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Concepção unitária (extensiva ou da equiparação) e concepção diferenciadora (ou

O verdadeiro problema que a justiça criminal e a dogmática penal sempre enfrentaram ao longo dos anos foi a difícil eleição entre uma concepção unitária, extensiva ou de equiparação entre todas as pessoas que colaboram para a realização do tipo e a concepção restritiva ou diferenciadora, que visa um critério para distinguir distintas contribuições à execução da infração penal. Esse pensamento é endossado por Edgardo Alberto Donna:

El problema fundamental que se apresenta en materia de autoría es determinar, frente a un hecho delictivo, quién há sido su autor. Cuando hablamos de autor nos referimos al sujeto a quien se le puede imputar el hecho como suyo, aquél que lo realiza y del que puede decirse “esse hecho lo pertence”.50

48 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. v. 1., p. 380.

49 BATISTA, Nilo. Concurso de agentes. 4ª edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 30-31.

50 DONNA, Edgardo Alberto. La autoria y la participación criminal. Buenos Aires: Rubinzal-Culzone Editores, 1998, p. 9.

Torna-se cogente fazer um escorço histórico-dogmático para compreender como o alcance dessa questão converteu-se em um dos capítulos mais difíceis da ciência penal.

2.8.1 Concepção unitária, extensiva, igualitária, da equiparação ou cumplicidade-causa

A teoria ou concepção unitária, extensiva ou da equiparação define como autores todos os indivíduos que contribuem para a concretização dos elementos do tipo, fixando-lhes a mesma sanctio iuris. Em tal sistema, não há distinção entre autores e partícipes (ou cúmplices) e todos recebem, no plano abstrato, a mesma pena, relegando-se à fase de dosimetria a individualização sancionatória.

Segundo Nilo Batista, a causalidade é a pedra de toque do sistema unitário e extensivo de autor51. Por meio da equivalência dos antecedentes causais, todas as contribuições reputadas como condições para a realização do tipo são identicamente qualificadas e, assim, todas devem ser equiparadas no plano da aplicação da lei penal.

Nelson Hungria, defensor dessa teoria, explica a relação entre a corrente causalista do direito penal e a teoria unitária, ressaltando que o caráter uno do resultado como efeito da equiparação das condutas antecedentes, ainda que praticadas por diferentes sujeitos:

A solução que se impõe, remetendo-se para o museu do direito penal as teorias da acessoriedade e da autoria mediata, é o repúdio à diferenciação apriorística entre os partícipes, pelo reconhecimento da singela verdade de que a participação, em qualquer caso, é concausação do resultado antijurídico, não havendo distinguir entre causa e concausa, entre causa e condição, entre causa imediata e causa mediata, entre causa principal e causa secundária. O resultado é uno e indivisível, e como todos os seus antecedentes causais, considerados in concreto, se equivalem, segue-se logicamente que é atribuível, na sua totalidade, a cada um dos que cooperam para sua produção. Assim, é de todo irrelevante indagar se o executor é ou não é punível: o partícipe é sempre um co-autor e responde integralmente pelo resultado, desde que, consciente e voluntariamente, contribuiu para êle (participação em crime doloso) ou, pelo menos, contribuiu para a ação comum de que era previsível derivasse tal resultado (participação em crime culposo). Esta é a teoria chamada da

cumplicidade-causa, monística ou igualitária adotada pelo nosso Código, a exemplo

do Código italiano.52

Portanto, a teoria causal, que não faz distinção entre os antecedentes causais à realização do tipo, resulta na equiparação das contribuições delitivas de autores e partícipes e, como afirmou Hungria, “todo partícipe é sempre um co-autor e responde integralmente pelo

51 “A concepção extensiva de autor (extensier Täterbegriff), que Welzel chamou de fruto tardio da teoria da ação causal (späte Frucht der kausalen Handlungslehre), procura relacionar a autoria com a causação da realização típica.” (BATISTA, Nilo. Concurso de agentes. 4ª edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 32).

52 HUNGRIA, Nelson. Comentários ao código penal. Volume 1. Tomo 2º. 3ª ed. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1955, p. 399.

resultado”, permanecendo como único limite ao regressus ad infinitum o elemento subjetivo. Nessa concepção, se “A” empresta uma moto a “B”, ciente de que este cometerá um homicídio usando do veículo para surpreender a vítima e depois evadir-se, responderá como coautor do homicídio e não como mero partícipe ou cúmplice. Não estando “A” consciente da intenção de “B”, ficará impune pela ausência de voluntariedade em sua conduta.

Dessa maneira, a conveniência do sistema unitário é tão somente a simplificação na aplicação das normas penais, visto que os aplicadores do direito não precisam fazer quaisquer elucubrações acerca da classificação de uma conduta que concorreu para o delito, tratando todos os intervenientes no evento delitivo como autores ou coautores, independentemente do grau de participação.

Eis a abalizada opinião doutrinária:

A verdadeira vantagem do sistema unitário encontra-se não no rasteiro plano dos interesses punitivistas, tampouco no plano sublime dos grandes princípios do direito penal material, e sim no nível intermédio das considerações pragmáticas. O sistema unitário torna dispensável todo o esforço analítico e dogmático de distinção entre as formas de autoria e participação. Os diferentes graus de contribuição são relegados ao plano individualizador da determinação judicial da pena. A comete homicídio a pedido de B, que lhe oferece R$ 5.000,00; C empresta a arma para A; D aguarda a consumação do homicídio na porta da casa da vítima, assegurando que ninguém ingresse na residência: todos são, para o conceito unitário, autores do homicídio. Esse sistema simplifica, assim, sobremaneira a aplicação do direito.53

A teoria unitária triunfou no início do século XX, assumida expressamente na Parte Geral do Código Penal de 1940, que dispunha no artigo 25: “Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas”. Não havia a previsão de causa de diminuição de pena para “participação de menor importância”, introduzida com a reforma da parte geral de 1984. O estatuto penal inspirou-se, como notoriamente sabido, no Código Rocco, o Código Penal italiano de 1930, que também previa: “Articolo 110. Quando più persone concorrono nel medesimo reato, ciascuna di esse soggiace alla pena per questo stabilita, salve le disposizioni degli articoli seguenti.”54

A teoria unitária possui diversas vantagens, mostrando-se compatível com teoria da equivalência dos antecedentes causais, facilitando a aplicação da lei penal e conformando-se ao princípio da autorresponsabilidade, já que não acolhe a autoria mediata. A própria exposição de motivos do projeto do Código Penal de 1969 dispunha que a adoção do aludido

53 GRECO, Luís; LEITE, Alaor; TEIXEIRA, Adriano; ASSIS, Augusto. Autoria como domínio do fato: estudos introdutórios sobre o concurso de pessoas no direito penal brasileiro. São Paulo: Marcial Pons, 2014, p. 175. 54 ITÁLIA. Codice penale italiano, Gazzetta Ufficiale 26 ottobre 1930, n. 251, approvato con R.D. 19 ottobre 1930 n.1398, in vigore dal 1 luglio 1931. Disponível em: <www.davite.it/leggiper sito/Codici/Codice

critério permitiria “maior repressão”. Porém, as aparentes vantagens dessa teoria foram densamente questionadas, como se verá a seguir.

2.8.2 Concepção restritiva ou diferenciadora

A corrente restritiva ou diferenciadora distingue prima facie autores (coautores) e partícipes (cúmplices), cominando aos primeiros a sanção penal integral e aos segundos uma sanção reduzida.

Malgrado os diversos critérios elaborados pela ciência jurídica para permitir essa caracterização, todas partem da mesma raiz, a de que, no concurso de pessoas, em uma infração penal, podem existir diferentes graus de contribuição, sendo comum a coexistência de condutas centrais na realização típica (autor), merecedoras de punição total, e condutas secundárias (partícipes), sujeitas a sanções menores, em virtude do princípio da proporcionalidade.

Luís Greco e Alaor Leite anotam que:

Ponto de partida é a ideia, situada num plano mais abstrato, de que o autor é a figura

central do acontecer típico (Zentralgestalt des tatbestandsmäBigen Geschehens). O

conceito de autor é primário e possui significado central no injusto típico, no sentido de que as formas de participação (a instigação e a cumplicidade), são causas de extensão da punibilidade, que só entram em cena quando o agente não é autor. O partícipe é, da perspectiva do tipo penal, quem contribui para um fato típico em caráter meramente secundário, é a figura marginal, lateral do acontecer típico, o que se extrai ante a ausência de algum dos elementos que determinam positivamente a autoria do fato.55

O que distingue as diversas correntes a respeito da delimitação entre autoria e participação é o critério utilizado para essa finalidade, que variou no espaço e no tempo, até culminar no domínio do fato e seu gradual desenvolvimento, conforme se verá nos itens seguintes e no próximo capítulo.

Serão examinados os critérios ou teorias56 que se mostraram mais relevantes historicamente, de acordo com a sistematização proposta por Claus Roxin57:

a) Teoria ou critério objetivo-formal;

55 GRECO, Luís; LEITE, Alaor. O que é e o que não é a teoria do domínio do fato. In: GRECO, Luís; LEITE, Alaor; TEIXEIRA, Adriano; ASSIS, Augusto. Autoria como domínio do fato: estudos introdutórios sobre o concurso de pessoas no direito penal brasileiro. São Paulo: Marcial Pons, 2014, p. 24-25.

56 A doutrina usa os termos teoria e critério sinonimamente para designar as correntes do conceito restrito de autor. Roxin prefere a expressão “teorias” e Nilo Batista adota o termo “critérios”.

57 ROXIN, Claus. Autoría e dominio del hecho en derecho penal. 7ª edición. Traducción por Joaquín Cuello Contreras y José Luis Serrano González de Murillo. Madrid: Marcial Pons, 2000, p. 53.

b) Teoria ou critério objetivo-material; c) Teoria ou critério subjetivo;

d) Teorias ou critérios mistos;

e) Teoria ou critério do domínio do fato.

De qualquer maneira, é preciso identificar as razões do triunfo das teorias diferenciadoras ou restritivas, a partir das críticas da teoria unitária, dando-se a propulsão necessária ao progresso da pesquisa.

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