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Identificar uma boa cronologia tem sido objecto de desacordo entre os historiadores, tornando-se, por conseguinte, num lugar rico de ensi- namentos. Poderíamos ser tentados a confiar no projecto internacional de estudos de hereditariedade conduzidos por Müller-Wille e Hans-Jörg Rheinberger desde os primeiros anos deste milénio. Os primeiros resul- tados publicados no volume Heredity Produced mostram que a história da formação do conceito de hereditariedade não se substitui à história das políticas raciais. A assimetria entre a validade plurissecular da heredita- riedade, entendida como direito de transmissão patrimonial, e o carácter mais recente da significação biológica e médica, estabelecem o quadro de análise. O projecto explora uma via média que abraça uma cronologia significativa da história europeia. No entanto, nada obriga a sobrepor os resultados da história da noção biológica de hereditariedade aos resulta- dos da emergência de uma política da raça:

Uma das razões para este livro é o facto de a hereditariedade se ter tornado uma noção fundamental da biologia do século XX. Isto cria a ilusão de que

a hereditariedade deve ter sido reconhecida desde tempos imemoriais, e a via oposta, de que não havia conceito de hereditariedade antes do advento da genética. [...] [Este livro] incide sobre um período no qual a hereditarie- dade, um conceito formalmente restrito ao domínio do direito, começou a ser aplicada como uma metáfora em matérias de reprodução orgânica, tor- nando-se sucessivamente num conceito de importância central para as ciên- cias humanas e as ciências da vida. Identificamos o início deste período com a emergência de classificações raciais em Espanha e Portugal do começo do século XVI, e o seu fim com a aparição de teorias gerais da hereditariedade

no terceiro terço do século XIX.19

19Staffan Müller-Wille e Hans-Jörg Rheinberger, eds., Heredity Produced: At the Crossroads of Biology, Politics, and Culture, 1500-1870 (Cambridge e Londres: The MIT Press, 2007)

Ou seja, para autores que situam no início do século XIXa transposição

da herança patrimonial para a hereditariedade orgânica, a aparição de «classificações raciais» nas sociedades ibéricas pode ser datada do início do século XVI(na realidade, o século XVmerece ser integrado nesta cro-

nologia). De facto, não parece muito difícil associar ao sistema da genea- logia a significação jurídica da herança e o sentido fisiológico de heredi- tariedade. Esta técnica de certificação das origens dos indivíduos acompanha e enquadra a reprodução intergeracional de marcas de per- tença, desempenhando um papel central na vida das famílias, no cruza- mento de normas civis e de fantasmas sobre a transmissão pelo sangue.20

A filósofa Naomi Zack construiu a sua análise acerca da eficácia da hierarquia da raça nos Estados Unidos sobre a base da assimetria entre as consequências sociais resultantes de uma genealogia branca e de uma genealogia negra.21Zack mostra como a presença de um antepassado

negro é suficiente para macular a identidade racial de um cidadão, trans- formando-o num «negro», independentemente da cor efectiva da sua pele. Em contraste, a presença de um antepassado branco numa linha- gem negra não «embranquece» os seus descendentes, não os transfor- mando em cidadãos «brancos».

Esta mecânica desigual de atribuição de identidade coexiste com a existência de atribuições que exprimem os graus de mistura dos indiví- duos (half-blood, castiços, etc.). Ora, nem a avaliação da diluição do san- gue nem o funcionamento assimétrico da atribuição resultam de uma contaminação do campo social pelos resultados produzidos pelas ciên- cias experimentais. Nos dois casos, deparamos com raciocínios e argu- mentações de natureza racial independentes da teoria biológica assente sobre o conceito de hereditariedade. Dito de uma outra maneira, é pos- sível que se tenha desenvolvido um campo de análise de natureza genea-

(N. da T., em inglês, no original: «One reason for such a book is that heredity has become entrenched as a fundamental notion of twentieth-century biology. This creates both the illusion that heredity must have been recognized as such since time immemorial, and the converse view, that there was no concept of heredity to speak of before the advent of ge- netics. [...] [This book] extends over the period in which heredity, formerly a concept res- tricted to the realm of law, began to be applied as a metaphor in matters of organic repro- duction and successively became a concept of central importance to the life and human sciences. We identify the beginning of this period with the emergence of racial classifica- tions in early sixteenth-century Spain and Portugal, and its end with the appearance of general biological theories of heredity in the second third of the nineteenth century.»

20Roberto Bizzocchi, Genealogie incredibili: Scritti di storia nell’Europa moderna. Annali dell’Is- tituto Storico Italo-Germanico, 22 (Bolonha: Il Mulino, 1995); Christiane Klapisch-Zuber, L’ombre des ancêtres: Essai sur l’imaginaire médiéval de la parenté (Paris: Fayard, 2000).

lógica, contemporâneo ao desenvolvimento das ciências da hereditarie- dade, sem aquele se confundir minimamente com estas. O caso do tra- tamento político e racial da questão judaica nas sociedades ibéricas de finais da Idade Média, há quatro séculos, pode servir de contra-prova: ao confrontar genealogias de cristãos-novos e de cristãos-velhos, a mecâ- nica assimética funcionou da mesma maneira. Um antepassado judeu era o suficiente para judaizar toda a linhagem. Em contrapartida, a apor- tação de um antepassado cristão-velho não alterava a natureza inferior de uma linhagem judaica.

Do mesmo modo que a história das doutrinas científicas deve acom- panhar as análises sobre os usos políticos da raça, não devemos conside- rar, por seu turno, cada uma destas formas de análise como a medida da outra. Parece ser mais útil avaliar de que forma é que os contextos cro- nológicos e as vias de entrada para a temática da raça foram sendo soli- dários. Quando a opção foi a do domínio da cor e da fisionomia, a in- terpretação tendeu, por um efeito mecânico, a datar a aparição das categorias raciais em meados do século XVIII, apesar de observarmos na

Idade Média uma série de manifestações relativas à cor. Mas quando se- guimos a pista da inscrição das identidades e das alteridades nas genea- logias, começa a desenhar-se uma cronologia mais longa.

De facto, a consciência de uma alteridade física do homem negro é atestada por todo o tipo de suportes iconográficos, a começar pela con- venção pictórica que tornou, a partir do século XVI, o rei mago Baltasar

num rei africano. O estudo desse corpus iconográfico revela uma diversi- dade de casos muito grande, desde a representação do homem africano em majestade até ao seu retrato como ser desprezível e inquietante.22

O racismo antinegro não se deduz da expressão visível de uma diferença, mas de dois fenómenos sociopolíticos que é possível localizar e datar. Por um lado, a vontade dos proprietários das plantações de verem os fi- lhos dos seus escravos herdarem o estatuto servil entrava em choque com o universalismo cristão, com a narrativa da redução acidental dos indi- víduos à escravidão, e, na transição do século XVII para o século XVIII,

com a difusão crescente de argumentos abolicionistas. Por outro, a pre- sença do livre de cor, em resultado da manumissão, os efeitos reais e fan- tasmáticos da revolução haitiana, e os progressos da abolição nos Estados Unidos, bem como o acesso à cidadania plena dos escravos libertados

22Enrique Martínez López, Tablero de Ajedrez: Imágenes del Negro Heroico en la Comedia Española y en la Literatura e Iconografía Sacra del Brasil Esclavista (Paris: Fondation Calouste Gubenkian, 1998).

em massa depois da Guerra Civil, engendrou teorias, regulamentos e leis destinados a garantir uma segregação racial rigorosa. Ou seja, nas socie- dades pós-esclavagistas, o motor mais poderoso do racismo em relação aos negros resultou dos processos de aproximação da condição negra à cidadania. Quer isto dizer que se tratou menos de uma discriminação fundada sobre a diferença, do que da rejeição de um processo de redução da distância. As regras que tendiam a interditar aos livres de cor de usar a espada, ou, mais modestamente, de se vestirem à maneira dos europeus, são sintomas desse fenómeno.

Se aplicarmos o mesmo tipo de raciocínio à questão judaica, o próprio fenómeno da invisibilidade adquire uma outra significação. De facto, tanto o estigma da roda medieval quanto o da estrela amarela tornavam evidente o que se tornara invisível pelo efeito do tempo e da dissimulação. Tornavam evidente o que uma política discriminatória se propunha reve- lar a uma comunidade que de outro modo não via as diferenças. Desde então, a relação entre pensamento racial e invisibilidade tornou-se mais forte. Poder-se-ia mesmo afirmar que o raciocínio de tipo racial respondeu, em primeiro lugar, à necessidade de fazer valer distinções que o olho já não identificava. Tratou-se da resposta política mais adequada a um fenó- meno social julgado ameaçador. Os judeus medievais foram marcados e obrigados a viver em quarteirões específicos, de modo a compensar a im- possibilidade de os reconhecer. E quando deixou de se tornar possível marcá-los e interditar-lhes a morada onde quisessem, os judeus converti- dos da Península Ibérica e da América foram assinalados como perten- cendo a genealogias reputadas de infectas. Assim se compreende o que há de comum entre os racismos antijudaico e antinegro. Tanto num como no outro caso, mais do que sublinhar uma alteridade evidente, o pensa- mento racial procurou criar uma nova forma de alteridade que respon- desse à diluição da diferença de certas minorias na ordem sociopolítica. Para expressá-lo através das palavras de Maurice Olender, o pensa- mento racial singulariza-se pela «correlação imediata que pretende esta- belecer entre o visível e o invisível».23

Na suma consagrada à expulsão dos judeus espanhóis, Norman Roth responde à questão colocada por Yosef Yerushalmi sobre a possibilidade de haver uma correspondência entre antijudaísmo ibérico e anti-semi- tismo contemporâneo. Num primeiro momento, qualifica como «ana-

23Maurice Olender, Race sans Histoire (Paris: Seuil/Points Essais, 2009), 48. N. da T., em francês, no texto original: «la corrélation immédiate d’(elle) prétend établir entre du visible et de l’invisible».

crónica» a analogia entre o racismo anti-semita dos séculos XIXe XXe as

atitudes hostis da Idade Média, sugerindo que não havia a percepção das comunidades judias como pertencendo a uma determinada raça. Mas fá-lo para afirmar que os regulamentos da pureza de sangue, ao subli- nharem a questão da infecção do sangue judaico, «criavam, de alguma forma, uma inferioridade racial».24É o próprio autor que sublinha o uso

do epíteto racial.25Conclui que o termo anti-semitismo pode ser utilizado

para designar o sistema de discriminação política concebido contra os

convertidos, descrevendo a antipatia religiosa relativamente à sinagoga.

A solução que Roth oferece para o problema dos dois anti-semitismos, o ibérico do Renascimento e o nazi, é importante: afirma que foi a dis- solução da diferença judaica a alimentar a imaginação genealógica ou naturalista. Dito de uma outra maneira, o pensamento racial fabrica al- teridade onde ela cessa de ser evidente.

O pensamento racial realiza duas operações: identifica as especifici- dades das pessoas enquanto membros de determinados grupos, afir- mando depois que esses traços se transmitem pela procriação. Esse tipo de análise constrói-se na época moderna, acabando por produzir represen tações pictóricas das raças humanas ou quadros de classificação. Quer se trate da transmissão física de traços culturais, ou da elaboração de hierarquias entre grupos, em ambos casos estamos perante saberes si- tuados no contexto de dinâmicas políticas. Efectivamente, dois fenóme- nos sociopolíticos e socioeconómicos de longa duração permitiram a emergência das ideologias raciais. O primeiro foi a perseguição assente sobre discriminações religiosas, culturais e sociais, como técnica de go- verno e de produção da ordem social. O segundo foi a exclusão da hu- manidade de populações cujo sistema económico dominante exigia que fossem reduzidas à escravidão. Nas duas situações, a mobilização de ca- tegorias visou criar distinções no interior dum mesmo território, i. e., den- tro de uma certa proximidade. O pavor da mistura e da mestiçagem atesta o facto de o pensamento racial se aplicar, desde logo, no modo como a sociedade se olha a si mesma.