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Compatibilidade estrutural da teoria do domínio do fato no ordenamento jurídico

Verificou-se que, na prática, a jurisprudência nacional já recepcionou a teoria do domínio do fato, adicionando certo temperamento. A questão é analisar se essa recepção é

143 ROXIN, Claus. Derecho penal parte general tomo II: especiales formas de aparición del delito, p. 113. 144 ROXIN, Claus. Novos estudos de direito penal, p. 182-190.

compatível a estrutura do concurso de pessoas estabelecida no Código Penal, a partir de uma leitura constitucional dos preceitos legais.

À primeira vista, o artigo 29 do Código Penal funda-se em uma teoria unitária ou extensiva de autor, equiparando todas as condutas que cooperam para o delito, ao estabelecer que todos que concorrem para o fato respondem pelo mesmo crime, segundo idênticos parâmetros sancionatórios. O artigo 30 reforça esse entendimento ao estender as elementares do tipo de caráter objetivo a todos os intervenientes do delito, igualando-os no mesmo acontecer típico.

Vale conferir os três artigos do Título IV, “Do concurso de pessoas”, integralmente146:

Regras comuns às penas privativas de liberdade

Art. 29 - Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade.

§ 1º - Se a participação for de menor importância, a pena pode ser diminuída de um sexto a um terço.

§ 2º - Se algum dos concorrentes quis participar de crime menos grave, ser-lhe-á aplicada a pena deste; essa pena será aumentada até metade, na hipótese de ter sido previsível o resultado mais grave.

Circunstâncias incomunicáveis

Art. 30 - Não se comunicam as circunstâncias e as condições de caráter pessoal, salvo quando elementares do crime.

Casos de impunibilidade

Art. 31 - O ajuste, a determinação ou instigação e o auxílio, salvo disposição expressa em contrário, não são puníveis, se o crime não chega, pelo menos, a ser tentado.

A exposição de motivos, cuja finalidade seria explicitar os artigos, é absurdamente contraditória. Inicia dizendo não resgatar os conceitos do Código Criminal do Império147 em prol de uma teoria unitária (conceito unitário ou extensivo de autor). Em seguida, pinta um conceito restritivo de autor, com normas que “distinguem autoria da participação”. Ou bem se adota um conceito unitário, e não há que se falar em partícipes, ou se assume um conceito restritivo, e aí sim faz sentido abalizar autores e partícipes. A contradição é digna da transcrição integral do texto:

Ao reformular o Título IV, adotou-se a denominação “Do Concurso de Pessoas” decerto mais abrangente, já que a co-autoria não esgota as hipóteses do concursus

delinquentium. O Código de 1940 rompeu a tradição originária do Código Criminal

do Império, e adotou neste particular a teoria unitária ou monástica do Código italiano, como corolário da teoria da equivalência das causas (Exposição de

146 Cf. BRASIL. Decreto-lei n. 2.848, de 7 e dezembro de 1940. Institui o Código Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm>. Acesso em: 20 de mar. 2016. 147 Rememorando o capítulo 2, o Código Criminal do Império distinguia autores e partícipes.

Motivos do Ministro Francisco Campos, item 22). Sem completo retorno à experiência passada, curva-se, contudo, o Projeto aos críticos dessa teoria, ao optar, na parte final do art. 29, e em seus dois parágrafos, por regras precisas que distinguem a autoria da participação. Distinção, aliás, reclamada com eloqüência pela doutrina, em face de decisões reconhecidamente injustas.

Deveras, o único ponto que embasa tal proclamação dos redatores do estatuto penal sobre a diferenciação entre autoria e participação é o §1º do artigo 29, que prevê a causa de diminuição de pena quanto a “participação for de menor importância”.

Todavia, a redação é tão dúbia que, em verdade, pode-se concluir pela aplicação da minorante até mesmo ao coautor que cooperou de forma menos relevante. Na práxis judiciária, essa causa fica a cargo do arbítrio judicial, sem limites aparentes. Portanto, não é possível retirar da exposição de motivos qualquer conclusão logica.

Comparativamente, a redação do Código Penal alemão, v. g., traduz em preceitos específicos as qualidades de autor e de participe, estabelecendo, de antemão, um conceito restritivo de autor. Confira-se os §§ 25 a 27 do Título III, que versa sobre “autoria e participação”:

§ 25. Autoría

(1) Se castiga como autor a quien cometa el hecho punible por si mismo o a través de otro.

(2) Si varios cometen mancomunadamente el hecho punible, entonces se castigará a cada uno como

autor (coautoría).

§ 26. Instigación (inducción a delinquir)

Igual que el autor será castigado el instigador. Instigador es quien haya determinado dolosamente a otro para la comisión de un hecho antijurídico.

§ 27. Complicidad

(1) Como cómplice se castigará a quien haya prestado dolosamente ayuda a otro para la comisión un

hecho doloso antijurídico.

(2) La pena para el cómplice se sujeta a la sanción penal para el autor. La pena debe reducirse conforme al § 49, inciso 1.148

De qualquer maneira, coaduna-se com o sistema de garantias penais o conceito restritivo de autor e, assim, os dispositivos do Código Penal, ainda que redigidos antes de 1988, devem ser lidos sob os auspícios do Texto Maior. Logo, a única exegese razoável é a adoção de um conceito restritivo de autor, pelos motivos já descritos no capítulo anterior.

148 ALEMANHA. Código Penal Alemán, del 15 de mayo de 1871, con la última reforma del 31 de enero de 1998. Traductora Claudia López Dias. Disponível em: < http://www.juareztavares.com/legislacao.html>. Acesso em: 25 fev. 2016. Tradicionalmente, a legislação alemã distingue os partícipes por indução (auxílio moral) e por cumplicidade (auxílio material), o que não ocorre expressamente na legislação brasileira.

A teoria do domínio do fato impõe apreços de ordem técnica e metodológica que precisam ser analisados profundamente nos casos concretos, mas é capaz de resolver, sem aporias, os principais problemas práticos relacionados à cooperação delitiva, com a nítida vantagem de estabelecer claramente a distinção entre autoria e participação sem incorrer nos problemas das demais teorias, conforme já assinalado ao longo deste capítulo. Não há motivos para inadmiti-la, já que o próprio legislador brasileiro não professa qualquer teoria em sua gênese e nem foi capaz de indicar um norte para essa finalidade, como visto na exposição de motivos supratranscrita.

Analogicamente podem ser citados outros dispositivos legais que autorizam o reconhecimento de colaborações delitivas sem o caráter de autoria, embora a partir de um ponto de vista das exceções pluralísticas à chamada teoria monista. É o caso do indivíduo, vulgarmente conhecido como “fogueteiro”, que avisa os narcotraficantes sobre a aproximação das autoridades policiais, cuja conduta, em tese, é de um partícipe do crime de tráfico de drogas (artigo 33 da Lei n.º 11.343, de 2006). O legislador, percebendo a natureza menos lesiva nessa conduta, lhe estipulou um tipo penal específico (artigo 37 da Lei n.º 11.343, de 2006)149, demonstrando que o sistema penal brasileiro está atento aos princípios da legalidade,

proporcionalidade e culpabilidade.

Igualmente, o artigo 122 do Código Penal permite deduzir a adoção de condutas coadjuvantes no fato alheio: “Induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou prestar-lhe auxílio para que o faça”. Embora não se deduza participação em “crime suicídio” – o suicídio, para aquele que tenta o autoextermínio, é conduta atípica para todos os efeitos – as expressões “induzir”, “instigar” e “auxiliar” representam o reconhecimento da potencialidade de condutas secundárias no ordenamento jurídico brasileiro.

Portanto, conjugando-se esses argumentos – efetivação das garantias constitucionais penais, dispositivos legais que preveem formas de cumplicidade e inexistência de teoria fundamentadora na formação do códice – a distinção entre autoria e participação no Brasil

149 “Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias- multa.”[...]. “Art. 37. Colaborar, como informante, com grupo, organização ou associação destinados à prática de qualquer dos crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1o, e 34 desta Lei: Pena - reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e pagamento de 300 (trezentos) a 700 (setecentos) dias-multa.” (BRASIL. Lei n. 11.343, de 23 de agosto de 2006. Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas - Sisnad; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências.Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343.htm>. Acesso em: 17 de janeiro de 2016.).

pode se valer do critério do domínio do fato, desde que respeitados os requisitos doutrinaria e jurisprudencialmente consagrados.

Luís Greco e Adriano Teixeira também defendem o domínio do fato de lege lata, ou seja, independentemente de alteração legislativa:

Por outro lado, com o apoio de argumentos adicionais baseados na interpretação de determinados dispositivos (arts. 31, 121, 122, 129) e com base no princípio da legalidade é possível partir já de lege lata de um conceito restritivo de autor e da teoria do domínio do fato.150

Na reinterpretação desses dispositivos, pode-se projetar uma possível releitura nos seguintes moldes para os delitos de ação ou de domínio: autor é quem realiza pessoalmente

os elementos do tipo; coautor é realização do tipo por duas ou mais pessoas, mediante distribuição de tarefas, plano comum e contribuição relevante no momento da execução do delito; autor mediato é aquele que se serve de outrem para cometer o delito, dominando a vontade por meio de erro, da coação ou de aparatos organizados de poder; partícipe é quem coopera no delito realizado por outrem, por meio de indução, instigação ou auxílio.

Essa projeção será adotada no capítulo 5, quando, então, será examina a aplicabilidade nos crimes de peculato e corrupção passiva.

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