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Descartes: a dúvida, o cogito e o Idiota

IMPENSADO NO DISPOSITIVO DA VERDADE

6. A Filosofia como inclinação natural ao verdadeiro

6.2. Descartes: a dúvida, o cogito e o Idiota

No pensamento de Descartes, vemos aparecer de forma mais demarcadora a função exercida pelo eu/sujeito/pensamento no que tange à problemática do conhecimento humano, e, portanto, às questões de ordem propriamente epistemológicas. Não será mais possível a referência a um mundo anterior no qual a alma humana se encontrava em comunhão e afinidade com a essência das coisas. A questão que agora emerge é: como é possível saber se o conhecimento e as impressões que eu tenho acerca do mundo são verdadeiras? Como é possível saber que não existe um Gênio Maligno (em vez de um Deus onipresente, onisciente e dotado de perfeição moral) que faz com que eu sempre me engane quando acredito perceber o que percebo? A resposta para essa questão será buscada a partir de uma torção da própria dúvida sobre si mesma, mediante a qual se desdobra a multiplicidade do conceito de cogito: “eu que duvido, eu penso, eu sou, eu sou uma coisa que pensa” (DELEUZE e GUATTARI, 2010, p.33).

Tomemos aqui a seguinte movimentação: eu duvido. Se eu duvido, é porque percebo que existe algo mais perfeito do que a dúvida, que é o conhecimento – caso contrário, meu estado de espírito não seria uma dúvida, mas uma certeza. Se eu duvido é, pois, porque tenho a ideia de que existe algo como o conhecimento. Se eu tenho uma ideia de que existe algo como o conhecimento, é porque eu penso. Não posso duvidar de que penso, pois não posso duvidar de que duvido. Se eu duvidasse que duvido, eu não duvidaria. E eu duvido: isso é certo! Portanto, eu penso. Se eu penso, eu existo enquanto uma coisa que pensa.

Esta movimentação, segundo Deleuze e Guattari (2010), desliza sobre uma série de pressupostos subjetivos ou implícitos que a Filosofia toma emprestado do senso comum, da esfera pré-filosófica: “todo mundo sabe o que significa pensar, todo mundo tem a possibilidade de pensar, todo mundo quer o verdadeiro” (DELEUZE e GUATTARI, 2010, p.75). Aqui intervém um personagem filosófico: o Idiota, o pensador privado, “aquele que diz Eu” (DELEUZE e GUATTARI, 2010, p.75, grifos

meus), ou mesmo “aquele que forma um conceito com suas forças inatas, que cada um

possui de direito por sua conta” (idem, p. 76). A figura do personagem filosófico, segundo Deleuze e Guattari (2010), “opera os movimentos que descrevem o plano de imanência do autor, e intervém na própria criação de seus conceitos” (p.78). Se existe, portanto, algo como um sujeito filosófico ou um autor, essa função é efetivamente

exercida no modo de articulação dos conceitos no plano de imanência pelo personagem filosófico.

Se este personagem é aquele que, dizendo eu, diz uma certeza acerca da autoria e da verdade de seu pensamento, Nietzsche (2008) bem perceberá a superstição e arbitrariedade que engendram o cimento unificador do eu ao penso:

Um pensamento vem quando “ele” quer, mas não quando “eu” quero; de modo que é uma falsificação dos fatos afirmar: o sujeito “eu” é a condição do predicado “penso”. Isso pensa: mas que “isso” seja precisamente aquele velho, célebre “eu”, é, para dizer o mínimo, apenas uma suposição, uma afirmação, sobretudo não é qualquer “certeza imediata” (p.38).

A crítica de Nietzsche, entretanto, não se reduz a mostrar o arbitrário e o

impensado operando na ligação entre o eu e o penso – ligação que aparece como

evidente, intuitiva e a priori. Em outra ocasião, Nietzsche (2002) apontará para um próprio vazio no que diz respeito à significação de existo na afirmação penso, logo

existo.

Naquele célebre cogito se encontram: 1) pensa-se, 2) eu creio que sou eu quem aqui pensa, 3) mesmo se admitindo que o segundo ponto permanecesse implicado, como artigo de fé, ainda assim o primeiro ‘pensa-se’ contém ainda uma crença: a saber, que ‘pensar’ seja uma atividade para a qual um sujeito, no mínimo um ‘isto’ tenha da ser pensado – além disso o ergo sum [logo existo] nada significa! (p.144).

Assim, será esse Idiota quem articulará a certeza da existência do eu mediante sua impensada ligação com o cogito. Mediante isto, o Idiota poderá finalmente encontrar aquilo que tanto procurava: uma verdade encontrada por si mesmo, porém evidente aos olhos de todos e de qualquer um. O Idiota é, então, o porta-voz do que Deleuze (2009), em Diferença e Repetição, chamou de Imagem do Pensamento, que instaura a fórmula do consenso e da representação: “todo mundo sabe, ninguém pode

negar” (p. 190). E o personagem filosófico cartesiano, o Idiota, será precisamente

aquele que move o cogito de uma dúvida a uma certeza, e desta a outra dúvida que gera outra certeza. Nas palavras de Descartes (2001): “a nossa vontade inclina-se

naturalmente a desejar só as coisas que o nosso entendimento lhe representa de algum

modo como possíveis” (p.37, grifos meus). Assim, a inclinação do pensamento à verdade constituirá signo da possibilidade de alcance do verdadeiro.

Ora, se Descartes (2001) garante que “não há nada que não esteja tão inteiramente em nosso poder como os nossos pensamentos” (p.37), eis aí mais um

índice de que a busca do cogito pela verdade será uma busca a priori fadada ao sucesso. Assim, o acordo entre pensamento e realidade, a afinidade natural do pensamento para com a verdade, ou a harmonia preexistente entre o sujeito e o mundo, muito embora igualmente presentes em Platão, não serão estabelecidos por Descartes em ternos de

reminiscência, mas por este curioso personagem filosófico chamado por Deleuze e

Guattari (2010) de o Idiota, aquele que enuncia: eu duvido, eu penso, eu sei que penso!

Eu existo, eu quero a verdade! Tenho direito! Mas todo mundo pensa, todo mundo quer a verdade, vocês hão de convir... ninguém pode negar!

Muito embora Deleuze e Guattari (2010) façam uma distinção entre o antigo Idiota (o Idiota cartesiano) e o novo Idiota61, não nos parece atual essa movimentação realizada pelo Idiota cartesiano? Este personagem sempre possível de ser atualizado em nossa prática filosófica ou mesmo em nosso cotidiano, este Idiota será precisamente aquele que considera que todos querem a verdade, que qualquer afirmação porta uma verdade ou uma tentativa de dizer a verdade e que ninguém pode negar isso. Idios significa o próprio, o privado, o particular. O Idiota é aquele que pensa por si mesmo, por meio das forças que tira de si mesmo, é aquele que se arvora autêntico e autônomo em sua bravata pela verdade – o Idiota, o que pensa por si, o que gravita incessantemente em torno de si mesmo, o que gira pelas bordas incertas de um ponto que costuma acreditar ser o “eu”, não pode ser mais do que um tonto.

Mas em seu trânsito pelo dispositivo da verdade, o Idiota sai constantemente do espaço de seu si próprio e anuncia que todos querem a verdade... a verdade que ele tanto insiste em querer! É por querer a verdade que o Idiota tem a singularidade do seu querer anulada. Assim, o Idiota afirma não somente que todos querem a verdade, mas acrescenta que aqueles que dizem não querê-la estão mentindo, estão enganados, ou estão caindo em contradição performativa. Querer uma verdade, dizer que todos a querem e anular com isso a singularidade de sua vontade. Mas o que esperar de quem quer a verdade? O que esperar daqueles que se autoproclamam os agentes da verdade, seus soldados, guardiãs e porta-vozes? A imagem de pensamento sob a qual se encontra submerso até o mais tênue grão o antigo e atual Idiota nada mais pode significar do que

61

“O antigo Idiota queria evidências, às quais ele chegaria por si mesmo (...) o novo Idiota não quer, de maneira alguma, evidências (...) ele quer o absurdo. O antigo Idiota queria o verdadeiro, mas o novo quer fazer do absurdo a mais alta potência do pensamento, isto é, criar. O antigo Idiota queria não prestar contas se não à razão, mas o novo Idiota, mais próximo de Jó que de Sócrates, quer que se lhe preste contas de ‘cada vítima da história’. (...) O antigo Idiota queria dar-se conta, por si mesmo, do que era compreensível ou não, razoável ou não, perdido ou salvo, mas o novo Idiota quer que lhe devolvam o perdido, o incomensurável, o absurdo” (DELEUZE e GUATTARI, 2010, p.77).

a anulação de uma vontade, cujo eco, ressonância e brado de desespero fazem-se ouvir no intervalo de uma respiração que se esvai: todos querem a verdade, todos querem a

verdade, todos querem a verdade...

Retornarei a outros aspectos importantes do pensamento de Descartes quando estiver lidando com as questões relacionadas às diferenças entre a espiritualidade e a Filosofia moderna, enquanto distintos territórios para pensar as relações entre o sujeito e a verdade – o que ocorrerá no sexto capítulo deste trabalho.

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