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4 CRIMES CONTRA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA: PECULATO E

5.9 Recorte dogmático

Abandonando-se as concepções totalmente incompatíveis com o domínio de organização nos crimes de peculato e corrupção passiva, restam o domínio de organização

empresarial e o domínio sobre o fundamento do resultado, cotejando-se com aos pressupostos

essenciais da modalidade de excepcional de autoria mediata: organização desvinculada da

ordem jurídica, poder de emitir ordens do autor mediato, executor imediato fungível e portador de alta disposição para o ato.

O domínio de organização empresarial foi elaboração jurisprudencial, no Brasil, para o crime de sonegação fiscal e, na Alemanha, para colocação de produtos perigosos no mercado e outros delitos derivados de atividades empresariais. Analisando as duas jurisprudências, os magistrados não levaram em consideração dois pressupostos inerentes ao domínio de organização: a desvinculação da organização ao direito e a fungibilidade dos executores.

Decerto, as empresas são pessoas jurídicas, submetidas ao plexo de direitos e deveres estipulados, no Brasil, pelo Código Civil e pela Lei n. 6.404, de 1976 (Sociedades Anônimas). Uma vez que a empresa desenvolve atividades lícitas, regidas pela ordem jurídica, não há como reconhecer sua natureza dissociada do direito. Se os crimes empreendidos por intermédio da empresa são episódios delituosos, não necessariamente uma atividade essencial da organização, não há, em geral, automatismo ou procedimentos regulares suficientes.

Pode-se cogitar uma pessoa jurídica constituída, p. ex., para praticar fraudes e estelionatos. Em Curitiba/PR, havia uma empresa especializada em conceder empréstimos consignados a aposentados. Os agentes da empresa abordavam os idosos nas ruas e, após convencê-los do primeiro empréstimo, eram impingidos com sucessivos empréstimos consignados e cobranças excessivas de juros336. Decerto, o grupo tinha vários integrantes, peculato, respondendo o funcionário e o particular por furto, p. ex. Se o funcionário for o executor imediato, será o autor do crime e o particular, o partícipe, ambos de um peculato. Em nenhuma hipótese, haverá as duas coordenadas essenciais do domínio de organização: o autor mediato e o autor imediato, respondendo ambos como autores (autoria mediata impropria ou duplamente punível).

336 G1 PARANÁ RPC. Dono de empresa fechada havia sido preso por estelionato em 2004. Disponível em: < http://g1.globo.com/pr/parana/noticia/2011/05/dono-da-empresa-fechada-havia-sido-preso-por-estelionato-em- 2004.html> . Acesso em: 03 maio 2016.

distribuídos em diversas lojas, todos mancomunados para realização do estelionato. No entanto, não há como reconhecer essa pessoa jurídica como uma “empresa”, mas sim um mecanismo para execução do estelionato, em que os envolvidos são coautores e participes da infração penal. Cientes e comprometidos com a aplicação do golpe, todos os celerados que integravam essa “empresa” se conheciam, atuavam em um plano comum e precisavam confiar na distribuição de tarefas para execução do delito. Não há, portanto, elementos para reconhecer uma autoria mediata, menos ainda fungibilidade dos executores. A empresa é apenas o meio de que se serve a associação criminosa337 para executar, conjuntamente, seus delitos.

De qualquer maneira, as situações analisadas pela jurisprudência não se encaixam na

empresa de fachada para fraudes. Em regra, são pessoas jurídicas regularmente constituídas,

exercendo atividades lícitas, mas que são envolvidas com um delito na execução natural de suas atividades finalísticas (da produção e circulação de bens e serviços) ou administrativas (pagamento de tributos, p. ex.). Então, como compreender a posição dos tribunais brasileiros e alemães?

Acontece que, no caso da sonegação fiscal, os tribunais brasileiros desenvolveram um argumento a partir da construção de Roxin para resolver um problema que em nada se refere à autoria mediata. Enrique Bacigalupo explica esse problema, a partir da norma de extensão do tipo previsto no artigo 31 do Código Penal espanhol:

Dicho de otro modo: la norma que está detrás del tipo penal de los delitos especiales propios tiene un grupo determinado de destinatarios; quien no tiene la cualificación legal que lo convierte en destinatario de la norma no puede ser autor. Así, por ejemplo, quien no está obligado a entregar o devolver por alguna de las formas que prevé el art. 252 del Código Penal no podría, por principio, ser autor del delito de apropiación indebida, aunque retuviera o se apropiara de una cosa para otro que es el obligado a entregar o devolver. Una parte de la teoría entendió que en estos casos la punibilidad del representante del obligado sólo podría lograrse en forma inobjetable desde el punto de vista del principio de legalidad (art. 25.1º. CE) mediante la introducción de una norma específica en la ley penal. Precisamente éste ha sido el criterio que guio al legislador al incluir en su día el art. 15 bis en el Código Penal (ahora art. 31). Como consecuencia de la regla establecida por el art. 31 del Código Penal, el representante (legal o voluntario), el administrador de hecho o de derecho de una persona jurídica será responsable del delito especial propio a que corresponda su acción, aunque carezca de la cualificación personal exigida por el supuesto de hecho típico, si esta se da en la entidad por él representada.338

337 O legislador alterou o nomen juris do crime de quadrilha ou bando para associação criminosa, conforme a redação atual do artigo 288 do Código Penal.

338 BACIGALUPO, Henrique. El actuar en nombre de otro. In: BACIGALUPO, Enrique (Dir.). Curso de

Dessarte, a ilícita supressão ou redução de tributo ou contribuição, prevista no artigo 1º da Lei n. 8.137, de 1990, e no artigo 168-A do Código Penal339, contém uma omissão legislativa que prejudica a adequação típica. O responsável tributário, isto é, o sujeito passivo da exação fiscal é a pessoa jurídica, não uma pessoa física determinada340. A própria lei deveria definir quem e, em que condições, pode ser considerado responsável tributário para fins penais. Na estrutura de uma empresa podem ser identificados vários órgãos relacionados ao pagamento dos tributos, destacando-se setores como diretorias, contabilidade, finanças e recursos humanos. Em tal miscelânea, quem é o responsável tributário? A lacuna é evidente na norma penal.

Digno de nota é a Lei n. 4.729, de 1964341, que definia o crime de sonegação fiscal. A citada norma, revogada pela Lei n. 8.137, de 1990, possuía um dispositivo de extensão da responsabilidade tributária para efeitos penais no artigo 6º:

Art. 6º Quando se trata de pessoa jurídica, a responsabilidade penal pelas infrações previstas nesta Lei será de todos os que, direta ou indiretamente ligados à mesma, de modo permanente ou eventual, tenham praticado ou concorrido para a prática da sonegação fiscal.

Igualmente, nos crimes falimentares, o artigo 179 da Lei n. 11.101, de 2005342, trouxe

a seguinte norma de extensão típica:

Art. 179. Na falência, na recuperação judicial e na recuperação extrajudicial de sociedades, os seus sócios, diretores, gerentes, administradores e conselheiros, de fato ou de direito, bem como o administrador judicial, equiparam-se ao devedor ou falido para todos os efeitos penais decorrentes desta Lei, na medida de sua culpabilidade.

Já os artigos 168-A do Código Penal e 1º da Lei n. 8.137, 1990 não possuem uma norma de extensão e, portanto, tais tipos seriam inaplicáveis. Nesse sentido:

339 O artigo 168-A cuida da apropriação indébita de contribuições previdenciárias, assemelhando-se à sonegação fiscal e foi incluído no Código Penal pela Lei n. 9.983 de 2000: “Apropriação indébita previdenciária Art. 168-A. Deixar de repassar à previdência social as contribuições recolhidas dos contribuintes, no prazo e forma legal ou convencional: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.”

340 Luís Greco e Augusto Assis assinalam: “O art. 168-A CP incrimina a conduta de ‘deixar de repassar à previdência social as contribuições recolhidas dos contribuintes’. O dispositivo não estabelece, entretanto, a quem incumbe tal repasse.” (GRECO, Luís; LEITE, Alaor; TEIXEIRA, Adriano; ASSIS, Augusto. Autoria

como domínio do fato: estudos introdutórios sobre o concurso de pessoas no direito penal brasileiro, p. 118).

341 BRASIL. Lei n. 4.729, de 14 de julho 1965. Define o crime de sonegação fiscal e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1950-1969/L4729.htm>. Acesso em: 03 maio 2016. 342 BRASIL. Lei n. 11.101, de 9 de fevereiro de 2005. Regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004- 2006/2005/lei/l11101.htm>. Acesso em: 03 maio 2016.

Se o tipo pressupõe um dever (de repasse de contribuição previdenciária) que é, contudo, da pessoa jurídica, e não da pessoa física, como aplicar o tipo a essa pessoa física, que não é titular do dever? Para tanto, seria necessário um dispositivo legal, uma norma de extensão343.

Por isso, a jurisprudência valeu-se do conceito de domínio de organização, para poder atribuir ao sujeito que se encontra no topo da empresa a imputação penal. Na jurisprudência citada, reiteradamente repetida pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região, os magistrados entenderam que o sujeito “A”, por pertencer ao órgão de direção da empresa, detinha o domínio da organização – rectius, gestão da própria empresa – para executar, por meio de seus subordinados, a sonegação fiscal. Daí concluem: é autor porque tem o domínio da organização.

Portanto, dobrou-se uma teoria – o domínio de organização –, concebida para resolver a imputação de autoria e participação em estruturas de poder organizadas, desvinculadas da ordem jurídica, para cuidar de uma lacuna legal, isto é, da ausência de norma de extensão nos crimes tributários.

A jurisprudência alemã enveredou por via semelhante. No entanto, usou o domínio de organização para solucionar um problema de imputação decorrente de crimes empreendidos por órgãos diretos mediante indução ou instigação, desconsiderando a imprescindibilidade de organismos desvinculados do direito e amortizando o grau de fungibilidade do executor imediato:

Uma ordem ilícita emitida no âmbito de uma estrutura empresarial por um gerente e cumprida por um funcionário não preenche, contudo, os requisitos da teoria originalmente proposta por Roxin. Como as empresas não são organização dissociadas do direito – pelo contrário, estão sujeitas a diversos controles realizados por diversos órgãos estatais – não se pode, segundo o modelo original, falar em domínio da organização nos casos de crimes cometidos a partir de uma empresa.344

No campo dos crimes de peculato e corrupção passiva, a aplicação analógica dessas ideias é questionável. Primeiramente, não há nos órgãos públicos, em um Estado Democrático de Direito, uma organização desvinculada da ordem jurídica: a própria administração pública é a personificação da ordem jurídica.

Pode-se contornar essa objeção, argumentando-se na possibilidade de uma organização criminosa, composta por funcionários públicos e particulares que, por meio de

343 GRECO, Luís; LEITE, Alaor; TEIXEIRA, Adriano; ASSIS, Augusto. Autoria como domínio do fato: estudos introdutórios sobre o concurso de pessoas no direito penal brasileiro, p. 119.

344 GRECO, Luís; ASSIS, Augusto. O que significa a teoria do domínio do fato para a criminalidade de empresa. In: GRECO, Luís; LEITE, Alaor; TEIXEIRA, Adriano; ASSIS, Augusto. Autoria como domínio do fato: estudos introdutórios sobre o concurso de pessoas no direito penal brasileiro, p. 102.

vários expedientes, ingressam na administração pública e iniciam a realização de peculatos e corrupções passivas em massa. Seria esse o caso, em tese, veiculado na Ação Penal n. 470/MG do Supremo Tribunal Federal.

Mas não basta apenas a existência da organização criminosa, já que o domínio da vontade por meio de aparatos de poder exige a fungibilidade dos executores e a alta disposição para o delito. Aqui reside a objeção mais forte à aplicação das inovações jurisprudenciais.

Decerto, no capítulo 4, verificou-se que os crimes de peculato e corrupção passiva – especialmente nos modi operandi referidos como intermediado e fracionado – dependem de um intenso conluio entre os sujeitos ativos, especialmente quando envolve funcionários públicos e particulares. O sucesso da empreitada criminosa prende-se a essa relação de confiança e a um plano comum, ainda que eventuais colaboradores possam desconhecer todos os detalhes dos delitos.

Vale lembrar que Roxin sempre ressalta as características essenciais do domínio de organização: o automatismo da estrutura, aludido como procedimentos regulares, e a fungibilidade dos executores imediato, demonstrada pela facilidade de substituição:

[…] el dominio del sujeto de atrás, que yo fundamento en la fungibilidad del ejecutor y el automatismo de la ejecución de la orden debido a ella. El BGH lo expresó con el giro muy citado de los “cursos o procesos regulares”, en los que, también según su formulación, la realización del tipo se produce “de forma casi automática”.345

Portanto, na configuração típica do peculato e da corrupção passiva, ainda que superada a objeção dos delitos de dever, encontraria dificuldades para se adequar aos fundamentos do domínio de organização, seja na forma disléxica concebida jurisprudencialmente para imputar autoria aos diretores de uma empresa, seja pela ausência de

cambialidade dos executores imediatos derivada do automatismo da organização.

Sobejou a concepção de Schünemann, por meio do domínio sobre os fundamentos do

resultado. Em sua visão, o agente público responde pelo crime, não porque violou normas

extrapenais do regime jurídico administrativo, mas sim por estar na posição fática de poder- dever evitar um resultado (garantidor) somando-se à sua eventual contribuição ativa. Em um peculato, no qual o agente “A”, funcionário público, auxilia o particular “B”, executor imediato do delito, apoderando-se de bens públicos, constata-se que tanto “A” quanto “B”, possuem domínio sobre os fundamentos do resultado típico.

Em tese, pode-se dar um passo adiante na teoria para abarcar o domínio da vontade por meio de aparatos organizados de poder, a partir de uma organização criminosa que se introjeta na administração pública. Porém, há pelo menos dois empecilhos para uma construção dessa natureza.

Primeiro, uma organização criminosa que controla um órgão público ainda depende da relação de confiança entre os agentes do grupo delituoso, de modo que não se pode afirmar de antemão a fungibilidade dos executores, nem o automatismo da organização, nos exatos termos já apresentados acima.

Entretanto, a maior refutação e, talvez, simultaneamente, a melhor resposta, é que para Schünemann uma situação como essa resulta, em regra, na coautoria, e não autoria mediata. Na coautoria, delineada no capítulo 3, dois requisitos fundamentais foram apresentados, que distinguem tal instituto da autoria mediata: (1º) um plano comum entre os agentes do delito; (2º) uma contribuição relevante na execução do delito, mediante divisão de tarefas. O funcionário público e os eventuais colaboradores na prática delitiva partem de um plano comum – subtrair bens públicos ou praticar atos de ofício em detrimento da supremacia do interesse público – e, em geral, cooperam ou distribuem tarefas na realização dos atos imprescindíveis à consumação dos delitos.

Para os agentes públicos, mesmo que não pratiquem atos na execução do delito e tenham prestado auxílio apenas na fase preparatória ou de cogitação, há o dever de garantidor do patrimônio público e, assim, com sua conduta omissiva, consentem com a execução do delito. Deveras, há, nesse sentido, uma contribuição passiva no instante da execução. Por isso Schünemann introduziu um conceito tipológico de domínio do fato, avançando para o

domínio sobre os fundamentos do resultado e os níveis de domínio do fato: uma contribuição

ativa na primeira fase (cogitação e preparação) soma-se a uma contribuição passiva na segunda fase (omissão de garantidor), para compensar a ausência do ato material na execução do crime.

Segundo Schünemann, em regra, nos delitos cometidos por intermédio de pessoas coletivas, há coautoria entre o órgão de direção e seus subordinados. Analogamente, o mesmo raciocínio reverte-se aos crimes funcionais e, assim, somente em caráter excepcional admite- se o domínio de organização nessa hipótese, como se verá ao final. O tutor de Schünemann reconhece o valor de suas contribuições, declarando expressamente:

La grandes diferencias que se producen en la delimitación de autoría y participación entre delitos de dominio y de infracción de deber no cambian para nada el hecho que sus conceptos de autor coinciden en el punto de referencia superior de la “figura central del suceso o acontecer típico”. Sólo son diferentes manifestaciones de este principio rector. Schünemann intenta una conciliación aún más estrecha,

interpretando los delitos de infracción de deber como casos de “dominio de

protección sobre el bien jurídico” o en formulación más reciente “dominio del

suceso o acontecimiento en el sentido del control sobre un ámbito social” y con ello como una manifestación más de los delitos de dominio. Así, el deber de protección o tutela del patrimonio en la administración o gestión desleal se basaría en una “posición de custodia o protección y de proximidad respecto a n patrimonio ajeno” sobre la esfera secreta ajena. De este modo, pretende constituir “un principio normativo fundamental unitario del dominio del hecho”, Cercano es el principio rector del “dominio configurativo” de Bottke al que pueden someter de la misma manera los delitos de dominio y de infracción de deber en un sentido distinto aquí. Tales esfuerzos, que requieren aún de ulterior elaboración, son fructíferos; pero no deben nivelar o igualar las diferencias que se producen en la delimitación de las formas de intervención. También se ha de reflexionar sobre el hecho de que el dominio de protección o control asumido por el autor precisamente no se observa o ejerce en la realización de delitos de infracción de deber, y por tanto no se puede equiparar necesariamente al actuar mediante ejercicio activo de dominio del hecho.346

Nesse caso, Schünemann constrói, a partir de sua visão tipológica, um conceito coautoria que pode dar-se nos delitos especiais, com fundamentos distintos daqueles concebidos por Roxin.

De qualquer maneira, analisando a hipótese, em todos os ângulos possíveis e através de todos os desenvolvimentos teóricos do domínio do fato, a viabilidade domínio de organização no contexto dos crimes de peculato e corrupção passiva somente é possível, em caráter excepcional, com base nas concepções de Bernd Schünemann.

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