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Félix Correia de Araújo Contexto familiar

Em trabalho recente dedicado às elites luandinas de Setecentos, no qual foram estudados vários membros da família de Félix Correia de Araújo, considera-se que a estirpe em questão se pode descrever com base em três traços marcantes.1

Por um lado, (i) trata-se das mais destacadas famílias locais daquela época. Félix Correia de Araújo era filho do reinol João Francisco de Araújo, capitão-mor do presídio das Pedras2e cavaleiro da Ordem de Cristo, e de

sua mulher D. Luísa Correia Leitão, senhora parda nascida em Angola, muito provavelmente em Luanda. D. Luísa era filha do tenente-general José Correia Leitão (falecido em 1746), cavaleiro da Ordem de Cristo, e de Mécia Rodrigues Afonso. Ambos os seus progenitores, que cremos não terem sido casados, eram naturais de Angola, sendo Mécia parda ou preta. Conhecemos-lhe um irmão germano, Manuel Correia Leitão, sargento- -mor do distrito do Dande por carta patente de 21 de Novembro de 17593

e responsável por uma conhecida viagem de exploração ao interior de An- gola em 1755.4O tenente-general Correia Leitão teve pelo menos um filho

1Luís Pedroso de Lima Cabral de Oliveira, «‘he homem pardo, mas para com os na- cionaes he branco da terra’: Dinâmicas e estratégias sociais e familiares da Luanda sete- centista em três processos de habilitação para o Santo Ofício», Raízes e Memórias, 30 (2013): 169-200, sobretudo 178-192. As citações que fazemos nesta subsecção são extraídas de documentação transcrita neste artigo.

2Consta aliás do seu processo de habilitação ao hábito de São Tiago ter Félix Correia de Araújo nascido neste presídio, onde os seus pais deviam então residir. João Francis - co de Araújo era ajudante do capitão-mor de Massangano em 1754 – Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), caixas de Angola, n.º 39, doc. 70.

3AHU, caixas de Angola, n.º 43, doc. 3.

4O relato foi publicado no Boletim da Sociedade de Geografia em 1938. Para maiores de- senvolvimentos, cf. Maria Emília Madeira Santos, Viagens de Exploração Terrestre dos Portu- gueses em África (Lisboa: Junta de Investigações Científicas do Ultramar – Instituto de Cul- tura Portuguesa/Centro de Estudos de Cartografia Antiga, 1978), 149 e segs; Jill Dias, «Angola», in Nova História da Expansão Portuguesa, orgs. Joel Serrão e A. H. de Oliveira Marques (Lisboa: Editorial Estampa, 1998), vol. X, 333 e 338; Joaquim Romero de Maga- lhães, «Os territórios africanos», in História da Expansão Portuguesa, orgs. Francisco Bet- hencourt e Kirti Chaudhuri (Lisboa: Círculo de Leitores, 1997), vol. III, 69-70.

de outra ligação: o padre Manuel Correia Leitão, que depois de uma pas- sagem pelo Brasil chegou a cónego da Sé de Luanda.5Aliás, um irmão do

próprio Félix Correia de Araújo – o padre António Correia de Araújo, nas- cido no distrito do Lumbo6– ocupou igualmente uma das conezias da-

quela sé. Refira-se ainda uma irmã do tenente-general Correia Leitão, tam- bém Luísa, baptizada em Luanda em 1679. Esta casou com o reinol Salvador Diniz Quaresma, natural de Barcarena e bacharel em leis pela universidade de Coimbra, de quem houve geração. De entre os filhos do casal conhece- mos designadamente João Teixeira Diniz, o qual se habilitou a familiar do Santo Ofício em 1719.7É no respectivo processo que se declara provir de

«pessoas principaes desta Terra» (Luanda) e de os seus parentes serem gente abastada – pelo que ficara «bem herdado». Para além de D. Luísa, sabemos da existência de mais dois irmãos do tenente-general Correia Leitão. Fala- mos de um par de eclesiásticos, frei João de Santa Isabel e frei Manuel de Jesus. Os bisavós maternos de Félix Correia de Araújo foram João Teixeira Leitão e D. Ana Correia. Aquele era um reinol nascido em Moimenta da Beira que estudara cânones da Universidade de Coimbra e lera no desem- bargo do paço. A sua mulher, nascida em Luanda e aí baptizada na freguesia da Sé, no dia 23 de Maio de 1654, é invariavelmente referida como «ma- trona nobre, e principal desta Cidade». Os seus progenitores são os mem- bros mais remotos da família que conhecemos: era filha de «Donna Maria Corrrea natural desta Cidade e mulher da primeyra nobreza della, e [...] do Capitam Antonio Alvres Correa que se dice ser natural de Portugal, hum dos principais moradores desta Cidade, donde ocupou varios Lugares da Republica, e postos na melícia, marido da dita Donna Maria Correa».

Em paralelo, (ii) trata-se de uma família que apesar de ser claramente luandina procura manter ligações fortes com o reino. Estas são assegura- das pelo menos por duas vias. Por um lado, através do casamento de al- gumas das suas filhas com reinóis que se instalavam em Angola; por outro, mediante envio regular de vários membros da estirpe para a Europa. Note-se no entanto que dois dos reinóis em causa, João Teixeira Leitão e Salvador Diniz Quaresma, apesar de disporem de qualificações acadé- micas que os habilitavam ao desempenho de cargos de prestígio em

5Para mais informações sobre este eclesiástico, António Duarte Brásio, História e Mis- sionologia: Inéditos e Esparsos (Luanda: Instituto de Investigação Científica de Angola, 1973), 912.

6Freguesia de São Bartolomeu da Tamba, jurisdição de Massangano – António Duarte Brásio, História..., 911.

7Arquivo Nacional da Torre do Tobo (ANTT), habilitações para o Santo Ofício, João Teixeira Diniz, mç. 179, dil. 1592.

Luanda (eram ambos graduados em Direito) não só pertenciam a um es-

tado considerado inferior ao das suas mulheres como também tinham

partido de forma semiforçada para Angola. Havia assim como que um ajuste conveniente a ambas as partes: graças a estes enlaces as famílias da elite local robusteciam laços com o reino e uniam-se a indivíduos acade- micamente qualificados e os europeus viam abrir-se-lhes as portas da so- ciedade luandina, o que certamente facilitaria o acesso aos cargos mais apetecidos da cidade e dos territórios que ela encabeçava. O mesmo não parece porém ser tão óbvio no caso de João Francisco de Araújo.8

Finalmente, (iii) falamos de uma família na qual se encontram diversos juristas e outros agentes do direito. O trisavô capitão António Álvares Correia fora «proprietário de hum dos officios de tabaliam que hoje [1727] se concervão na sua família»; o bisavô materno – homem de vida aventurosa – ocupara primeiro o cargo de juiz de fora no Crato e poste- riormente o de ouvidor geral de Angola; João Teixeira Diniz ocupara-se como «advogado, e Juiz dos orphaos» de Luanda.

O que concluir do que acabámos de referir? O facto de Félix Correia de Araújo ser não só um juiz letrado mas também um jurista natural de Angola foi relevante na forma como se conduziu durante o processo da galera Minerva? Cremos ser admissível ponderar uma resposta positiva. Não deixa de ser significativo que estas duas sentenças, as quais consti- tuem um precedente na história do direito angolano (e português), se devam a um magistrado que embora contasse uma série de antepassados

reinóis (i) descendia igualmente de uma linhagem havia muito fixada em

Luanda, (ii) tivesse nascido em Angola e (iii) fosse filho de uma senho - ra da elite local que era classificada como parda. Afinal, falamos de um filho da terra academicamente qualificado e que decerto conheceria com profundidade os equilíbrios, as dinâmicas e as injustiças próprias da An- gola da época. Sobretudo quando comparado com qualquer jovem ma- gistrado enviado no princípio da carreira para uma comarca africana da qual pouco ou nada sabia – como em regra sucedia. Estamos assim pe- rante um juiz que para além de português era também africano, e essa é uma particularidade que acreditamos não dever ser aqui esquecida.

8O progenitor de Correia de Araújo é apresentado no seu processo de habilitação para a Ordem de Cristo como filho de «um grande lavrador, honrado, com muita distincção e que educou os seus filhos com muita gravidade». Tratava-se «com muito luzimento, com criados e cavallos» e contava vários parentes prelados das Ordens de São Bento e de São Francisco e do hábito de São Pedro – ANTT, habilitações para a Ordem de Cristo, letra J, mç. 76, n.º 7. João Francisco de Araújo nascera em Couto de Landim, na comarca de Barcelos, e era filho de Manuel António de Araújo e de Madalena Francisca.