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4 CRIMES CONTRA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA: PECULATO E

6.2 Fatos e versões sobre o “Mensalão”

Para compreender como o Supremo analisou os crimes de peculato e corrupção passiva, bem como a teoria do domínio do fato, é necessário analisar, ainda que de maneira sucinta, os fatos divulgados pela mídia, as apurações feitas pelas instituições, em especial a realizada pelos próprios parlamentares, e as diversas interpretações sobre o ocorrido.

Decerto, o relatório final da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito dos Correios (CPMI “dos Correios”), divulgado em abril de 2006, contém um comentário prenunciador da jornalista Lúcia Hippólito, da Rádio CBN, em que menciona a figura do “deputado pré-pago”, para se referir a pagamentos regulares de valores indevidos a parlamentares:

Aliás, em fevereiro, antes, portanto, do estouro do escândalo do Mensalão, registrava a jornalista e cientista política Lúcia Hippólito: “Na Câmara dos Deputados, volta e meia circulam histórias sobre deputados que teriam vendido o voto por tantos mil reais. Ninguém conta a história até o fim, ninguém apura direito. As coisas ficam por isso mesmo, mas vai se cristalizando a imagem do Congresso como um mercado persa, onde tudo se compra e tudo se vende. Desde a semana passada, circulam boatos de que vários deputados teriam recebido dinheiro para engordar bancadas partidárias na Câmara. Por conta do troca-troca desenfreado que aconteceu nos primeiros dias do ano legislativo criou-se até a figura do ‘deputado pré-pago’ ”.351

Todavia, ao contrário de tantos casos de corrupção, aquela história seria contada, apurada, chegaria a um fim e não ficariam “por isso mesmo”.

No dia 15 de maio de 2005, cerca de três meses após o escólio da comunicadora, a edição n. 1905 da revista Veja chegou às bancas com uma reportagem na qual Maurício Marinho, chefe do Departamento de Contratação e Administração dos Correios, cobrou R$ 3.000,00 (três mil reais) de um empresário a título de “acerto”, para que pudessem atuar como fornecedores da estatal. O funcionário afirmou que estaria a serviço do deputado federal Roberto Jefferson:

A denúncia da revista se assemelharia a outros tantos casos de corrupção, não fosse o fato de que, durante a conversa filmada pelos empresários, o funcionário tivesse citado o deputado Roberto Jefferson, do PTB-RJ, como fiador do esquema: “Ele me dá cobertura, fala comigo, não manda recado [...] eu não faço nada sem consultar. Tem vez eu ele vem do Rio de Janeiro só para acertar um negócio. Ele é doidão”. As LEITE, Alaor; TEIXEIRA, Adriano; ASSIS, Augusto. Autoria como domínio do fato: estudos introdutórios sobre o concurso de pessoas no direito penal brasileiro. p. 127).

351 BRASIL. Congresso Nacional. Relatório final dos trabalhos da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito dos Correios (CPMI “dos Correios”) - Volume II, p. 772. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/comissoes/CPI/RelatorioFinalVol2.pdf>. Acesso em: 15 out. 2015.

declarações de Marinho detalhando como funcionava a arrecadação de recursos ilícitos na estatal descortinavam não apenas o funcionamento de um vasto esquema de corrupção, que envolvia vários setores da estatal, como também trazia para o primeiro plano pessoas muito próximas ao presidente Lula e ao PT, como Roberto Jefferson, cujo partido fazia parte da base aliada do governo no Congresso Nacional.352

Em seguida, o deputado Roberto Jefferson, acuado pelas delações, revelou, em entrevista à Folha de São Paulo, no dia 6 de junho de 2006, que o acontecimento estaria relacionado a um esquema de corrupção mais abrangente, envolvendo proeminentes nomes da República353. Segundo o deputado, existiria desde o início do governo ofertas de pagamentos

mensais a parlamentares para conservação da base aliada do governo, estratégia a que denominou “mensalão”354, sob coordenação de Delúbio Soares, tesoureiro do Partido dos

Trabalhadores (PT) e José Dirceu de Oliveira e Silva, deputado federal pelo PT, exercendo o cargo de ministro Chefe da Casa Civil:

Um pouco antes de o Martinez morrer, ele me procurou e disse: "Roberto, o Delúbio [Soares, tesoureiro do PT] está fazendo um esquema de mesada, um ‘mensalão’, para os parlamentares da base. O PP, o PL, e quer que o PTB também receba. R$ 30 mil para cada deputado. O que você me diz disso?". Eu digo: "Sou contra. Isso é coisa de Câmara de Vereadores de quinta categoria. Vai nos escravizar e vai nos desmoralizar". O Martinez decidiu não aceitar essa mesada que, segundo ele, o doutor Delúbio já passava ao PP e ao PL. Morto o Martinez, o PTB elege como líder na Câmara o deputado José Múcio (PE). Final de dezembro, início de janeiro, o doutor Delúbio o procura: "O Roberto é um homem difícil. Eu quero falar com você. O PP e o PL têm uma participação, uma mesada, eu queria ver se vocês aceitam isso". O Múcio respondeu que não poderia tomar atitude sem falar com o presidente do partido. Aí reúnem-se os deputados Bispo Rodrigues (PL-RJ), Valdemar Costa Neto [SP, presidente do PL] e Pedro Henry (PP-MT) para pressionar o Múcio: "Que que é isso? Vocês não vão receber? Que conversa é essa? Vão dar uma de melhores

352 VILLA, Marco Antônio. Mensalão: o julgamento do maior caso de corrupção da história política brasileira. São Paulo: Leya, 2012.

353 FOLHA DE SÃO PAULO. Jefferson denuncia mesada paga pelo tesoureiro do PT. Disponível em: < http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u69402.shtml>. Acesso em: 17 fev. 2015.

354 A origem da palavra “mensalão” é comumente creditada ao próprio Roberto Jefferson, conforme pesquisa empreendida por Gustavo de Oliveira Quandt: “Não encontramos essa curiosa palavra em nenhum dicionário tradicional, e o Caudas Aulete Digital (http://aulete.uol.com.br/mensalão, acesso em 03.12.2013) parece tê-la assimilado justamente em razão dos fatos julgados na APn 470/MG. O uso dela para denominar o pagamento regular de propina aos deputados é creditado, no acórdão, ao réu Roberto Jefferson (p. 2471), mas o próprio a atribuiu ao ex-Ministro das Comunicações Miro Teixeira (p. 2007), que igualmente negou a aternidade do neologismo (p. 4938). O termo foi traduzido como "grande pagamento mensal" em alguns jornais estrangeiros (grösse Monatslohn no Frankfurt Allgemeiner [www.faz.net/aktuell/politik/ausland/korruptionsskandal-in- brasilien-prozess-um-den-grossen-monatslohn-11840684.html], acesso em: 03.12.2013 e big monthly allowance no New York Times [www.nytimes.com/2013/04/07/world/americas/brazil-opens-inquiry-into-vote-buying- claims.html], acesso em: 03.12. 2013), mas a imprensa de língua espanhola preferiu manter o nome original [http://elpais. com/tag/caso_mensalao/a/], acesso em: 03.12.2013; [www.lanacion.com.ar/1495409-brasil-en- vilo-por-el-juicio-del-siglo], acesso em: 03.12.2013).” (QUANDT, Gustavo de Oliveira. Algumas considerações sobre os crimes de corrupção ativa e passiva. A Propósito do julgamento do “Mensalão” (APn 470/MG do STF).

que a gente?". Aí o Múcio voltou a mim. Eu respondi: "Isso desmoraliza. Tenho 22 anos de mandato e nunca vi isso acontecer no Congresso Nacional".355

A gravidade das declarações do presidente do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e a provável origem ilícita dos recursos atraiu a atenção, levando vários parlamentares a movimentaram-se para a instalação de uma comissão parlamentar de inquérito. A crise política aprofundou-se, com disputas intensas na instalação e indicação dos membros da CMPI “dos Correios”, até que um acordo concedeu a presidência ao senador Delcídio do Amaral, do PT, e a relatoria ao deputado Osmar Serraglio, do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), iniciando-se os trabalhos em junho de 2005.356

Com o desenrolar da CPMI “dos Correios” e das apurações paralelas realizadas pela Polícia Federal, a investigação espraiou-se por várias linhas, afastando-se um pouco do episódio inicial relacionado aos contratos dos Correios e concentrando-se na averiguação dos pagamentos indevidos aos parlamentares.

Em seguida, os deputados federais José Dirceu de Oliveira e Silva e Roberto Jefferson, pivôs da crise, perderam o mandado, ou seja, foram cassados em plenário, após a submissão ao Conselho de Ética da Câmara dos Deputados. Outros implicados, como o deputado federal Valdemar Costa Neto, pelo Partido Liberal (PL), renunciaram para escapar da cassação.

Nesse ínterim, acudiram várias versões e explicações para os fatos. Delúbio Soares e Marcos Valério confessaram a existência de algumas operações financeiras, porém disseram que seriam destinadas a pagar despesas de campanha não contabilizadas, o chamado “caixa dois” nas eleições de 2002, e que não existia prestações periódicas a parlamentares ou partidos políticos. José Dirceu alegou desconhecer os fatos, negando a existência do “mensalão”.

Analisando as provas colhidas, Paulo Moreira Leite destaca que não foi demonstrada a finalidade dos pagamentos, a “compra de votos”:

As tentativas de apontar casos de “compra de votos” envolvem hipóteses que ficaram por demonstrar. Algumas são possíveis, outras infantis, e algumas absurdas. Muitas de baseiam em juízos políticos. Imagina-se que, para aprovar a reforma da

355 LO PRETE, Renata. Jefferson afirma que foi "informando a todos do governo" sobre a mesada a deputados paga por Delúbio e que Lula chorou ao saber do caso. Disponível em: < http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc0606200504.htm>. Acesso em: 17 fev. 2015.

356 Cf. VILLA, Marco Antônio. Mensalão: o julgamento do maior caso de corrupção da história política brasileira. São Paulo: Leya, 2012. O autor remonta o imbróglio jurídico-político a respeito da instalação da comissão e da renovação do prazo para encerramento dos trabalhos.

Previdência, que causou revolta em suas bases mais tradicionais de eleitores, o PT não tivesse alternativa senão colocar a mão no bolso e subornar deputados.357

A oposição, por sua vez, reiterava a existência da estrutura de corrupção. Merval Pereira ressalta esse posicionamento:

A tese do mero caixa dois para pagamento de campanhas eleitorais fica fragilizada ante o sofisticado sistema de desvio de dinheiro público montado para irrigar cofres dos partidos com empréstimos fictícios e contas no exterior. E, mesmo que fosse verdade, o desvio de recursos públicos é crime que nãos se atenua com o objetivo final da aplicação do produto do roubo, mesmo que se tivesse feito doação a obra de caridade ou ao Fome-zero, conforme salientou Gurgel.358

Apesar das versões, depois de 10 (dez) meses de trabalho, a comissão terminou as atividades e emitiu um relatório, descrevendo vários casos de “corrupção” no país, especialmente nas empresas estatais, como o Instituto de Resseguros do Brasil, os Correios e o Banco do Brasil.

O principal trecho do relatório é o que conclui pelas evidências dos crimes de quadrilha ou bando, peculato, corrupção passiva e ativa, lavagem de dinheiro, fraude a licitações, dentre outros, negando a tese de “caixa dois” adotada no discurso dos investigados. Nesse ponto, o relatório identificou José Dirceu (ministro Chefe da Casa Civil e deputado federal pelo PT), Delúbio Soares (tesoureiro do PT), José Genoíno (presidente do PT e deputado federal), Marcos Valério (empresário, proprietário das agências de publicidade SMP&B e DNA), Henrique Pizzolato (Diretor de Marketing do Banco do Brasil) e Ramon Hollerbach (sócio de Marcos Valério nas agências de publicidade), como os principais perpetradores dos delitos, indiciando-os formalmente:

Conforme ficou demonstrado, o dinheiro saía do Banco do Brasil, passava pela Visanet, que o depositava nas contas da DNA, empresa do Sr. Marcos Valério. Cabe ressaltar que o responsável pelo desembolso do banco estatal era o ex-Diretor de Marketing Henrique Pizzolato.

Após receber os recursos, a DNA fazia aplicações nos bancos BMG e Rural e, imediatamente, contratava operações que, na verdade, apenas serviam para simular a concessão de empréstimos. Após “esquentar” o dinheiro proveniente do Banco do Brasil, o Sr. Marcos Valério, fazia a distribuição para os destinatários indicados pelo Sr. Delúbio Soares, que orientava o valor a ser recebido por cada beneficiário. Dessa forma, os Srs. Henrique Pizzolato, Marcos Valério e Delúbio Soares agiram com comunhão de desígnios e incorreram no cometimento dos seguintes crimes:

357 LEITE, Paulo Moreira. A outra história do mensalão: as contradições de um julgamento político. São Paulo: Geração Editorial, 2013.

358 PEREIRA, Merval. Mensalão: o dia a dia do maior julgamento da história política do Brasil. Rio de Janeiro: Record, 2013.

peculato (art. 312 do CP); falsidade ideológica (art. 299 do CP); e lavagem de dinheiro (art. 1º, V, da Lei nº 9.613, de 1998).

Pela contratação ou prorrogação do contrato da agência DNA com a Visanet, supostamente para fazer a publicidade da cota de responsabilidade do Banco do Brasil, houve desrespeito ao princípio da licitação. Com efeito, os recursos destinados à publicidade dos cartões de crédito administrados pelo Banco do Brasil somente podem ser despedidos com estrita obediência às regras de Direito Público, a que se submete a entidade estatal. Nesse caso, percebe-se que os agentes Henrique Pizzolato, Delúbio Soares e Marcos Valério contribuíram decisivamente para a violação das regras da Lei de Licitações e Contratos, e incorreram no crime descrito no seu art. 89.

Cabe destacar que o então presidente do Partido dos Trabalhadores, José Genoíno, como dirigente máximo da legenda, foi um dos idealizadores do sistema operado pelo colega Delúbio Soares, estando por isso incurso em diversos tipos penais. Da mesma forma, o então Ministro da Casa Civil, José Dirceu, que desponta como o grande idealizador desse esquema de corrupção, destinado a garantir uma base de apoio ao Governo na Câmara dos Deputados.

Em relação ao citado “caixa dois”, configura mero crime fiscal quando praticado apenas para eximir-se o agente do pagamento de tributo. Ocorre que nem sempre a finalidade esta. Por vezes, a verdadeira intenção é ocultar a origem ilícita dos recursos que não foram contabilizados, podendo configurar, então, o crime de lavagem de dinheiro, definido no art. 1º da Lei nº 9.613, de 1998.

Se o “caixa dois” é praticado por instituição financeira ou pessoa jurídica ou natural àquela equiparada, nos termos do art. 1º da Lei nº 7.492, de 1986, tem-se o crime contra o Sistema Financeiro Nacional, definido no art. 11 desse diploma legal. Noutro giro, se a intenção é puramente eleitoral, as sanções são de natureza diversa e são estabelecidas nas Leis nº 9.096, de 1995 e no 9.504, de 1997.

A nosso sentir, os recursos que escoaram pelo Valerioduto têm origem ilícita, razão pela qual não se pode caracterizar os crimes praticados pelos operadores desse esquema como mero “caixa dois”. Trata-se de dinheiro proveniente de crimes contra a Administração Pública, de forma que o crime é, mesmo, de lavagem de dinheiro. Há, obviamente, concurso material com o crime de corrupção ativa, por parte de todos os que participaram do esquema, ou seja, não somente os idealizadores, mas aqueles que tiveram colaboração, ainda que secundária.359

Concluídos os trabalhos em abril de 2006, aprovado o relatório, os autos do inquérito relatado pela CPMI “dos Correios” foram remetidos ao Ministério Público Federal. Não havia, até esse momento, qualquer menção ao domínio do fato.

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