O Projeto de Lei do Sendo n. 236, de 2012, que pretende instituir o novo Código Penal brasileiro, regulamentou de forma distinta a autoria e participação. Aduz o relator que, lastreando-se no funcionalismo penal, cunhou um “conceito unitário funcional”.
Essa expressão – “conceito unitário funcional” –, por si só, demonstra a incapacidade do legislador na compreensão do funcionalismo penal e da teoria do domínio do fato. Decerto, o funcionalismo prega a distinção entre autoria e participação e, contudo, o projeto agregou “unitário” ao “funcional”, tornando enigmática a intenção dos parlamentares.
Vale conferir os artigos 36 a 38 do projeto, que versam sobre o concurso de pessoas151:
Concurso de pessoas
Art. 36. Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade.
150 GRECO, Luís; LEITE, Alaor; TEIXEIRA, Adriano; ASSIS, Augusto. Autoria como domínio do fato: estudos introdutórios sobre o concurso de pessoas no direito penal brasileiro, p. 80.
151 BRASIL. Projeto de Lei do Senado – PLS n. 236, de 2012. Novo Código Penal. Disponível em: < http://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/106404>. Acesso em: 21 abr. 2016. Trata-se da versão mais atual, publicada em 17 de dezembro de 2014.
§ 1º Consideram-se: I – coautores aqueles que:
a) ofendem ou expõem a risco o bem jurídico mediante acordo de condutas;
b) mandam, promovem, organizam, dirigem o crime ou praticam outra conduta indispensável para a ofensa ao bem jurídico;
c) usam, como instrumento para a execução do crime, pessoa que age de forma atípica, justificada ou não culpável; ou
d) usam aparatos organizados de poder para a ofensa ao bem jurídico. II – partícipes aqueles que:
a) não figurando como coautores, contribuem, de qualquer outro modo, para o crime; ou
b) deviam e podiam agir para evitar o crime cometido por outrem, mas se omitem.
Concorrência de menor importância
§ 2º Se a concorrência for de menor importância, a pena pode ser diminuída de um a dois terços.
Causas de aumento
§ 3º A pena será aumentada de um a dois terços, sem prejuízo do parágrafo único do art. 31 deste Código, em relação ao agente que:
I – promove ou organiza a cooperação no crime ou dirige a atividade dos demais agentes;
II – coage outrem à execução material do crime;
III – instiga, induz, determina, coage ou utiliza para cometer o crime alguém sujeito à sua autoridade, ou é, por qualquer causa, não culpável ou não punível em virtude de condição ou qualidade pessoal; ou
IV – executa o crime ou nele participa mediante paga ou promessa de recompensa.
Circunstâncias incomunicáveis
Art. 37. Não se comunicam as circunstâncias e as condições de caráter pessoal, salvo se elementares do crime e forem do conhecimento dos concorrentes.
Execução não iniciada
Art. 38. O ajuste, mandado, induzimento, determinação, instigação ou auxílio não são puníveis se a execução do crime não é iniciada, salvo expressa disposição em contrário.
O primeiro equívoco é repetir no caput do artigo 36 a fórmula do artigo 29 do atual código, que se inspirou no estatuto penal italiano de 1930, cujas redações são coincidentes. Não se pode negar que a expressão “concorrer de qualquer modo” institui um conceito unitário ou extensivo de autor.
Os preceitos seguintes aparentam alguma inclinação à divisão entre autoria e participação, especialmente no §1º, incisos I e II, do artigo 36. Todavia, nota-se vários contrassensos. No inciso I, alínea “b”, o legislador reputa como coautores aqueles “mandam, promovem, organizam, dirigem o crime ou praticam outra conduta indispensável para a ofensa ao bem jurídico”, mas, pela tese de Roxin e por todos admitida como essência do domínio do fato, o mandante ou organizador do delito, em geral, não é coautor, a menos que realize algum aporte à realização do fato típico na execução do delito. Na alínea “c”, do inciso
I, o autor do projeto cria uma autoria mediata, mas vinculada à coautoria descrita no inciso I, o que se mostra totalmente descabida, já que é evidente a inexistência de coautoria entre autor mediato e autor imediato.
Para os fins dessa obra, o maior equívoco foi incluir a autoria mediata por meio do domínio de organização através de uma expressão simplista, vazia e repleta de aporias: “I - são coautores aqueles que: [...] d) usam aparatos organizados de poder para a ofensa ao bem jurídico”. Esse dispositivo está eivado de vícios praticamente insanáveis. Não há que se falar em coautoria entre o autor mediato e o autor imediato na estrutura dos aparatos organizados de poder e, além disso, o legislador não apresenta os pressupostos indispensáveis ao surgimento dessa modalidade de autoria: poder de emitir ordens do autor mediato, estrutura
dissociada do Direito, fungibilidade dos executores e alta disposição para o fato do executor.
O dispositivo, portanto, é imprestável ao fim a que se destina.
Essas e outras contradições do projeto resultaram em críticas ácidas por parte da doutrina, destacando-se a produzida por Luís Greco e Alaor Leite, que apelidaram a base teórica dessa quimera legislativa de conceito unitário disfuncional:
Se nos esforçarmos por enxergar o que está por trás do termo conceito unitário funcional, se não nos deixarmos seduzir pelas vanguardistas associações que o
slogan sugere, nele encontraremos nada mais do que a confissão do reformador de
que estava disposto a sacrificar a única vantagem real do modelo unitário, a sua simplicidade, em troca não se entende absolutamente de quê. O mais correto seria o termo conceito unitário disfuncional.152
Diante de todo o estudo já desenvolvido é importante noticiar ao legislador a necessidade premente de alterar a redação dos dispositivos do projeto, nomeadamente no que tange ao domínio de organização, para que o Brasil não seja o palco de instalação do mais caótico, deprimente, incapaz e desordenado sistema de autoria e participação já concebido pela imaginação humana.
3.14 Segunda conclusão intermediária: a superioridade do domínio do fato como critério diferenciador na teoria da participação
No capítulo precedente, verificou-se que o conceito restritivo de autor é o que melhor satisfaz os princípios constitucionais penais, tomando-se como axioma a distinção entre autoria e participação. Porém, as diversas teorias edificadas pela ciência penal – objetivo-
152 GRECO, Luís; LEITE, Alaor; TEIXEIRA, Adriano; ASSIS, Augusto. Autoria como domínio do fato: estudos introdutórios sobre o concurso de pessoas no direito penal brasileiro, p. 197.
formal, objetivo-material, subjetiva, mistas, domínio final do fato – apresentaram deficiências e contradições que precisaram ser solucionadas.
Demonstrou-se, tanto no segundo capítulo como neste, que os problemas práticos das teorias que tentaram desempenhar essa tarefa não se repetem nas teorias concebidas por Roxin, especialmente o domínio do fato e suas diversas ramificações.
A concepção universal de que autor é a figura central do acontecer típico permitiu investigações que conduziram a distinção de três subteorias aplicáveis a cada espécie de crime: (a) domínio do fato, para delitos de domínio ou de ação; (b) infração de dever, para delitos especiais ou de violação de dever; (c) execução pessoal do crime, para os delitos de mão própria, de atuação pessoal ou de conduta infungível.
Concernente à teoria do domínio do fato, em todas as suas modalidades, constatou-se que é compatível com as normas constitucionais, podendo ser adotada de lege lata. A jurisprudência nacional vem aplicando frequentemente a teoria, nomeadamente na subcategoria chamada domínio funcional do fato.
Por outro lado, a autoria mediata decorrente do domínio da vontade por meio de aparatos organizados de poder representou uma inovação extraordinária, que permitiu a reconstrução das categorias de autoria e participação no âmbito da criminalidade exercida por meio de estados totalitários.
De fato, o que se indaga é se a modalidade de autoria mediata, exercida por meio do domínio da vontade através de estruturas organizadas de poder, pode ser aplicada no contexto dos crimes mais deletérios praticados contra a administração pública. Antes, é forçoso ingressar na tormentosa senda dos crimes de peculato e corrupção passiva, para somente depois examinar a possibilidade de encadear os conteúdos deste capítulo com o do capítulo seguinte.
4 CRIMES CONTRA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA: PECULATO E