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Quando vários sujeitos reúnem-se para praticar um crime, distribuindo os atos necessários à execução, surge o fenômeno da coautoria. Para explicar essa classe, Roxin criou o domínio funcional do fato, que se vale da ideia segundo a qual os coautores possuem, globalmente, o papel central na realização do tipo penal, ou seja, dominam o fato conjuntamente, tendo todos os intervenientes uma parcela decisiva do acontecer típico. Em outras palavras, a função de cada coautor é essencial para a execução do delito, mas não significam imprescindivelmente a realização do tipo:

Si hubiera que expresar con un lema la esencia de la coautoría tal como se refleja en estas consideraciones, cabría hablar de dominio del hecho “funcional”, esto es, determinado por la actividad, en tanto que el dominio conjunto del individuo resulta aquí de su función en el marco del plan global. Ésta es una forma absolutamente autónoma de dominio del hecho, junto al dominio de la acción, que se basa no carácter central de la realización del tipo aisladamente considerada, y junto al dominio de la voluntad, que se deriva de la falta de libertad, la ceguera o la fungibilidad del instrumento.111

Elucidando as ideias de Roxin, Luís Greco e Alaor Leite ilustram a teoria com o roubo cometido por duas pessoas (artigo 157, §2º, incisos I e II, do Código Penal), em que um indivíduo exerce a ameaça com emprego de arma e o comparsa executa a subtração:

A terceira forma de dominar um fato está numa atuação coordenada, em divisão de tarefas, com pelo menos mais uma pessoa. A aponta uma pistola para a vítima (grave ameaça), enquanto B lhe toma o relógio do pulso (subtração de coisa alheia móvel): aqui, seria inadequado que A respondesse apenas pelo delito de ameaça (art. 147, CP) ou de constrangimento ilegal (art. 146, CP), e B apenas pelo furto (art. 155, CP). Se duas ou mais pessoas, partindo de uma decisão conjunta de praticar o fato, contribuem para a sua realização com um ato relevante de um delito, eles terão o

domínio funcional do fato (funktionale Tatherrschaft), que fará de cada qual coautor

do fato como um todo, ocorrendo aqui, como consequência jurídica, o que se chama de imputação recíproca. A e B responderão, assim, ambos pelo delito de roubo (art. 157, CP).112

Para Roxin, além dos elementos já citados, a coautoria depende da convergência de dois requisitos: a) plano comum entre os coautores; b) contribuição relevante no momento da

execução do delito. Luís Greco e Augusto Assis, ao estudarem a aplicação da coautoria nos

delitos empresariais, apontam que:

111 ROXIN, Claus. Autoría e dominio del hecho en derecho penal, p. 310.

112 GRECO, Luís; LEITE, Alaor; TEIXEIRA, Adriano; ASSIS, Augusto. Autoria como domínio do fato: estudos introdutórios sobre o concurso de pessoas no direito penal brasileiro, p. 30-31.

O terceiro argumento contrário à afirmação da coautoria no contexto empresarial parte do requisito objetivo da coautoria: a contribuição relevante. Relevante, por sua vez, é uma contribuição da qual depende o êxito do plano, ao menos de uma perspectiva ex ante. Segundo uma concepção que nos parece correta, essa contribuição deve ser prestada na fase de execução, ou seja, em um momento posterior ao início da tentativa. Não é necessário que a contribuição seja prestada no local em que a execução ocorre, como demonstra o exemplo do chefe da quadrilha que coordena tudo por telefone, acima citado. Parece que, por maior que seja, não há contribuição prestada na fase preparatória que possa “compensar” a falta da contribuição relevante na fase executória. Afinal, sem tomar parte na fase executória, o agente não possuirá verdadeiro domínio do fato, a não ser que se entenda por “fato” algo desvinculado da realização do tipo. Sem um controle sobre o fato, isto é, sobre a realização do tipo, isto é, sobre a execução do delito, falta um verdadeiro fundamento a legitimar a severa consequência jurídica da imputação recíproca.113

Dessa forma, o plano comum impõe a existência do liame subjetivo entre os sujeitos ativos do delito, que não se confunde com o “ajuste prévio”. A contribuição no momento da execução é muito importante, pois é o ponto diferencial da teoria de Roxin: somente as

contribuições importantes realizadas no momento da execução do tipo caracterizam a coautoria. Em contrapartida, cooperações feitas na fase preparatória ou no instante da mera

cogitação não implicam no reconhecimento da coautoria, recaindo na figura do partícipe (ou mesmo em outro tipo penal)114.

Nota-se que a coautoria funcional afasta-se dos problemas inseparáveis das teorias formal-objetiva, material-objetiva e subjetiva. Se, por exemplo, “A” segura uma escada para que “B” ingresse na residência da vítima e subtraia os bens, para em seguida, deixar toda a espoliação com “A”, grosso modo, “A” seria partícipe e “B” autor do furto, pois somente “B” executou o verbo contido no artigo 155 do Código Penal (“subtrair para si ou para outrem”), independentemente da participação de “A” na execução do crime e de ter ficado com todo o butim criminoso, caso prevalecesse a teoria formal-objetiva. Para a teoria material-objetiva, seria indispensável ao julgador avaliar previamente, no exemplo apresentado, segundo critérios como o da “participação necessária”, se a ação de “A” foi ou não importante para a execução do delito, sempre cotejando com outras hipóteses, o que tornaria a tarefa mais complexa, posto que “A” ficou com todo o produto do furto. Com a teoria subjetiva, o

113 GRECO, Luís; LEITE, Alaor; TEIXEIRA, Adriano; ASSIS, Augusto. Autoria como domínio do fato: estudos introdutórios sobre o concurso de pessoas no direito penal brasileiro, p. 96.

114 ROXIN, Claus. Autoría e dominio del hecho en derecho penal, p. 323-336. Guilherme de Souza Nucci também sustenta a inviabilidade de participação apos a consumação, salvo se houver um ajuste entre autor e partícipe antes da realização do crime: “trata-se, em nosso entendimento, de hipótese impossível. Uma vez que o crime se consuma, já não se pode falar em participação. De fato, somente pode o sujeito tomar parte daquilo que está em andamento, e não findo. O indivíduo que esconde, em sua casa, um criminoso fugitivo, logo após a consumação do crime, responde pelo delito de favorecimento pessoal (art. 348, CP). Entretanto, se ele prometeu, antes da consumação do crime, esconder o autor, torna-se partícipe, pois incentivou a sua prática” (NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal, p. 371).

problema se arrastaria ainda mais por elucubrações obscuras e aporias insondáveis, já que, pelas ideias de “dolo” e “interesse”, poderia o julgador chegar à conclusão de que o crime foi cometido exclusivamente no interesse de “A”, especialmente pelo fato de que “A” apoderou- se de todo o produto delituoso e, assim, “A” seria autor e “B” mero partícipe, o que é insustentável tanto ontológica quanto axiologicamente. “A” encetou um plano comum com “B” e realizou uma atividade relevante no momento da execução do crime, detendo, juntamente com “B”, o controle sobre o acontecer típico. Logo, pelo critério do domínio funcional do fato, ambos são coautores do delito115.

Outra vantagem do domínio funcional do fato é técnica e corretamente explicar a punição das decisões delituosas tomadas em órgãos coletivos, evitando-se as contradições da

conditio sine qua non.

Em um órgão colegiado, que se decide por maioria de votos, uma vez atingido o quórum para aprovar, p. ex., um ato de gestão fraudulenta de instituição financeira, os votos dos demais são dispensáveis, ou seja, não são condições necessárias ao resultado e os votos individuais não são bastantes para a realização do tipo. Pela exegese do artigo 13 do Código Penal, os que votaram favoravelmente até o quórum estatutário de aprovação responderiam pela modalidade tentada e os demais votantes ficariam impunes. O domínio funcional do fato, por meio da distribuição de tarefas, que imputa a todos os que cooperaram no crime realização do fato típico, supera essas objeções.

Luís Grego e Augusto Assis ressaltam essa qualidade da teoria:

Isso significa que os casos da chamada coautoria alternativa – paradigmático, aqui, é o exemplo de um pelotão de fuzilamento composto de 20 atiradores, em que a vítima é letalmente atingida por vários disparos em um mesmo momento – em que é possível subtrair mentalmente cada uma das contribuições em separado, mas não todas elas em conjunto, a rigor a concepção tradicional teria de punir apenas pelo crime tentado. Isso não é uma questão meramente acadêmica, mas de enorme relevância prática, se se pensar que também as decisões tomadas dentro de órgãos colegiados, como são geralmente estruturados os conselhos diretores de empresas mais complexas do que a imaginada em nosso exemplo inicial, apresentam essa

115 Com a mesma interpretação, de que o domínio funcional do fato não repete os problemas das demais teorias, Luís Greco e Adriano Teixeira anotam: “Uma outra forma de dominar um fato consiste numa atuação coordenada, em divisão de tarefas, com uma ou mais pessoas. Em nosso exemplo, B segura a vítima para que A a esfaqueie. A rigor, tomando o comportamento de B individualmente – e caso permanecêssemos somente com a ideia de domínio sobre a própria ação ou com o critério formal-objetivo – teríamos uma ação que corresponderia ao delito de constrangimento ilegal, art. 146 de nosso código real, ao passo que somente A seria autor do crime de homicídio. [...] A e B ao partirem de uma decisão comum de praticar o fato e prestarem contribuição relevante para a realização desse fato, dominam o fato de forma conjunta; eles possuem, portanto, o domínio funcional do fato, que fará de cada qual coautor do fato como um todo. [...]. Por ambos, portanto, coligados criarem e controlarem o risco de morte da vítima, A e B terão realizado, em conjunto, o tipo “matar alguém”. (GRECO, Luís; LEITE, Alaor; TEIXEIRA, Adriano; ASSIS, Augusto. Autoria como domínio do fato: estudos introdutórios sobre o concurso de pessoas no direito penal brasileiro, p. 58).

estrutura. Pense-se numa decisão unânime de comercializar produto defeituoso, tomada por um conselho diretor composto de cinco gerentes e que decide com base na regra de maioria simples. Cada um dos cinco pode reportar-se ao art. 13, caput, CP e alegar que seu voto não foi conditio sine qua non do resultado. Se se acopla o “concorrer” do art. 29, caput, ao conteúdo do art. 13, caput, CP, como faz a concepção tradicional, será impossível responsabilizar por um resultado os membros de órgãos colegiados, tão logo haja um voto além da quantidade mínima para que prevaleça a decisão da qual decorre o resultado danoso (isto é, tão logo existam 4 votos).116

Portanto, a ramificação do domínio funcional do fato, que fundamenta a coautoria, supera todos os problemas das demais teorias e, ainda, tangencia a questão da imputação causal nas decisões coletivas.

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