentes dos convertidos conse- guiram associar-se aos corpos sociais e às instituições que lhes eram in-

33Ronaldo Vainfas, «Colonização, miscigenação e questão racial: notas sobre equívocos e tabus da historiografia brasileira», Tempo, 8 (1999): 1-12.

34Charles R. Boxer, Race Relations in the Portuguese Colonial Empire (1415-1825) (Oxford: Clarendon, 1963).

35Alden T. Vaughan, Roots of American Racism: Essays on the Colonial Experience (Oxford: Oxford University Press, 1995).

36 Berta Ares Quejía, «Mestizos, mulatos y zambaigos (Virreinato del Perú, siglo XVI)», in Negros, Mulatos, Zambaigos: Derroteros Africanos en los Mundos Ibéricos, eds. Berta Ares Quejía e Alessandro Stella (Sevilha: CSIC, 2000), 76-88; Ana María Presta, «Portraits of four elite women: traditional female roles and transgressions in colonial elite families in Charcas, 1550-1600», Colonial Latin American Review, 9 (2) (2000): 237-262.

terditos em virtude das regras da pureza de sangue. Também nesse caso, o carácter indelével da infâmia não bloqueou as promoções. Todavia, os sucessos de alguns indivíduos não alteraram os preconceitos que afecta- vam a sua linhagem e o seu grupo.

Como sublinhou George M. Fredrikson, a questão do uso das catego- rias raciais tem uma expressão singular no Ocidente, dada a afirmação de a desigualdade natural entre os homens se desenvolver em sociedades que, desde a promessa evangélica até à doutrina dos Direitos do Homem, jamais se desfez do horizonte de uma igualdade fundamental entre os homens, mesmo que esta apenas fosse espiritual:

É apenas no Ocidente que observamos, no encontro entre grupos, esta interacção dialéctica entre um postulado da igualdade e poderosos precon- ceitos – condição aparentemente indispensável para o desenvolvimento completo do racismo como ideologia ou visão do mundo.37

O postulado da igualdade deve ser entendido como uma âncora a par- tir da qual pode ser edificada toda a argumentação que visa refutar o pen- samento racial, e, ao mesmo tempo, como uma assombração, a da in- certeza das condições sociais, principal alimento do pensamento racial. A sociedade crioula que não dispõe de distinção nobiliárquica produz instituições e reproduz condutas que a distinguem das populações colo- nizadas. A atribuição da rigidez é uma condição necessária, mas não su- ficiente, para uma política que repousa sobre a distinção da raça. Hegel explicava que a tragédia do destino dos judeus resultou do seu «fanatismo de torcicolo»,38isto é, a sua obstinação contra a mudança.39Atribuiu-se

aos judeus a função de «testemunho/s imóvel/eis», para retomar a ex- pressão de Maurice Olender, com o objectivo de tomar a medida da re- volução cristã. Dito de uma outra maneira, o que distingue os judeus é menos a sua cumplicidade no crime deicida, do que uma condição que deles faz contemporâneos perpétuos da paixão. Mas essa natureza e esse tempo suspenso não são suficientes para alimentar uma política antiju- daica e anti-semita.40A fórmula mais conforme aos resultados da inves-

tigação em história política das sociedades ocidentais seria, sobretudo: a fixação dos judeus na história é afirmada com mais força quando se ve- rifica a sua mobilidade social, o que se produz no século XV.

37Fredrickson, Racisme..., 21.

38«Fanatisme à la nuque raide», no original (N. da T.). 39Olender, Race..., 38.

40Maurice Olender, Les langues du paradis: Aryens et sémites, un couple providentiel (Paris, Seuil/Points Essais, 1989), 248.