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Formação académica e carreira profissional

Apesar dos esforços que realizámos, não encontrámos até ao presente vestígios significativos da passagem de Félix Correia de Araújo pelo reino. Se sabemos quando começou a frequentar a Universidade de Coimbra (matricula-se no 1.º ano do curso jurídico de 1773-1774, a 5 de Outubro de 1774 em matemática e um ano depois em Filosofia),9não consegui-

mos porém encontrar o seu processo de leitura de bacharéis. Trata-se de uma fonte da maior importância para conhecermos melhor qualquer candidato à magistratura da época, pelo que a sua falta é bastante sensível. É no entanto certo que o jovem angolano deu entrada em Coimbra num momento em que se experimentavam os primeiros frutos da reforma pombalina do ensino superior – a qual marcou profundamente o ensino do Direito. Ora, terão o espírito renovador pombalino e os ideais ilumi- nistas deixado raízes no modo de pensar e agir de Correia de Araújo? Mais: serão eles visíveis nas duas sentenças relativas ao processo da Mi-

nerva? Julgamos poder responder afirmativamente. Correia de Araújo,

ao longo dos documentos referidos, recorre desde logo abundantemente à Lei da Boa Razão e não se esquece de mencionar outra legislação para- digmática do consulado pombalino, como a lei de 16 de Janeiro de 1773, que classifica de «providentissima».10Alude igualmente aos novos esta-

tutos da universidade11e cita obras como o De l’Esprit des Lois de Mon-

tesquieu,12o De Jure Naturae et Gentium de Pufendorf13e as Instituições do

Direito Portuguez de Pascoal de Mello Freire, que apelida de «sabio».14

Considerações idênticas podem ser tecidas relativamente à sua carreira: conhecemo-la ainda de forma bastante imperfeita. Curiosamente, uma das poucas descrições de que dispomos deve-se a Luís Prates, o respon- sável pela publicação das sentenças relativas ao processo da galera

9Conforme consta do respetivo livro, secção de cânones (1.º ano), 13: «Félix Correya de Araujo, fº de João Fran.co de Araujo, n.al de Angola, com Certidão de Exame e apro- vação em gramatica Latina, sóm.te ficando obrigado aos mais perparatorios na fórma do Edital de providencia e ajuntar certidão de idade not.ro de hum anno. e prestou Jura- mento a 8 de obr.o.»

10Luiz Prates de Almeida Albuquerque, Sentenças que no Juiso da Ouvidoria Geral do Reino d’Angola se proferirão pelo Doutor Felis Correa de Araujo, Magistrado do mesmo Reino, sobre a Restauração da Gallera Minerva, reprezada por nove escravos pretos da sua tripulação no anno de 1799, e confirmadas no Supremo Tribunal do Conselho de Justiça do Almirantado de Por- tugal (Lisboa: Impressão Régia, 1807), 30.

11Luiz Prates de Almeida Albuquerque, Sentenças..., 33. 12Id., 21.

13Id., 32. 14Id., 37.

Minerva. No entanto, o autor limita-se a dizer que Correia de Araújo

«servio a S. A. Real naquele Reino [de Angola], quasi dez annos, em Juiz de Fóra, Provedor, e Ouvidor Geral».15

Há por isso que complementar estes magros dados com a informação divulgada por Carvalho e Menezes em meados do século XIX.16Estas notas

são-nos valiosas a vários títulos. Desde logo por considerar Correia de Araújo um magistrado natural de Angola, mas também por o apresentar como modelo de inteireza à época. O que indicia que mesmo várias déca- das após o processo da Minerva o seu nome não fora esquecido e conti- nuava associado a uma ideia de rectidão e virtude. E interessam-nos so- bretudo por fornecer elementos muito concretos relativamente à sua carreira profissional antes e depois daquele caso. Esta parecia ser extrema- mente auspiciosa durante o último quartel do século XVIII: Correia de

Araújo começara por desempenhar funções de juiz de fora de Luanda e daí transitara para o lugar mais graduado de ouvidor e corregedor da co- marca.17Manter-se-á em exercício durante uma década, entre 1790 e 1800,

altura em que entra em conflito aberto com o governador, é afastado da ouvidoria e deixado cair «em esquecimento». O desfavor em que passa a viver é tão considerável que «para subsistir teve de se tornar advogado». Ora, a que se deveu o desentendimento com o poder político angolano?

15Luiz Prates de Almeida Albuquerque, Sentenças..., 39-40.

16«Devemos um tributo á memoria de tres mui distinctos Magistrados, que teve An- gola quando o ouro, e a immoralidade principiavam a ter aqui descarado imperio. Um europeu, e dous naturaes do paiz, o Dr. Felix Corrêa de Araujo, que primeiro servio em Loanda o lugar de Juiz de Fóra, e depois o de Ouvidor e Corregedor da Comarca entre os annos de 1790 a 1800, e o Dr. Euzebio de Queiroz Coutinho, que primeiro serviu o lugar de Juiz de Fóra de Benguella, e depois o de Ouvidor e Corregedor da Comarca entre os annos de 1811 a 1815. Estes dous mui dignos Magistrados reuniram ao saber uma integridade e honradez a toda a prova: os factos da sua vida publica o attestam, e por eles especialmente mereceram a mais cordial consideração e respeito dos povos. O primeiro foi victima, depois de se lhe dar sucessor, do capricho e da mais remarcavel das injustiças do Governo, que o deixou em esquecimento (e para subsistir teve de se tornar advogado) por haver sustentado a dignidade do seu cargo, contra as treslocadas arbitrariedades do iracundo governador D. Miguel Antonio de Mello, depois Conde de Murça» – Joaquim António de Carvalho e Menezes, Demonstração geográfica e politica do territorio portuguez na Guiné inferior, que abrange o Reino de Angola, Benguella, e suas dependên- cia. Causas da sua decadencia e atrasamento, suas conhecidas producções e meios que se podem ap- plicar para o seu melhoramento e utilidade geral da Nação (Rio de Janeiro: Tipografia Clássica de F. A. de Almeida, 1848), 51.

17Remonta a estes anos mais risonhos a mercê do hábito da Ordem de São Tiago, com o qual Correia de Araújo se vê agraciado a 12 de Setembro de 1794 – ANTT, habi- litações para a Ordem de São Tiago da Espada, letra F, mç. 3, n.º 7. O requerente solicita para ser dispensado das provanças da praxe e apresentação de certidões atendendo à «no- breza dos pais e avós», recebendo parecer positivo da Mesa de Consciência e Ordens.

Carvalho e Menezes é extremamente vago. No entanto, é-nos impossível deixar de recordar que o polémico processo da Minerva se desenrolou entre 1799 e 1801 e que D. Miguel António de Mello encarou com apreensão as decisões tomadas pelo ouvidor. Parece ser então relativamente seguro admitir que se as duas sentenças que assinou em 1799 garantiram a Correia de Araújo um papel pioneiro da história do direito angolano (e mesmo português) e aos nove escravos marinheiros o reconhecimento dos seus di- reitos, por outro lado também implicaram a queda em desgraça do magis- trado responsável pelo processo. Nos domínios da justiça, Correia de Araújo venceu os interesses económicos e políticos que se opunham à pre- tensão dos marinheiros; no campo da política, foi batido pelos seus rivais. A ser verdadeira a nossa conjectura, foi assim obrigado a pagar um alto preço por «haver sustentado a dignidade do seu cargo».

Surpreende porém o silêncio de Luís Prates relativamente aos aconte- cimentos posteriores a 1801, tanto mais que a edição das Sentenças data de 1807. Não teria tido conhecimento da sorte do antigo ouvidor? Esta tese é confirmada por na listagem dos subscritores da tradução de 1814 do Discurso de Herrenschwand (outra das obras de Prates) Correia de Araújo ainda ser apresentado como «Juiz em Angola».