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Toda construção dogmática de Claus Roxin, incluindo suas concepções sobre o concurso de pessoas e, mais especificamente, a teoria do domínio do fato, é tributária de uma teoria mais ampla, que pertence à estruturação geral do direito penal: o funcionalismo penal

teleológico.

Não é possível compreender os conceitos do domínio do fato, elaborados pelo professor de Munique a partir de 1963, sem colocá-los na moldura do funcionalismo penal.

Reconhece-se que o sistema funcional bifurcou-se entre as concepções de Claus Roxin (funcionalismo teleológico ou moderado) e Günther Jakobs (funcionalismo sistêmico ou

radical). Alguns autores, ainda, sugerem uma terceira linha funcionalista, chamada social,

liderada por Winfried Hassemer89. Fábio Guedes de Paula Machado descreve essas vertentes:

89 Apesar dessas dissensões, Roxin explica que os adeptos do funcionalismo “estão de acordo – apesar das várias divergências quanto ao resto – na recusa às premissas sistemáticas do finalismo e em partir da ideia de que a construção sistemática jurídico-penal não deve orientar-se segundo dados prévios ontológicos (ação, causalidade, estruturas lógico-reais etc.), mas deve ser exclusivamente guiada por finalidades jurídico penais” (ROXIN, Claus. Funcionalismo e imputação objetiva no direito penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 205). Evidentemente, não se trata de uma “abdicação total” à ontologia. Decerto, em cada corrente pode ser analisada essa abdicação de formas distintas. Jakobs faz de forma mais acentuada, a partir da visão de que a função do

O funcionalismo penal, em poucas letras, pode ser entendido à luz da função que pode o Direito Penal desenvolver num determinado contexto social. Diversos modelos de funcionalismo podem ser verificados: o funcionalismo normativista de Günther Jakobs, aponta no sentido da revitalização da norma através da imposição de pena; o funcionalismo político-criminal de Claus Roxin, acena para a abertura das estruturas do Direito Penal em obediência à política criminal; o funcionalismo social de Winfried Hassemer, aponta para a interação do Direito Penal com os aspectos sociais vigentes.90

Dentre as três, a arquitetura preconizada por Claus Roxin é a mais apropriada, porque tem a vantagem de compreender o direito penal de acordo com sua função precípua, ou seja, proteger bens jurídicos, de modo que todas as soluções dogmáticas incompatíveis com tal escopo devem ser afastadas, assegurando-se, ademais, as garantias estipuladas na Constituição da República.

Para apreender o funcionalismo penal, é preciso saber que historicamente a ciência penal desenvolveu-se a partir de categorias ontológicas, ou seja, repousadas no mundo fático. A partir dessa verificação, a doutrina deduziu normas e, principalmente, limites à atividade do legislador.

Decerto, tanto causalistas quanto finalistas basearam-se em dados pré-jurídicos para construir o sistema penal. No epítome dessa corrente de pensamento, Hans Welzel edificou o finalismo sobre a teoria das estruturas lógico-objetivas ou lógico-reais, o que significa repelir qualquer construção normativa virtual, sem base ontológica.91

Eugênio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli elencam os aspectos dessa teoria: a) o objeto desvalorado não é criado pela desvaloração, mas é anterior a ela, ou melhor, existe com independência dela. O direito, quando desvalora uma conduta, não a cria: a conduta existe independente do desvalor jurídico; b) A valoração deve respeitar a estrutura do “ente” que valora, posto que o desconhecimento desta estrutura fará com que a desvaloração recaia sobre um objeto diferente ou no vazio: se valoramos os cisnes belos, mas ao varolá-los dizemos que têm características dos porcos, estaremos valorando estes como belos e não os cisnes; c) “Estruturas lógico- objetivas” são, pois, as que vinculam o legislador ao ser do que ele desvalora, que está relacionado com ele, mas que não pode ser alterado; d) O que acontece quando o legislador desconhece uma estrutura lógico-objetiva? Na generalidade dos casos, a legislação será imperfeita, fragmentária, com lacunas, mas nem por isso será inválida, porque a valoração continua sendo tal, embora recaia sobre um objeto diferente; e) Há algum caso em que este desconhecimento invalida a norma? Isto direito penal é tutelar a efetividade da norma jurídica, enquanto Roxin intenta conjugar elementos ontológicos e axiológicos, focando na ideia de que a função político-criminal do direito penal é proteger bens jurídicos. Partindo do funcionalismo teleológico, Bernd Schünemann é que mais se aproximou de um equilíbrio entre ontologia e axiologia.

90 MACHADO, Fábio Guedes Paula Machado. Culpabilidade e Estado Democrático de Direito. Disponível em: <http://users.cmg.com.br/~bpdir/a-fgpm-01.doc>. Acesso em: 23 out. 2013.

91 Cf. WELZEL. Estudios de filosofia del derecho e derecho penal. Buenos Aires: Euros, 2006, p. 194 e 198- 199.

acontece quando o legislador desconhece a norma que o vincula ao homem como pessoa, ou seja, como ente responsável. É uma antiga afirmação kantiana de que não se pode considerar submetido ao dever ser aquele que não é capaz de autodeterminação.92

Todavia, no início dos anos 1970, Roxin e outros juristas alemães opuseram-se a essa visão e recomendaram uma releitura das bases teóricas da ciência penal, face às contradições do finalismo penal, enraizado nas estruturas lógico-reais. Essas contradições foram evidenciadas principalmente na “teoria da participação”, justamente o objeto desta monografia:

Isso se nota na maneira especialmente crassa na teoria da participação, onde o desenvolvimento da jurisprudência levou a que a distinção entre autor e partícipe fosse feita sem orientação, à livre discrição do juiz. Isso foi tornado possível porque o aparente critério distintivo da “vontade de autor”, que não existe como realidade física, é utilizado de tal maneira pela jurisprudência, que se determina, através de uma valoração imediata, quem merece a pena por autoria, quem por participação; é de acordo com o resultado dessa decisão que se nega ou afirma a vontade de autor. As consequências dessa jurisprudência são conhecidas: as sentenças contradizem-se entre si de maneira grossa, e a frase, de já 60 anos, que caracterizou a teoria da participação como “o mais sombrio e confuso capítulo da doutrina penal” tornou-se lugar comum.93

Sobre essa mudança de paradigma, Gustavo Junqueira e Patrícia Vanzolini ressaltam que a evolução das concepções penais:

Apesar da oposição entre ambos, causalistas e finalistas coincidem num ponto fundamental: partem de um conceito ontológico de ação, isto é, pré-jurídico, que pertence ao mundo do ser, da realidade, para dele derivar todo o restante da construção sistemática (Paulo Queiroz, Direito penal, 2009, p. 146).

A premissa comum a todas as diversas correntes funcionalistas é o abandono das premissas ontológicas assumidas pelo causalismo e pelo finalismo. Trata-se, portanto, de um retorno a um ponto de partida normativista/axiológica que já havia despontado com o neokantismo, mas agora alicerçado sobre o fundamento sólido da política criminal, vale dizer, das funções da pena e do Direito Penal.

[...]

Em outras palavras, sem abandonar a concepção sistemática do Direito Penal o funcionalismo faz o sistema fundar-se sobre o alicerce axiológico e valorativo da teoria dos fins da pena. Promove, assim, fusão entre dogmática e política criminal, modela os institutos dogmáticos segundo sua função político-criminal e imanta-os com a carga valorativa que emana da perspectiva político-criminal.94

92 ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 9. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, v. 1, p. 306.

93 ROXIN, Claus. Política criminal e sistema jurídico-penal, p. 18-19.

94 JUNQUEIRA, Gustavo; VANZOLINI, Patrícia. Manual de direito penal. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 162- 163.

Decerto, verificou-se que o direito não é composto apenas de dados ontológicos, mas também de valores que não são sensíveis no mundo natural. Por isso, conteúdos axiológicos devem ser inseridos nos estudos penais, com base nas funções do direito penal e da pena, extraídas da política-criminal, reformulando-se as soluções dogmáticas desse ramo da ciência jurídica, conservando-se intactos os limites garantistas já absorvidos pelas correntes ontológicas:

De maneira análoga deve ser reconhecido também no direito penal – mantendo intocadas e completamente íntegras todas as exigências garantísticas – que problemas político-criminais constituem o conteúdo próprio também da teoria geral do delito. O próprio princípio nullum-crimen possui, ao lado de sua função liberal de proteção, a finalidade de fornecer diretrizes de comportamento; através disto, torna- se ele um significativo instrumento de regulação social.95

Dessa maneira, Roxin informa que cada um dos elementos do delito – fato típico, ilicitude e culpabilidade – deve ser compreendido segundo sua função, unindo-se os aspectos tradicionais da dogmática tradicional, umbilicada com a teoria das estruturas lógico-reais, com a axiologia inerente aos valores político-criminais:

Uma tal tentativa, que vou apresentar em suas linhas fundamentais, precisa partir da premissa de que cada categoria do delito – tipicidade, antijuridicidade, culpabilidade – deve ser observada, desenvolvida e sistematizada sob o ângulo de sua função político-criminal: o tipo está sob a influência da idéia de determinação legal, à qual a legitimação da dogmática por muitas é reduzida; os tipos servem, na verdade, ao cumprimento do princípio nullum-crimen, devendo ser estruturados dogmaticamente a partir dele. A antijuridicidade, pelo contrário, é o âmbito da solução social de conflitos, o campo no qual interesses individuais conflitantes ou necessidades sociais globais entram em choque com as individuais. [...] Por fim, a categoria do delito que tradicionalmente se chama de culpabilidade, e que tem na verdade pouco a ver com a comprovação, empiricamente difícil, do poder-agir-de-outro-modo, importa-se muito mais com a questão normativa de como e até que ponto é preciso aplicar a pena a um comportamento em princípio punível, se for ele praticado em circunstâncias excepcionais. Para responder a essa pergunta devem ser levadas em conta no trabalho dogmático tanto a função limitadora da pena desempenhada pelo princípio da culpabilidade, como considerações de prevenção geral e especial.96

Desse ponto de vista, a distinção entre autoria e participação, pertencente à teoria do tipo penal, possui a função precípua de concretizar do princípio da legalidade (nullum

crimen), traduzindo-se na identificação precisa das condutas que comportam autoria e

participação, de maneira a garantir a exata subsunção da norma penal aos comportamentos surgidos no mundo fático.

95 ROXIN, Claus. Política criminal e sistema jurídico-penal, p. 14-15, grifos do autor. 96 ROXIN, Claus. Política criminal e sistema jurídico-penal, p. 30-31, grifos do autor.

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