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4 CRIMES CONTRA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA: PECULATO E

5.6 Inovações jurisprudenciais

Alguns casos emblemáticos já foram analisados no capítulo 3, sobre a aplicação do domínio de organização, especialmente no campo dos crimes perpetrados em estados ditatoriais ou totalitários.

307 VÁZQUEZ, Manuel Abanto. Autoría y participación de los delitos de infracción del deber. Disponível em: <http://www.terragnijurista.com.ar/doctrina/vasquez.htm#_ftn8>. Acesso em: 17 jan. 2016.

Porém, nos últimos anos, a jurisprudência vem aplicando essa modalidade de domínio do fato no contexto da criminalidade econômica, surpreendendo a doutrina com a flexibilização dos requisitos delineados pelo criador da teoria.

Na Alemanha, o Bundesgerichtshof (BGH)309 vem admitindo a autoria mediata, por meio de aparatos organizados de poder, no contexto da criminalidade de empresa: o superior hierárquico ou órgão de direção empresarial, responde como autor mediato pelos atos dos subordinados, que realizam materialmente o delito. Bernd Schünemann comenta essa decisão, ressaltando que a corte afastou-se da tese de Roxin, na medida em que este exige um organismo dissociado do direito, enquanto as empresas são evidentemente subordinadas à lei:

Em sua nova jurisprudência sobre autoria mediata, o BGH deixou-se claramente guiar pela seguinte máxima: combinar o maior número possível de abordagens e restringir o mínimo possível para o futuro – por isso Rotsch descreveu tal jurisprudência como uma que, neste entremeio, afastou-se da construção dogmática de Roxin a favor de uma novamente nítida visão subjetivista. Com efeito, pode-se tentar quase extrapolar a ratio decidendi escondida na jurisprudência. No caso da utilização de um aparato organizado de poder, seja estatal, seja econômico, para afirmar a autoria mediata dos homens-de-trás, o BGH apoiou-se basicamente, com sua fórmula dos <<procedimentos regulares>>, na mera fungibilidade, ou seja, na fácil substituibilidade do homem-da-frente. E daí deduziu o domínio superior dos acontecimentos do homem-de-trás como base de sua autoria mediata: nos casos dos aparatos organizados de poder, resulta da fungibilidade do homem-da-frente que este até esteja apto a provocar a lesão do bem jurídico, mas não pode ele próprio impedi- la, porque se ele então recusasse, supostamente qualquer outro praticaria o fato em seu lugar. E este ponto de vista, na visão do BGH, deve fundamentar a autoria mediata, não só nos delitos estatais, mas também no âmbito das empresas privadas, dos membros de direção da empresa, porque o órgão de execução seria substituível de maneira semelhante aos casos do aparato organizado de poder.310

No Brasil, a teoria vem sendo abordada principalmente no Tribunal Regional Federal da 4ª Região, sob a rubrica de “domínio da organização”. Decerto, na esfera da sonegação fiscal, a referida corte vem reconhecendo o empreender responsável pela empresa como autor da sonegação, na medida em que possui o “domínio da empresa ou da organização”. Confira:

PENAL. SONEGAÇÃO FISCAL. RESPONSABILIDADE DO

ADMINISTRADOR. DOMÍNIO DA ORGANIZAÇÃO. DOSIMETRIA DAS PENAS. MONTANTE SONEGADO. CONSEQUÊNCIAS DO CRIME. MAJORANTE DO ARTIGO 12, I, DA LEI 8.137/90. REFORMATIO IN PEJUS. INOCORRÊNCIA. APELAÇÃO PARCIALMENTE PROVIDA. 1. Quem administra o estabelecimento é aquele que o conhece e tem responsabilidade por seus pagamentos e noção de tudo a ele pertinente. Mesmo que o responsável pelo empreendimento não seja o executor direto das fraudes fiscais, presume-se ser ele

309 Trata-se de uma corte equivalente ao Superior Tribunal de Justiça no Brasil.

310 SCHÜNEMANN, Bernd. Estudos de direito penal, direito processual penal e filosofia do direito. Coordenação de Luís Greco. Tradução de Adriano Teixeira, Alaor Leite, Ana Claudia Grossi, Danielle Campos, Heloísa Estellita e Luís Greco. São Paulo: Marcial Pons, 2013, p. 150.

quem a autorizou. Nenhum ato acontece em uma empresa sem a ciência de seu administrador. 2. Diante da insuficiência das categorias tradicionais de co-autor e

partícipe para a atribuição da responsabilidade penal individual, em vista do modelo organizacional que passou, na época moderna, a caracterizar a prática delitiva societária, construiu-se, doutrinariamente, o conceito de autor mediato, assim compreendido como sendo o agente que não tem, propriamente, o domínio do fato, mas sim o da organização, o que sobressai quando o superior hierárquico "sabe más sobre la peligrosidad para los bienes juridicos que su proprio subordinado" (DIEZ, Carlos Gómez-Jara. ¿Responsabilidade penal de los directivos

de empresa en virtud de su dominio de la organización? Algunas consideraciones críticas. In Revista Ibero-Americana de Ciências Penais. Porto Alegre: ESMP, 2005. n. 11, p. 13). [...]. (TRF4, ACR 0035146-81.2009.404.7100, Oitava Turma, Relator Paulo Afonso Brum Vaz, D.E. 10/01/2012), grifo nosso.311

Tais decisões abrem um caminho para superar o empecilho dos delitos de violação de dever e o requisito da dissociação do direito para aplicação do domínio de organização. Porém, ambas chocam-se frontalmente com as concepções estudadas, levando Roxin a rechaça-las por ampliarem demasiadamente a autoria.

La figura de la autoría mediata en virtud de aparatos organizados de poder como tal no es por lo tanto en modo alguno, como opina Herzberg, una “extensión (excesiva) de la autoría”. Sí lo es, sin embargo, efectivamente, cuando esta construcción se traslada sin más a la instigación de acciones delictivas por los superiores en las empresas y otras estructuras jerárquicas, como hace en medida creciente la jurisr. reciente. Esta evolución o desarrollo estaba ya contenida en BGHSt 40, 218 ss. Ciertamente hay que dar la razón a la Sala 5ª cuando dice (loc. cit., 237): “Una autoría mediata así entendida tendrá cabida no sólo en supuestos de abuso de poder, sino también en los casos de delito organizado de tipo mafioso”. A ello se ha de añadir que el dominio por (o de) organización tiene un amplio ámbito de aplicación también en el caso de organizaciones terroristas que tienen a su disposición numerosos ejecutores intercambiales. Pero cuando luego la resolución prosigue: “También se puede resolver así el problema de la responsabilidad en el funcionamiento de empresas mercantiles”, ya va demasiado lejos.312

Não obstante, o domínio de organização nos crimes praticados por meio de empresas continua presente na jurisprudência e, assim, é preciso verificar sua pertinência à hipótese aventada.

Examinando as decisões, é possível deduzir que os tribunais desconsideraram o requisito da dissociação ao direito e, ainda, flexibilizaram as ideias de procedimentos

regulares e de fungibilidade. A hipótese assinalada pela jurisprudência envolve os seguintes

aspectos: um órgão diretivo313 da empresa emite a ordem a um executor imediato – que concretamente sonega o tributo, coloca o produto perigoso no mercado ou polui o meio

311 BRASIL. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Apelante: Mario Cezar Pereira. Apelado: Ministério Público Federal. Relator: Paulo Afonso Brum Vaz. Jul. 30 nov. 2011. DE, 10 jan. 2012. Disponível em: <http://jurisprudencia.trf4.jus.br/pesquisa/resultado_pesquisa.php>. Acesso em: 30 abr. 2016.

312 ROXIN, Claus. Derecho penal parte general tomo II: especiales formas de aparición del delito, p. 121. 313 Diz-se órgão diretivo porque pode ser composto por um ou mais indivíduos, no ápice da organização empresarial, com o poder de emitir ordens.

ambiente; o executor realiza a conduta típica; subentende-se que o executor é fungível na estrutura empresarial que, por sua vez, não precisa ser afastada da ordem jurídica. Nesse contexto, os magistrados reconheceram a autoria mediata do órgão diretivo, enquanto para Roxin haveria indução do órgão direto ao subordinado, haja vista a ausência de fungibilidade e desvinculação ao direito por parte da empresa:

Pues en ese caso falta por regla general la intercambiabilidad de los ejecutores, tal y como se da en las organizaciones que se han desvinculado (o desligado o separado) de Derecho respecto de los tipos penales realizados por ellas (p. ej. de los tipos de homicidio [en sentido amplio]). Tal desvinculación del Derecho existe en los crímenes de Estado, en los delitos terroristas y en los casos de criminalidad organizada. Pero, si p. ej. en una empresa que participa en el tráfico económico en el marco del ordenamiento jurídico un jefe de sección incita a un empleado a cometer una falsificación de documento, en caso de que se lleve a cabo sólo es inductor del hecho cometido como autor por el empleado. Pues en una organización que opera sobre la base del Derecho debe esperarse que no se obedezcan instrucciones u órdenes antijurídicas, como prescriben expresamente p. ej. las leyes de funcionarios.314

Cotejando-se a refutação de Roxin e a tese jurisprudencial, pode-se concluir a serem inconciliáveis as duas construções, independentemente do recurso aos delitos de dever. Dessa maneira, pode-se encarar o domínio de organização empresarial, concebido jurisprudencialmente, de três maneiras: (a) um tertium genus, desmembrado do tradicional domínio de organização, com características próprias que o validam e distinguem da vertente criada por Roxin; (b) uma reformulação do domínio de organização, de modo que a fungibilidade pode ser flexibilizada e a organização não precisa estar desvinculada do direito; (c) uma deformação jurídica impraticável, que deverá ser, futuramente, descartada.

Não se pode admitir a concepção jurisprudencial como uma reformulação de Roxin, até mesmo porque não foi realizada cientificamente. Por outro lado, o descarte da jurisprudência seria temerário nesse ponto, por já ter produzido – é forçoso reconhecer – interessantes debates.

Logo, somente como tertium genus, o domínio de organização empresarial pode servir para solucionar o dilema e, assim, é a primeira hipótese viável para resolver a questão: a partir dessa construção jurisprudencial pode-se reconhecer, em tese, um domínio de organização nos crimes de peculato e corrupção passiva, desde que presentes a existência de uma organização, que não precisa estar desligada da ordem jurídica, composta por funcionários públicos ou funcionários e particulares, com um ou mais “órgãos diretivos”, que emitem ordens nessa estrutura a executores mediatos, medianamente substituíveis, que

executam os delitos, apropriando, desviando ou subtraindo bens públicos ou solicitando, recebendo ou aceitando a promessa de vantagens indevidas, em troca de efetivos ou potenciais atos de ofício, em conformidade ou não com as regras jurídicas.

Todavia, a viabilidade dessa hipótese precisa passar ainda por filtros mais criteriosos, comparando-se com outras possibilidades de concurso de pessoas.

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