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Desenvolvimento histórico, filosófico e dogmático do domínio da vontade por meio

Em 11 de maio de 1960, em um subúrbio de Buenos Aires, três comandos do Serviço Secreto de Israel (Mossad) capturaram Adolf Eichmann, ex-integrante da Schutzstaffel (SS), a elite do Partido Nazista, conduzindo-o à Beth Hamishpath, a Casa da Justiça de Jerusalém, onde foi julgado por cooperar diretamente com o regime que promoveu o genocídio de milhões de judeus e outras minorias durante a Segunda Guerra Mundial126.

Segundo a acusação chefiada pelo promotor público Gideon Hausner, Eichmann coordenou a logística necessária às sucessivas soluções implantadas pelo Reich para lidar com a “questão judaica”: expulsão, concentração e solução final, ou seja, o extermínio (Endlösung)127.

No final, a corte presidida pelo magistrado Moshe Landau condenou Eichmann como um dos autores dos atos de genocídio e a sentença foi confirmada pela Corte de Apelação em

125 ROXIN, Claus. Novos estudos de direito penal. 1ª ed. Organização Alaor Leite; tradução de Luís Greco [et alii]. São Paulo: Marcial Pons, 2014, p. 83.

126 ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. Tradução de José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999 (14ª Reimpressão, 2013), p. 261-262.

29 de maio de 1962, ratificando-se a pena de morte. Dois dias após o julgamento do recurso e David Ben-Guron rejeitar os pedidos de clemência, Eichmann foi enforcado em Jerusalém128. Desde os julgamentos de Nuremberg, não havia tão estridente alvoroço pelo julgamento de um nazista e, tanto a biografia de Eichmann quanto a efeméride que se iniciaria em Israel, chamaram a atenção de todo o mundo, especialmente de dois importantes intelectuais alemães: Hannah Arendt e Claus Roxin.

No livro “Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal”, a filósofa relatou, pormenorizadamente, todos os aspectos do julgamento, o passado do acusado, a personalidade de Eichmann, as crueldades cometidas contra os judeus, os principais personagens do processo, os termos da acusação, as alegações da defesa, a sentença proferida pelos juízes, o julgamento do recurso e a repercussão na comunidade internacional. Em uma passagem memorável, Arendt apresentou nitidamente os fundamentos da teoria do domínio de organização extraídos do julgamento:

Eichmann, há que lembrar-se, insistiu veementemente que era culpado apenas de “ajudar e instigar” a realização dos crimes de que era acusado, que ele próprio nunca havia cometido nenhum ato aberto. O julgamento, para grande alívio de todos, reconhecia de certa forma que a acusação não tinha conseguido provar que ele estava errado nesse ponto. Era um ponto importante; tocava na própria essência desse crime, que não era um crime comum, e a própria natureza desse criminoso, que não era um criminoso comum; implicitamente, reconhecia também o estranho fato de que nos campos de extermínio eram geralmente os internos e as vítimas que tinham efetivamente manejado “o instrumento fatal com [suas] próprias mãos”. Aquilo que o julgamento tinha a dizer sobre esse ponto era mais do que correto, era verdade: “Descrevendo suas atividades em termos da Seção 23 de nosso Decreto de Código Criminal, devemos dizer que eram principalmente as de uma pessoa servindo com aconselhamento ou assistência a outros e de alguém que capacitava ou ajudava outros no ato [criminoso]”. Mas “em tal enorme e complexo crime como este que estamos agora considerando, no qual muitas pessoas participaram, em vários níveis e em várias espécies de atividade – os planejadores, os organizadores, e aqueles que executavam os atos, segundo seus vários níveis –, não há muito propósito em usar os conceitos normais de aconselhar e assistir a perpetração de um crime. Pois esses crimes foram cometidos em massa, não só em relação às vítimas, mas também no que diz respeito ao número daqueles que perpetraram o crime, e a medida em que qualquer dos muitos criminosos estava próximo ou distante do efetivo assassinato da vítima nada significa no que tange à medida de sua responsabilidade. Ao contrário, no geral, o grau de responsabilidade aumenta quanto mais longe nos colocamos doo homem que maneja o instrumento fatal com suas próprias mãos”.129

Dessa maneira, com notável perspicácia, Arendt percebeu como o sistema jurídico vigente era insuficiente para lidar com o crime cometido pelos nazistas e concluiu:

128 ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal, p. 271. 129 ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal, p. 268.

Esse é só um exemplo entre muitos para demonstrar a inadequação do sistema legal dominante e dos conceitos jurídicos em uso para lidar com os fatos de massacres administrativos organizados pelo aparelho de Estado. Se olharmos mais de perto a questão veremos sem muita dificuldade que os juízes de todos esses julgamentos realmente sentenciaram exclusivamente com base nos atos monstruosos. Em outras palavras, julgaram com liberdade, por assim dizer, e não se apoiaram realmente nos padrões e nos precedentes legais com que mais ou menos convicentemente procuram justificar suas decisões.130

Decerto, Eichmann, assim como qualquer comandante em regimes totalitários, integrou uma máquina estatal monstruosa, que funcionava de forma automática e massiva, compondo-se de inúmeros integrante e que resultou no genocídio de proporções até então inimagináveis.

Os dispositivos legais erguidos pela dogmática penal resultavam em uma contradição insustentável, do ponto de vista dos direitos humanos, da liberdade, da justiça, enfim, da dignidade humana. Pois usar essas regras tradicionais significava, como alegou o próprio Eichmann e seu defensor Servatius, considera-lo mero “cúmplice” (auxiliar, partícipe ou instigador) dos delitos. Afinal, Eichmann e os demais líderes não executaram pessoalmente os homicídios, nem teriam, segundo eles, controle sobre a ação dos executores imediatos. A crença na impunidade, portanto, tinha fundamento e, julgamentos como os de Nuremberg e de Jerusalém, contribuíram para sublevar as teorias existentes, seguindo a tendência da comunidade internacional de não aceitar graves violações aos direitos humanos.

Roxin teve a mesma intuição e coube a ele traduzir a inquietação de Hannah Arendt para os preceitos jurídicos, formulando o domínio da vontade por meio de aparatos

organizados de poder, na sua monumental monografia publicada em 1963, em que professa

ter se inspirado no aludido julgamento:

El proceso Eichmann, en el que se ha revelado con especial cuidado una imbricación (en los demás casos difícil de dilucidar) de las partes del hecho individuales resulta muy apropiado para hacer ver este tipo de dominio de la organización de la mano de un ejemplo concreto. Además, el Tribunal y la defensa mantuvieron aquí distintas posturas en la calificación de las cuestiones de autoría y participación. El análisis más preciso de las razones esgrimidas pone de manifiesto, sin embargo, que ambos captan y describen acertadamente determinados rasgos característicos del dominio de la organización en sus diferencias con respecto a los casos comunes de cooperación pero que no son capaces de explicar dogmáticamente estos fenómenos de modo pleno.131

Em seguida, magistralmente, o catedrático alemão deduz os elementos presentes no julgamento que o levaram à edificação do domínio de organização:

130 ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal, p. 317. 131 ROXIN, Claus. Autoría e dominio del hecho en derecho penal, p. 273.

Por otra parte, Eichmann no era sólo ejecutor, sino que también impartía órdenes a subordinados, siéndole, por tanto, de aplicación los criterios que convierten a sus sujetos de detrás en autores mediatos. Este aspecto del caso tuvo presente el Tribunal regional de Jerusalén al decir que <<la proximidad o lejanía de uno o de otro, de entre estos muchos delincuentes, al que mató realmente a la víctima, no puede influir en absoluto en el alcance de la responsabilidad. La medida de responsabilidad más bien aumenta cuanto más alejado se esté de aquel que con sus manos hace funcionar el arma asesina y más se acerque uno a los puestos superiores de la cadena de mando, a los “inductores”, en la nomenclatura de nuestro “legislador”. El Tribunal, que subraya expresamente que hay que “considerar al inculpado, personalmente, en todo caso como autor de la acción punible”, advierte con toda razón que <<en estos crímenes de proporciones gigantescas y múltiples ramificaciones…, en los que ha participado muchas personas en distintos puestos de la escala de mando (planificadores, organizadores y órganos ejecutores de distinto rango) no es adecuado recurrir a aplicar los conceptos comunes del inductor y del cómplice>>. Los jueces aluden a la especial dificultad de “definir, en términos técnicos, quién ha auxiliado a quién”, y para estimar autoría invoca en definitiva el carácter de estos delitos de “crímenes en masa”, que excluye la aplicación de las categorías normales de la participación.132

Véase cómo se caracterizan aquí con toda claridad los elementos materiales del dominio de la organización: mientras normalmente ocurre que un interviniente, cuanto más alejado está de la víctima y de la acción típica directa, más queda relegado a la zona periférica del suceso y excluido del dominio del hecho, en estos casos ocurre, a la inversa, que la pérdida de proximidad al hecho se compensa por la medida de dominio organizativo, que va aumentando según se asciende en la escala jerárquica del aparato. Que esta diferencia estructural de los sujetos de detrás con respecto a los ejecutores ya no queda comprendida en la inducción (como sería el caso fuera de las específicas condiciones de tales aparatos) lo ha subrayado el Tribunal con buen criterio.133

A partir dessa análise, Roxin cuida de estabelecer os requisitos para o domínio da vontade por meio de aparatos organizados de poder.

Decerto, verificou-se que existem estruturas de poder, verdadeiras maquinarias de atrocidades, que constituem instrumentos para o cometimento de crimes em massa. Os líderes dessas organizações, embora não realizem a conduta típica e, na maioria das vezes, nem conheçam pessoalmente os executores imediatos, possuem o poder de direção, detendo substancial parcela de poder sobre a marcha dessa forjaria.

Assim, as tradicionais categorias de autoria, coautoria e participação, não se adequam a essa estrutura delituosa, já que o poder dos agentes aumenta à medida que estão mais distantes dos atos executivos, consoante salientou Arendt. Daí se deduz que esses chefes são autores mediatos dos delitos cometidos pelos executores imediatos, na medida em que põem a estrutura criminosa para atuar de forma automática, com instruções para realizar as condutas típicas de acordo com os padrões por eles fixados.

132 ROXIN, Claus. Autoría e dominio del hecho en derecho penal, p. 274. 133 ROXIN, Claus. Autoría e dominio del hecho en derecho penal, p. 274-275.

Desse exame, Roxin colige os quatro requisitos essenciais da autoria mediata decorrente do domínio da vontade por meio de aparatos organizados de poder134:

a) Organizações à margem da ordem legal; b) Poder de emitir ordens do autor mediato; c) Fungibilidade dos executores imediatos;

d) Alta disposição do autor imediato para executar o ato135.

Na concepção de Roxin, a autoria mediata nessas condições somente se aplica a

organizações que estão à margem da legalidade, ou seja, estruturas dissociadas do Estado de

Direito. Em regra, existem dois tipos de entes dessa natureza: a) estados totalitários ou ditatoriais e; b) organizações criminosas ou mafiosas. Com isso, a princípio, exclui-se a aplicação da teoria na criminalidade econômica, empresarial e funcional cometida por meio de entes coletivos diversos, como sociedades empresárias e partidos políticos136.

O segundo requisito é o poder de emitir ordens, atribuído aos autores mediatos. Não é necessário que o agente esteja no topo da organização, mas sim que ele componha, dentro da hierarquia organizacional, uma posição de comando, ainda que submetido a um chefe. Em uma estrutura piramidal hierárquica, é comum a distribuição de funções e tarefas entre vários agentes, mas é possível comprovar quais detém o poder de comando, que geralmente não se concentra em uma só pessoa. Não se trata, como ocorre na coautoria, de um visão horizontal, uma divisão de tarefas entre sujeitos que estão no mesmo plano, mas sim de uma decisão

vertical, em que os superiores detém parcela do poder de mando dentro da organização137. A fungibilidade dos executores imediatos significa que os indivíduos que realizam o fato típico são cambiáveis, naturalmente alocados e deslocados no decorrer do funcionamento da organização. Isso configura o caráter autômato da maquinaria de poder, visto que, na desobediência de um agente, outro é facilmente colocado no lugar do resistente, tornando quase certa, ao menos, a tentativa de execução do delito, independentemente da individualização prévia do executor138.

Concernente à alta disposição para o delito reconhece-se que os executores imediatos devem estar adrede instalados física e psiquicamente para os atos delituosos, fazendo crer na

134 Cf. ROXIN, Claus. Autoría e dominio del hecho en derecho penal, p. 269-280.

135 Nota-se que originalmente Roxin não havia incluído esse quarto requisito – alta disposição para o ato por parte do executor imediato –, mas, como se verá a seguir, em estudos posteriores, introduziu mais esse pressuposto.

136 Cf. ROXIN, Claus. Autoría e dominio del hecho en derecho penal, p. 276-278. 137 Cf. ROXIN, Claus. Autoría e dominio del hecho en derecho penal, p. 270-272. 138 Cf. ROXIN, Claus. Autoría e dominio del hecho en derecho penal, p. 272-273.

ordem estrutural desses delitos de massa que as ordens serão cumpridas. Apesar da discussão doutrinária sobre esse requisito, Roxin persevera na sua imprescindibilidade:

São várias e diversificadas as razões que me fizeram me manifestar em favor da exigência de uma disposição consideravelmente alta para o fato por parte do executor imediato no interior de uma organização delitiva. A própria organização hierárquica, por si só, é capaz de promover uma tendência de adaptação. Da mesma forma, é de se perceber que o poder de emitir ordens que possui o homem de trás, se não configura ainda uma coação, nos aproxima de um passo a mais de uma situação de coação: o solícito executor teme por vezes que, em caso de recua, perca sua posição, ganhe desprezo dos colegas ou sofra quaisquer outros prejuízos para o fato. Além disso, a dissociação do direito do aparato pode levar a disposição para o fato na medida em que o executor imediato se renda às suas ambições profissionais, da necessidade de ter sucesso, de suas obsessões ideológicas e mesmo de motivações sádicas ou criminosas, na suposição de que não vai ser chamada a responder penalmente. Por fim, mesmo a fungibilidade dos indivíduos pode conduzir a uma disposição para o fato, já que alguém que, por si só, não cometeria o fato acaba participando, já que <<caso eu não faça, alguém o fará de qualquer forma>>139.

No caso da disposição essencialmente alta para o fato trata-se de fenômeno que, se de fato é influenciado pelos outros três <<pilares>> do domínio da organização – poder de emitir ordens, dissociação do Direito e fungibilidade –, acaba fortalecendo de qualquer forma a afirmação de um domínio do fato por parte do homem de trás. Afinal, o domínio do homem de trás depende do grau de certeza que ele possui em relação à efetiva concretização de sua ordem. Essa concretização efetiva aumenta de modo sensível quando ele pode contar com uma disposição consideravelmente alta para o fato por parte dos executores imediatos em função de condições ligadas à organização140.

Esses são os parâmetros gerais da teoria, na forma concebida por Roxin. Presentes esses pressupostos, é possível existir autoria mediata através do domínio da vontade por meio de aparatos organizados de poder. Em síntese, um agente, hierarquicamente superior, em uma

estrutura dissociada do direito, emite ordens criminosas a um executor imediato, fungível, com alta disposição para o fato, fazendo com que o emissor seja autor mediato do fato e, dessa maneira, ambos respondem pelo delito cometido.

3.11 Repercussão jurisprudencial da teoria do domínio da vontade por meio de

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