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4 CRIMES CONTRA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA: PECULATO E

5.5 Possibilidades dogmáticas

A doutrina vem se debruçando sobre essas importantes indagações, literalmente testando a teoria de Roxin, a fim de conferir um caráter universal ao domínio do fato.

Para compreender a complexidade do problema, as teorias tentam responder às seguintes indagações: A classe dos delitos especiais justifica-se na ciência jurídico-penal? Aceitando-se essa classe, intraneus e extraneus que colaboram em um delito especial respondem pelo mesmo tipo? Nesse caso, a que título – autoria, coautoria ou participação? E, para finalizar, é possível autoria mediata em delito especial e em que medida (instrumento

doloso não qualificado)?

Assim, vários autores intentaram aplicar o domínio do fato também aos delitos especiais, porém com distintos fundamentos e consequências. Parte-se do reconhecimento dessa classe de delitos e, então, distinguem diferentes efeitos na sua aplicação prática.

Pela denominada ruptura do título de imputação, tanto intraneus quanto extraneus, respondem de acordo com o domínio sobre o fato típico cometido, somando-se às qualificações pessoais do agente ativo. Se “A”, funcionário público, se apodera de bens públicos com a cooperação de “B”, então, “A” será autor de peculato e “B” partícipe de furto; se “A” e “B” realizam conjuntamente o tipo, tendo ambos o domínio do fato, ambos serão autores, porém “A” de peculato e “B” de furto e; se “A” auxilia “B” na prática da subtração de bens públicos, “A” será partícipe de peculato e “B” autor de furto303.

Nilo Batista aceita a ruptura de forma atenuada, somente nos delitos especiais

impuros. Segundo ele, “os delitos especiais se subdividem em delitos especiais puros (echte Sonderdelikte) e delitos especiais impuros (unechte Sonderdelikte), também conhecidos por

302 Por dispersão de Claus Roxin entende-se a cisão dos critérios para identificação da autoria e da participação em sentido estrito, segundo trata-se de delitos de ação/domínio ou delitos especiais/de dever.

303 VÁZQUEZ, Manuel Abanto. Autoría y participación de los delitos de infracción del deber. Disponível em: <http://www.terragnijurista.com.ar/doctrina/vasquez.htm#_ftn8>. Acesso em: 17 jan. 2016.

próprios ou impróprios”304. Desse modo, a qualificação do sujeito ativo é “essencial

(fundante) para o ilícito, de sorte que na sua ausência o fato seria atípico”, enquanto nos delitos especiais impuros a qualificação do sujeito traduz uma “quantificação (a maior ou a menor) de um ilícito comum ou geral, que seria praticável por qualquer pessoa. Assim, por exemplo, o art. 312 CP – peculato, com relação ao art. 168 CP – apropriação indébita”. É o mesmo raciocínio dos crimes funcionais próprios e impróprios, descritos no capítulo antecedente.

Nessa ordem, Batista ressalta que:

Convém recordar que o extraneus não pode ser autor de um crime especial, e convém observar que a comunicabilidade opera num fluxo do autor para o

partícipe, e não ao contrário. Assim equacionado o assunto, não é difícil propor as

soluções. Nos crimes especiais, autor idôneo é apenas aquele vinculado ao dever. Se o não qualificado conhece a idoneidade do autor, responderá: 1. nos delitos especiais puros, como partícipe, mesmo se interveio na execução do delito (não supre o requisito típico da autoria); 2. Nos delitos especiais impuros, como partícipe, se sua conduta é de instigação ou cumplicidade, ou como autor do correspondente delito geral se interveio na execução (a comunicabilidade da circunstância pessoal cede diante de uma autoria direta fundada no domínio da ação).305

Essas teorias tem seu valor, mas incorrem em sérios problemas práticos, infringem a acessoriedade, olvidam a comunicabilidade das circunstâncias objetivas (artigo 30 do Código Penal) e desconsideram os requisitos do concurso de pessoas.

Aproveitando-se o que foi estudado no capítulo 2, o concurso de pessoas pressupõe unidade de fato, a comunicabilidade e acessoriedade na conduta dos agentes. O fato criminoso é um só e o tipo deve ser compartilhado por todos, salvo as exceções pluralísticas. A ação ou omissão do funcionário público é essencial para a realização do tipo do peculato e, assim, jamais poderia figurar como mero cúmplice, ainda que haja de maneira auxiliar. Ademais, seria, na aplicação da tese extremada de ruptura, um cúmplice não de um peculato, mas de um furto como fato principal, o que ofende a lógica-jurídica. A incorreção desse raciocínio é evidente, por violar a acessoridade característica da participação e suprimir a comunicabilidade das circunstâncias objetivas306.

304 BATISTA, Nilo. Concurso de agentes, p. 96. 305 BATISTA, Nilo. Concurso de agentes, p. 170-171.

306 Anote-se que a ruptura somente pode ocorrer se o legislador prescrever expressamente, como ocorre nos crimes de corrupção ativa e passiva, ou seja, nas chamadas exceções dualistas ou pluralistas à teoria monista. Assim, em regra, todos os agentes que concorrem para um fato respondem pelo mesmo delito, sejam como autores, sejam como partícipes, ressalvadas hipóteses de disposição em contrário. Na corrupção passiva (artigo 317 do Código Penal), em tese, o corruptor (extraneus) é um partícipe do delito cometido funcionário público (intraneus), mas por estipulação legal específica, fica adstrito às sanções o crime de corrupção ativa (artigo 333 do Código Penal). Conferir o capítulo 2.

Pela chamada da unidade do título de imputação, haveria um único crime para ambos – intraneus e extraneus –, porém o delito dependeria da verificação fática do agente que possui o domínio do fato. Nesse caso, aplica-se estritamente o princípio da gravitação jurídica, segundo o qual acessório segue o principal: na apropriação, desvio ou furto de bens públicos, se o funcionário público detiver o domínio do fato, responderá como autor de peculato e o particular como partícipe do mesmo peculato; se o particular (extraneus) detiver o domínio do fato, será autor de furto e o funcionário participe do mesmo furto307.

Essa ideia, porém, não explica um paradoxo. O funcionário público que colabora no furto de bens do erário com o particular, ainda que não seja o executor imediato, descumpre, antes de tudo, o dever que assumiu de lealdade ao órgão ao qual se vincula. Considerá-lo mero cúmplice de um furto é inaceitável, já que a sanção penal é sensivelmente inferior.

O domínio social ou psicológico-normativo do fato, advogado por Gallas e Jescheck, tenta superar tais empecilhos, reinterpretando o domínio do fato nos crimes de violação de dever: “el dominio del hecho há de concebirse en estos casos normativamente. El delito no puede cometerse en absoluto por el sujeto que actúa como medio (en el echo) sin la colaboración del sujeto de atrás”, deduzindo que a influência jurídicamente dominante do

intraneus que age por trás é decisiva para a autoria308. Todavia, o argumento é circular e recai sobre a teoria dos delitos de infração de dever, afinal, somente aquele que tem o “domínio normativo do fato” que, “coincidentemente” é o intraneus, pode ser autor. Então, não faz sentido trocar os fatores se o produto é o mesmo.

Sem embargo, para Roxin todas as tentativas de compatibilizar o domínio do fato com os delitos de dever fracassaram. Daí persiste sustentando a distinção entre crimes de ação e crimes de dever, bem como as diferentes formas de se qualificar autoria e participação em cada um desses tipos de delitos: no primeiro caso, o domínio do fato e, no segundo, a infração do dever.

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