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Pressupostos do domínio de organização nos crimes de peculato e corrupção passiva

4 CRIMES CONTRA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA: PECULATO E

5.2 Pressupostos do domínio de organização nos crimes de peculato e corrupção passiva

No capítulo 3, foram analisados, a partir da análise história, dogmática e jurisprudencial, os pressupostos essenciais para caracterização do domínio do fato e da

288 GUSTIN, Miracy Barbosa Sousa; DIAS, Maria Tereza Fonseca. (Re)pensando a pesquisa jurídica: teoria e prática, p. 8-9.

ramificação conhecida como domínio de organização. Parte-se, inicialmente, de três máximas preliminares: (1ª) autor é a figura central da realização do tipo e partícipe é o interveniente secundário ou acessório; (2ª) o domínio do fato aplica-se aos delitos de ação ou de domínio; (3ª) domínio da vontade por meio de aparatos organizados de poder, justifica a autoria

mediata entre o “homem de traz” e o executor imediato, permitindo a dupla punibilidade.

Dessa maneira, seguindo-se a doutrina de Claus Roxin, são quatro os requisitos fundamentais do domínio da vontade por meio de aparatos organizados de poder289:

e) Organizações à margem da ordem legal; f) Poder de emitir ordens do autor mediato; g) Fungibilidade dos executores imediatos;

h) Alta disposição do autor imediato para executar o ato290.

Luiz Greco e Alaor Leite sintetizam os elementos dessa forma de autoria mediata:

Trata-se da terceira forma de autoria mediata: além do domínio sobre a vontade de um terceiro por meio de erro ou de coação, propõe Roxin, de forma original, que se reconheça a possibilidade de domínio por meio de um aparato organizado de poder, categoria que ingressou na discussão científica em artigo publicado por Roxin em 1963 na revista Goltdammer’s Archiv für Strafrecht, e que é objeto constante das manifestações de Roxin. Aquele que, servindo-se de uma organização verticalmente estruturada e apartada, dissociada da ordem jurídica, emite uma ordem cujo cumprimento é entregue a executores fungíveis, que funcionam como meras engrenagens de uma estrutura automática, não se limita a instigar, mas é verdadeiro autor mediato dos fatos realizados.291

Decerto, esses requisitos serão examinados em uma conjuntura específica, a saber, o concurso de pessoas – funcionários públicos e particulares –, nos crimes de peculato e corrupção passiva.

Organizações à margem da ordem legal são as entidades dissociadas do direito, isto é,

não adstritas aos fundamentos do Estado de Direito. Segundo Roxin, “tal desvinculación del Derecho existe en los crímenes de Estado, en los delitos terroristas y en los casos de criminalidad organizada.”292

289 Cf. ROXIN, Claus. Autoría e dominio del hecho en derecho penal, p. 269-280.

290 Nota-se que originalmente Roxin não havia incluído esse quarto requisito – alta disposição para o ato por parte do executor imediato – inserido em estudos posteriores.

291 GRECO, Luís; LEITE, Alaor. O que é e o que não é a teoria do domínio do fato. In: GRECO, Luís; LEITE, Alaor; TEIXEIRA, Adriano; ASSIS, Augusto. Autoria como domínio do fato: estudos introdutórios sobre o concurso de pessoas no direito penal brasileiro, p. 27-28.

292 ROXIN, Claus. Derecho penal parte general tomo II: especiales formas de aparición del delito. 1ª edición, p. 121.

Nos crimes contra a administração pública, praticados em um Estado Democrático de Direito, não se concebe a coexistência de um “estado totalitário” ou de uma “criminalidade de estado”. Por isso, descarta-se na hipótese aventada o cometimento desses delitos por meio de estados totalitários, optando-se, de antemão, pelo paradigma democrático293. Da mesma forma, incabível fazer elucubrações sobre grupos terroristas nos crimes de peculato e corrupção passiva, a não ser como entidades financiadas com essas práticas. Todavia, a abordagem desse assunto extrapolaria demasiadamente os limites impostos a essa pesquisa.

Portanto, na democracia, a única alternativa é considerar o conluio entre funcionários públicos e particulares na realização dos tipos penais como uma organização criminosa para preencher o primeiro requisito exigido. Certamente, não uma organização criminosa estatal, mas uma que se insere (i)legitimamente294 no organismo estatal e produz seus delitos por meio dos postos conquistados.

Com a Convenção de Palermo, a ordem jurídica internacional implementou a definição de organização criminosa, mas no Brasil não existia um tipo penal semelhante, apesar da miríade de leis que faziam referência à expressão, especialmente a Lei n. 9.034, de 1995295 que, a despeito de inovar com mecanismos jurídicos de combate ao crime organizado,

não tipificou a conduta criminosa.

Depois de severas discussões doutrinárias e jurisprudenciais, o legislador introduziu na ordem jurídica nacional o crime de “organização criminosa”, por intermédio da Lei n.º 12.850, de 2013296, atendendo aos reclamos dogmáticos, jurisprudenciais e sociais. É preciso interpretar conjuntamente os artigos 1º e 2º da mencionada lei:

Art. 1o Esta Lei define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova, infrações penais correlatas e o procedimento criminal a ser aplicado.

§ 1o Considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que

293 Trata-se mais de um “recorte dogmático” e não uma impossibilidade jurídica. Certamente, os estados totalitários costumeiramente desviam recursos públicos para fins particulares com intensidade ainda maior do que nos estados de direito.

294 A legitimidade referida nesse trecho é exclusivamente semântica ou aparente. Os membros da organização podem galgar os postos ilicitamente, mediante fraudes eleitorais ou fraudes a concursos públicos ou, ainda, após regular nomeação e posse, constituindo ou integrando o grupo criminoso a posteriori. A ideia, na verdade, é que a legitimidade, até que se desvende a organização, permanece.

295 BRASIL. Lei n. 9.034, de 3 de maio de 1995. Dispõe sobre a utilização de meios operacionais para a prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9034.htm>. Acesso em: 12 mar. 2015.

296 BRASIL. Lei n. 12.850, de 2 de agosto de 2013. Define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova, infrações penais correlatas e o procedimento criminal; altera o Decreto- Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal); revoga a Lei no 9.034, de 3 de maio de 1995; e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12850.htm>. Acesso em: 12 mar. 2015.

informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional.

§ 2o Esta Lei se aplica também:

I – às infrações penais previstas em tratado ou convenção internacional quando, iniciada a execução no País, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente;

II – às organizações terroristas internacionais, reconhecidas segundo as normas de direito internacional, por foro do qual o Brasil faça parte, cujos atos de suporte ao terrorismo, bem como os atos preparatórios ou de execução de atos terroristas, ocorram ou possam ocorrer em território nacional.

Art. 2o Promover, constituir, financiar ou integrar, pessoalmente ou por interposta pessoa, organização criminosa:

Pena – reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa, sem prejuízo das penas correspondentes às demais infrações penais praticadas.

Desse tipo penal, pode-se deduzir uma organização criminosa, destinada a cometer atos ilícitos lesivos ao patrimônio público, inexistindo óbice à sua configuração nos crimes contra a administração pública, conquanto, os crimes de peculato e corrupção passiva cumprem o requisito objetivo de gravidade do delito (penas máximas superiores a quatro anos).

Imagine-se, p. ex., um grupo criminoso, estável, organizado estruturalmente e composto por funcionários públicos de vários escalões de uma autarquia que, com auxílio de particulares, praticam peculato e corrupção passiva, para beneficiarem-se mutuamente, lesando o patrimônio público297.

O poder de emitir ordens do autor mediato implica uma relação de verticalidade, ao contrário da coautoria, em que há horizontalidade no plano da realização típica. Pressupõem- se agentes do delito de escalões superiores dentro da organização, com poder sobre a atuação de agentes subalternos (funcionários públicos e particulares), que servem como executores imediatos do delito. Todavia, essa verticalidade não precisa corresponder à hierarquia da

297 Apesar disso, existem autores que questionam existência das organizações criminosas, por isso, Sheila Jorge Selim de Sales salienta: “Uma terceira causa porém, contribui, decisivamente, para a impunidade: cientificamente, não sabemos se entre nós, realmente existe a criminalidade organizada nos moldes em que esta é identificada em outros países do mundo – em especial aqueles que tomamos como modelos – e quais são suas reais características.” (SALES, Sheila Jorge Selim de. Escritos de direito penal. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 138). Não obstante, em outro espaço tivemos a oportunidade de defender que “o crime organizado, antes de um ente jurídico, é uma realidade contemporânea, uma nova realidade, que merece toda a atenção das autoridades e da dogmática penal, na busca pela efetividade da norma penal, compatibilizando-a com os direitos e garantias constitucionais dos acusados. Somente com essas cautelas o Direito Penal poderá cumprir seu papel de proteger os bens jurídicos mais importantes para a sociedade, hoje ameaçados principalmente pela delinquência organizada do que por qualquer outra forma de criminalidade.” (MENEGHIN, Guilherme de Sá. Crime organizado no século XXI: o funcionamento e a nova estrutura das organizações criminosas como um desafio ao Direito Penal. In: BRODT, Luís Augusto Sanzo; SIQUEIRA, Flávia (Orgs.). Limites ao poder

administração pública. O que se exige é um poder de comando dentro da organização criminosa, que pode corresponder à posição hierárquica administrativa.

Por outro lado, não deve existir, por parte do agente que emite ordens, um plano

comum e uma contribuição relevante na execução do ato, porquanto essas são características

da horizontalidade que existe na coautoria.

Concernente ao terceiro requisito, a fungibilidade, os executores imediatos devem ser cambiáveis, ou seja, facilmente trocáveis. Podem ser tanto funcionários subalternos, quanto particulares. A administração pública exige servidores que ingressam mediante o cumprimento de certas regras: concurso público, processo seletivo simplificado, nomeação para cargos de recrutamento amplo, eleição298 ou contratação temporária. Indaga-se: os executores imediatos podem ser servidores públicos de fato, isto é, pessoas que ingressam no serviço público sem cumprimento integral das regras, assumindo a função faticamente? De acordo com o raciocínio desenvolvido no capítulo 4, os servidores de fato também são funcionários públicos para efeitos penais e, portanto, na configuração planejada podem ser os executores imediatos.

Os executores imediatos devem possuir alta disposição para o ato, o que significa que os que concorrem diretamente para o fato típico – agentes públicos ou particulares –, precisam estar comprometidos com os delitos planejados pela organização criminosa, fazendo crer nos superiores um grau elevado de certeza no cometimento dos delitos (os chamados “procedimentos regulares” ou “estruturas automáticas”).

Portanto, na construção do tema-problema, exige-se a existência de uma organização criminosa, com os requisitos estipulados pela Lei n. 12.850, de 2012. Tal organização deve ser composta de quatro ou mais agentes, dentre funcionários públicos e particulares, ou somente funcionários públicos, estruturados verticalmente, ou seja, os agentes superiores com ascendência sobre os inferiores e, estes, agentes fungíveis, imbuídos de alta disposição para o ato. Essa organização criminosa deve se apossar de algum setor da administração pública direta ou indireta e ter a finalidade de cometer os crimes de peculato e corrupção passiva.

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