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Kant: aparência, fenômeno e esquematismo transcendental

IMPENSADO NO DISPOSITIVO DA VERDADE

6. A Filosofia como inclinação natural ao verdadeiro

6.3. Kant: aparência, fenômeno e esquematismo transcendental

Se em Descartes a multiplicidade do conceito de cogito produz uma identidade entre ser e pensar (eu penso, eu sou) que aparece como indubitável, em Kant teremos um momento de rompimento com esta identidade. Este consiste na assunção de que as coisas não são em si mesmas tais como se apresentam a um sujeito e que, portanto, o conhecimento é dependente do modo de apresentação das coisas aos sujeitos. É justamente desta assunção que decorre a impossibilidade de um conhecimento acerca da coisa-em-si (da coisa independentemente de seu modo de apresentação a um sujeito). Em minha dissertação de mestrado, intitulada A Dissolução das Ilusões Transcendentais

na Crítica da Razão Pura: um estudo sobre as relações entre a Estética, a Analítica e a Dialética Transcendentais (BENEVIDES, 2008), procurei, todavia, mostrar a

impertinência em identificar a noção kantiana de coisa-em-si, tal como aparece na

Crítica da Razão Pura, com a realidade. Quer dizer: a impossibilidade de conhecer a

coisa-em-si de modo algum aproxima Kant da afirmação cética de que é impossível conhecer a realidade, mas, ao contrário, situa o conhecimento humano em um acordo prévio, em uma homologia ou adequação com a experiência possível mediante um

esquematismo transcendental. No Livro Segundo da Analítica Transcendental, a saber,

na Analítica dos Princípios, Kant (1996) desde já situa esse campo onde ocorre um acordo entre entendimento e sensibilidade como o campo de uma Lógica da Verdade (Analítica) em oposição a uma Lógica da Ilusão (Dialética). Este esquematismo transcendental investigado em uma lógica da verdade realizaria uma síntese do múltiplo na unidade da categoria mediante quatro formas distintas, isomórficas às quatro modalidades de categorias do entendimento: quantidade, qualidade, relação e modalidade. Estas formas de esquematismo são os axiomas da intuição, as antecipações

geral. Trata-se precisamente do lugar onde o entendimento puro funciona em seu

próprio domínio.

Este domínio [do entendimento puro], porém, é uma ilha fechada pela natureza dentro de certos limites imutáveis. É a terra da verdade (um nome sedutor), circundada por um vasto e tempestuoso oceano, que é a verdadeira sede da ilusão, onde nevoeiro espesso e muito gelo, em ponto de liquefazer- se, dão a falsa impressão de novas terras e, enquanto enganam com vãs esperanças o navegador errante a procura de novas descobertas, envolvem-no em aventuras, das quais não poderá jamais desistir e tão pouco levar a termo. (KANT, 1996, p.202, grifos meus).

Não adentrarei, neste trabalho, a explicitação do modo como ocorrem estas sínteses transcendentais mediante o esquematismo. O leitor interessado em aprofundar- se no tema poderá consultar minha dissertação de mestrado. No contexto deste trabalho convém, contudo, realizar um aprofundamento na afirmação de que a oposição entre fenômenos e coisa-em-si constitui não uma rachadura, mas a condição de possibilidade para a representação do pensamento/conhecimento humano como naturalmente à verdade, ou como possível de estar em adequação com a realidade. Vejamos, em linhas gerais, em que consiste essa argumentação.

Em um sentido amplo, é possível afirmar que a Estética Transcendental pretende oferecer uma prova direta da idealidade transcendental dos fenômenos. Esta idealidade implica que, em sentido transcendental, não podemos conhecer as coisas tais como são, independentemente do modo particular como nos aparecem. Allison (1992) considera que, em função desta afirmação feita por Kant (1996), uma série de interpretações, que caem sob o signo daquilo por ele denominado “versão convencional”62 (p. 30), entendem que Kant esbarra em uma espécie de ceticismo, na medida em que realiza a cisão entre a realidade (identificada à coisa-em-si e ao supra-sensível) e a aparência (identificada aos fenômenos). Semelhante posicionamento tem Strawson (1995), ao afirmar que, segundo Kant, “(...) a doutrina [idealismo transcendental] não diz, meramente, que nós não podemos ter um conhecimento da realidade supra-sensível. A doutrina é que a realidade é supra-sensível e que nós não podemos conhecê-la” (p.38,

grifos meus).

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Allison, em sua obra intitulada El idealismo transcendental de Kant: uma interpretación y defensa (1992), vem introduzir a noção de “versión convencional”. Esta designaria uma série de interpretações acerca da idealidade transcendental dos fenômenos que não levam em conta a distinção entre realismo e idealismo de um ponto de vista empírico e realismo e idealismo do ponto de vista transcendental. Por ocasião desta não-distinção, conforme será explicitado mais adiante, autores que comungam de tal interpretação tendem a julgar o posicionamento de Kant ora como incongruente, ora como cético.

Ao encontro da interpretação de Strawson (1995), Prichard (1909) afirma que Kant, no intuito de defender seu realismo empírico, realiza uma passagem não plenamente justificada entre a aparência fenomênica e sua realidade objetiva. Neste sentido, Prichard (1909) identifica a aparição de algo (mesmo sendo este algo um fenômeno) à ilusão. Se há uma identificação entre fenômeno (aparição) e ilusão – o que, mesmo para críticos moderados de Kant, pode parecer um certo exagero – esta parece derivar de uma identificação entre coisa-em-si e realidade – esta efetivamente adotada sem maiores censuras por vários críticos de Kant. Neste sentido, esta versão

convencional oferece todas as balizas para identificar a posição de Kant à posição de

Berkeley63. Isto, segundo Allison (1992), é efetuado de modo enfático por Turbayne (1955) e, de forma mais sutil, pelo próprio Strawson (1995).

O clássico exemplo que identifica as formas a priori da sensibilidade a lentes que nos são impostas e nos fazem ver a aparência dos objetos de outro modo que não a imagem “real” que estes teriam sem as lentes – esse exemplo de tamanha eficácia pedagógica vem, certamente, prestando um desserviço à defesa da idealidade transcendental dos fenômenos. Com isso, ata o laço, jamais existente na obra de Kant, entre idealismo transcendental e idealismo empírico, laço este que é tão presente na confusão feita por ocasião de interpretações que se enquadram sob o signo versão

convencional. Este exemplo, todavia, será de fundamental importância para

compreendermos em que sentido é válido e em que sentido não é válido associar o fenômeno à aparência, bem como para excogitar qualquer associação deste à noção de ilusão. Isto será feito a partir da introdução da distinção entre idealismo e realismo em

sentido transcendental e em sentido empírico, mediante a qual se pretende reduzir ou

cessar a força de argumentos que refutem a idealidade transcendental dos fenômenos tendo por base o apagamento ou esquecimento da distinção feita por Kant. Antes disto, prestemos atenção às palavras enunciadas pelo próprio Kant (1995), em Os Progressos

da Metafísica:

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Berkeley é aqui tomado como a referência principal do idealismo empírico, identificado, por estes autores, à posição de Kant. “Para Berkeley é impossível pressupor a existência de qualquer ser que não seja percebido. Para ele ‘ser é ser percebido’, portanto só porque percebo posso dizer que é real; em outras palavras, só posso me referir ao conteúdo de minha percepção, e não a algo existente fora de mim” (Rubano, Moroz, 1988, p. 298). Acrescente-se a isto o fato de que “Berkeley defende que a percepção de um objeto nada mais é do que um feixe de sensações combinadas e caracterizadas em conjunto” (idem). Temos aí a expressão suprema do idealismo empírico: a realidade é dependente da percepção e esta, por sua vez, não é dotada de uma organização a priori, mas consiste tão-somente num feixe de sensações. Com isto, a aparição das coisas (fenômenos) é tomada como uma aparência em sentido empírico (as coisas me aparecem/aparentam deste ou daquele modo).

Além disso, há ainda que notar que um fenômeno, tomado em sentido transcendental, quando das coisas se diz – são fenômenos (phaenomena) –, é um conceito com um significado inteiramente diverso de quando eu digo – esta coisa aparece-me assim ou assado – o que deve indicar a manifestação física, e se pode chamar de aparência. (Apparenz oder Schein). Pois, na linguagem da experiência, os objetos dos sentidos, visto que os posso apenas comparar com outros objetos dos sentidos, por ex., o céu com todas as estrelas, embora seja justamente um simples fenômeno (Erscheinung), são pensados como coisas-em-si; e ao dizer-se que ele tem o aspecto (Anschein) de uma abóboda, a aparência (Schein) significa aqui o elemento subjetivo na representação de uma coisa, o que pode ser uma causa de, num juízo, falsamente o considerar objetivo (p.28-29).

Há três afirmações de grande relevância nesta citação.

1. “Um fenômeno, tomado em sentido transcendental, (...) é um conceito com um significado inteiramente diverso (...) do que deve indicar a manifestação física: a aparência.”

2. “Na linguagem da experiência, os objetos dos sentidos (...) são tomados como coisas-em-si.”

3. “A aparência significa aqui o elemento subjetivo na representação de uma coisa, o que pode ser uma causa de, num juízo, falsamente o considerar objetivo.”

A fim de compreender a significação e o alcance dessas afirmações, convém estabelecer os dois sentidos em que Kant opõe realismo e idealismo, a saber, o empírico e o transcendental. Essa distinção não é explicitada enfaticamente, apesar de estar pressuposta na distinção feita entre fenômenos e coisa-em-si. Aparecerá, entretanto, de forma muito breve, porém decisiva, na Estética Transcendental:

Nossas exposições ensinam, portanto, a realidade (isto é, validade objetiva) do espaço no tocante a tudo o que pode nos ocorrer externamente como objeto, mas ao mesmo tempo a idealidade do espaço no tocante às coisas quando ponderadas em si mesmas pela razão, isto é, sem levar em conta a natureza da nossa sensibilidade. Logo, afirmamos a realidade empírica do espaço (com vistas a toda a possível experiência externa) e não obstante a sua idealidade transcendental, isto é, que ele nada é tão logo deixemos de lado a condição da possibilidade de toda a experiência e o admitamos como algo subjacente às coisas em si mesmas (KANT, 1996, p.76).

Haja vista a coexistência entre idealismo transcendental e realismo empírico afirmada por Kant (1996), Allison (1992) explicita em que medida isto se opõe ao realismo transcendental e ao idealismo empírico. Esta explicitação torna ainda mais visível as noções defendidas por Kant (1996), caso tenham parecido muito gerais.

Considerada em um sentido empírico, idealidade caracteriza o dado privado de uma mente individual. Aqui se incluem as ideias no sentido atribuído por Locke e Descartes ou, de maneira mais geral, qualquer conteúdo mental no sentido ordinário de mental. Realidade, considerada em sentido empírico, se refere ao reino dos objetos dos objetos da experiência humana ordenados espacial e temporalmente e acessíveis intersubjetivamente. (...) O aspecto transcendental da divisão entre idealidade e realidade é algo bem distinto. No nível transcendental, que é o nível da reflexão filosófica sobre a experiência (reflexão transcendental), idealidade se usa para caracterizar as condições necessárias e universais, portanto a priori, do conhecimento humano. (...) Reciprocamente, algo é real em sentido transcendental se, e somente se, pode ser caracterizado e referido independentemente de toda apelação a essas mesmas condições sensíveis (ALLISON, 1992, p.35).

Resta evidente, pois, a razão pela qual a afirmação 1 é valida em sentido transcendental, uma vez que contrapõe a “aparência” (em sentido empírico) ao fenômeno. Já a afirmação 2, ao falar em “linguagem da experiência” – que “inclui tanto a experiência ordinária como a científica” (ALLISON, 1992, p.37) – justifica-se somente num sentido empírico. A confusão presente em interpretações como as de Prichard (1909) e Strawson (1995) resulta do fato de que, por não levarem em conta tal distinção, estes autores julgam que a experiência é algo que, estando submetida a formas a priori da sensibilidade, esconde ainda alguma realidade que estaria por trás

de tais formas. Ora, a crítica aqui feita a esta versão convencional consiste em refutar a

tese de que Kant, utilizando-se da noção de fenômeno (suposta como aparência em sentindo empírico), tomou arbitrariamente esta aparência por um conhecimento objetivo. Esta tese pode ser formulada do seguinte modo: como se poderia justificar que, uma vez que tenho o conhecimento das coisas unicamente como estas aparecem (em sentido empírico) a mim, haja alguma garantia de que isto consista num conhecimento objetivo da realidade, que era aquilo que visava Kant defender em seu realismo empírico? O que objeta Allison (1992) diante disto é que

Este absurdo só aparece se a tese kantiana referente à espacialidade das aparências for tomada em sentido empírico. Se interpretarmos a tese sobre a

espacialidade64 em sentido transcendental, que é como Kant claramente deseja que se faça, o absurdo desaparece. (p.38)

Tal interpretação empírica acerca das aparências foi explicitamente adotada por Prichard. Este, para explicar o fato de que conhecemos as coisas unicamente em função do modo como esta nos (a)parece, faz uma analogia com o exemplo de uma barra de ferro que, uma vez posta na água, causa um determinado efeito óptico que pode levar alguém que nunca pôs objeto semelhante na água a julgar que a barra está quebrada. Ora, contra a pertinência de tal comparação, podemos alegar que a “aparência” de uma barra quebrada consiste no sentido de aparência atribuído por Kant na afirmação 3, a saber, no “elemento subjetivo na representação de uma coisa, o que pode ser uma causa de, num juízo, falsamente o considerar objetivo”. Portanto, neste sentido – a saber, o sentido realista empírico, ou a “linguagem da experiência” – aparência significa uma

ilusão que conduz ao erro e, portanto, afasta da verdade.

Em uma breve passagem do início da Dialética Transcendental, Kant cita dois exemplos empíricos – o mar aparecendo mais alto no meio do que na praia e a lua aparecendo maior ao surgir – para falar de ilusões ópticas que não podem ser evitadas. Salienta, porém, que o erro advém não da representação intuitiva, mas sim do juízo que é emitido sobre essas representações. Portanto, a aparência em sentido transcendental65 poderá significar erro somente enquanto não restar claro que não podem fenômeno e ilusão ser tomados por idênticos (KANT, 1996). Uma vez que isto não estiver claro e o fenômeno for tomado por ilusão, uma aparência jamais poderá significar um erro – ou pior, sempre poderá significar um erro, haja vista não existir, aí, um critério de correção exterior à aparência. Neste sentido, a aparência, na medida em que é empiricamente associada ao fenômeno – e a todos os fenômenos que ocorrerem – finda por conceder-

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Allison (1992), na circunstância em que irá tematizar o idealismo transcendental de Kant (em oposição ao realismo transcendental), irá priorizar, na exposição das formas a priori da sensibilidade, a intuição “espaço” – quanto à exposição da intuição a priori “tempo”, esta será feita pelo autor por ocasião de outras problematizações. Todavia, é válido afirmar que o sentido transcendental da oposição entre idealismo e realismo é justificado tanto com respeito ao espaço como igualmente quanto ao tempo. 65

Loparic (2002) considera o termo aparecimento como o modo mais adequado para exprimir o que aqui chamamos de aparência em sentido transcendental. “Creio que ele [o termo ‘aparecimento’] capta, com mais precisão que o termo ‘aparência’ (comumente empregado nas traduções de Kant), o significado das expressões kantianas, por não admitir ser interpretado como sinônimo de disfarce ou simulação” (Loparic, 2002, p.6). É curioso salientar que, na língua portuguesa, o substantivo “aparência” não é aquele a que corresponde o verbo “aparecer”, como comumente é pensado, mas sim aquele a que corresponde o verbo “aparentar”. Este deslize parece, todavia, ter arrastado consigo uma série de significações equivocadas quanto à tese da idealidade transcendental dos fenômenos. O substantivo que corresponde ao verbo “aparecer” estaria mais próximo de algo como “aparição”; todavia, o próprio Loparic (2002) rejeitou o uso deste termo porque entendeu que este remetia a “fantasmas e visões terrificantes” (idem), preferindo assim o termo “aparecimento”.

lhe o estatuto de ilusão, decorrendo disto uma consequência cuja gravidade seria responsável pelo desabamento de toda a Filosofia Transcendental. A consequência aí seria o ceticismo, haja vista que se faria impossível detectar, a partir da aparência, o erro, já que não haveria uma instância mais legítima a que recorrer para corrigir o erro ocasionado pelo juízo.

Assim, o ceticismo advém não do idealismo transcendental, posto que aí os fenômenos são circunscritos a um campo em que se faz possível um conhecimento acerca destes e, portanto, um critério de correção para juízos falsos, mesmo diante de ilusões empíricas. Esse campo no qual os fenômenos são circunscritos é precisamente o território da adequação prévia, cujo funcionamento capilar será posto em ação mediante o esquematismo transcendental. Para o ponto que nos interessa neste trabalho, isto quer dizer que o acordo prévio, a inclinação natural do pensamento para a representação adequada e verdadeira da realidade, é novamente aqui restaurada, mas não mais pela

reminiscência platônica, nem pelo Idiota cartesiano, mas sim pelo esquematismo transcendental kantiano que constitui a experiência de modo a fazer concordar a

sensibilidade com o entendimento.

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