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O impensado na Teoria Coerencial da Verdade

IMPENSADO NO DISPOSITIVO DA VERDADE

4. O impensado nas Teorias da Verdade

4.2. O impensado na Teoria Coerencial da Verdade

A Teoria Coerencial da Verdade afirma que um conjunto de portadores de verdade (uma teoria, por exemplo) é coerente na medida em que nenhum deles contradiz o outro e quando um subconjunto qualquer dele implica a verdade dos demais portadores de verdade pertencentes ao conjunto. Assim, uma proposição verdadeira implicará sempre referência a um conjunto maior de proposições que, por sua vez, só poderá se encontrar em estado de coerência caso remeta a um conjunto ainda maior. Uma proposição isolada não pode ter sua verdade garantida, a não ser mediante a suposição de uma série de outras proposições implícitas ou explicitamente assentidas como verdadeiras. Desse modo, como bem percebe Costa (2005), a Teoria Coerencial da Verdade remonta à concepção hegeliana de que o verdadeiro é somente o todo. Ela está relacionada também àquilo que, na Crítica da Razão Pura, Kant (1996) chamou de

princípio da determinação completa: o princípio que “representa cada coisa como

derivando a sua própria possibilidade do seu grau de participação naquela inteira possibilidade45” (p.358). A atribuição de verdade presente em cada juízo particular implica, neste caso, uma relação específica com o conjunto total das possibilidades de juízos determinantes verdadeiros (BENEVIDES, 2008).

Segundo Braida (2009), podemos fazer referências às teorias de Dauer (1974) e Puntel (1990) como tentativas de justificar uma Teoria Coerencial da Verdade tendo por suporte uma teoria holística, seja de ordem semântica, seja de ordem epistêmica. Seguirei aqui com a exposição da Teoria Coerencial da Verdade tal como agenciada a partir do holismo semântico assumido pelo filósofo estadunidense Quine (1969). Escolherei esse caminho tanto porque a perspectiva de Quine (1969) constitui uma das argumentações mais finas e elaboradas para a defesa de uma Teoria Coerencial da Verdade, bem como porque aponta precisamente para uma crítica à determinação atomística da referência (e, com isso, do valor de verdade presente nas Teorias Correspondencialistas mediante a assunção de uma unidade proposicional como a

expressão do sentido).

Em seu texto A Relatividade Ontológica, Quine (1969) pretende argumentar que não somente o sentido de uma proposição (ou o pensamento que ela expressa) é algo

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Deste princípio, segundo Kant, derivam boa parte das provas da existência de Deus. Elas serão denunciadas na seção dedicada à Crítica da Teologia Racional, ao final da Dialética Transcendental, como uma das modalidades daquilo que o filósofo chamou de ilusão transcendental (BENEVIDES, 2008).

passível de ser posto em xeque, mas que a própria referência de uma proposição é sempre problemática. Quer dizer: mediante uma proposição nunca teremos garantias o suficiente para saber, exata e precisamente, a que objetos, coisas, eventos, fatos ou acontecimentos ela se refere. Quine (1969) chamou isto de inescrutabilidade da

referência, e argumentou que esta advém de uma indeterminação da tradução. Vejamos

mais de perto a argumentação de Quine (1969).

Para elucidar no que consiste a indeterminação da tradução, o filósofo estadunidense recorre a uma situação hipotética na qual um linguista (por exemplo, algum cuja língua materna seja o português) visita uma tribo que lhe é, em termos linguísticos, totalmente desconhecida. Nela, os habitantes têm o costume de apontar numa dada direção e exclamarem: gavagai! Suponhamos, ainda, que a tarefa do nosso linguista seja traduzir esta expressão por alguma outra correspondente à Língua Portuguesa. No decorrer dos dias, ele percebe que os habitantes pronunciam “gavagai” sempre que passa aquilo que nós chamamos de coelho. Poderia, portanto, efetuar a tradução de gavagai por coelho? Poderia ele dizer: “gavagai significa coelho”? Ora, segundo Quine (1969), nada há aí que determine completamente tal tradução, posto que a expressão da tribo nativa serve igualmente para partes não separadas de coelho, ou mesmo para estádio de coelho. Por mais que os nativos, na tentativa cândida de auxiliar nosso nobre linguista, se esforçassem para delimitar por ostentação direta46 a referência em questão, esta tentativa estaria fadada ao fracasso. Se, então, a ostentação direta fracassa em possibilitar uma determinação indubitável da tradução, isto decorre do fato de que, ao supor apontar para um objeto X na tentativa de encerrá-lo como referência, resta sempre uma dúvida quanto ao apontar – a saber, se o ato de apontar se dirige/se refere a X, às partes não separadas de X ou aos estádios de X47.

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Segundo Quine (1969), “o que caracteriza a ostentação directa, então, é o termo que está a ser explicado ostensivamente ser verdadeiro daquilo que contém o ponto ostentado” (p.109). Isto entendendo “ponto ostentado” como “o ponto onde a linha do dedo que aponta encontra primeiro uma superfície opaca.” (idem). Uma ostentação direta seria, então, um apontar para a referência.

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As expressões “partes não separadas de” e “estádios de” constituem uma tentativa de Quine (1969) mostrar elementos que escapam à individuação da referência, seja pela definição ostensiva (aquela que pretende apontar com o dedo a referência), seja pela tradução. Ao tentarmos especificar, individualizar ou discernir algo, que outros elementos entram aí em cena sem que isto seja de nossa vontade? Ou sem que possamos controlar sua entrada? Em que medida esses elementos atrapalham o estabelecimento do significado que queremos dar? Em que medida, mais ainda, eles podem não deixar claro àquele(s) para quem falamos a referência mundana daquilo que falamos? Não poderiam os habitantes da tribo desconhecida para nós estarem dizendo, com “gavagai!”, algo que seria mais próximo a: “eis o Deus- coelho!”, ou “é hora do jantar!”, ou mesmo “veja como o coelho corre rápido”? E, indo mais além, não seria possível que a tribo em questão fizesse referência aos olhos do coelho, tendo em vista que poderia constituir uma crença comum o fato de que os olhos do coelho trazem sorte (de modo que gavagai poderia significar: “olhos de coelho”, ou mesmo uma expressão eufórica de contento diante da sorte)? E

Assim, segundo Quine (1969), “o assentimento dado pelo nativo não constitui evidência objetiva para traduzir gavagai por ‘coelho’ em vez de ‘partes não separadas de coelho’ ou ‘estádio de coelho’” (p.103). Isto porque tal tradução não pode nunca ser sustentada por ostentação direta, haja vista que é fundada numa máxima que, em última instância, não é de ordem lógica e nem epistêmica, mas sim meramente psicológica48. Esta máxima consiste na suposição implícita de que um objeto contínuo, que se move num pano de fundo, serve de referência a uma expressão curta – máxima esta que “é uma imposição sua [do linguista] para resolver o que é objetivamente indeterminado” (QUINE, 1969, p.104). Quantas máximas psicológicas não estariam inscritas com tanta força de evidência em nossas práticas linguísticas que, por essa exata razão, não conseguiríamos vê-las com clareza49?

Não se pretende aqui, evidentemente, colocar um obstáculo intransponível para o trabalho de um tradutor. Nem mesmo é exatamente a questão da tradução que importa. O exemplo dado por Quine (1969) constitui somente um artifício para mostrar algo que acontece no dia a dia, na própria linguagem cotidiana. Aquilo que é designado por

tradução não é algo muito distinto do que ocorre com o próprio aprendizado da língua

materna. Assim, a posição de todo e qualquer sujeito que usa a linguagem estaria, em parte, assemelhada à posição ocupada por nosso tradutor do termo gavagai, pois “encontramos certa obscuridade da referência infiltrando-se na própria língua materna” (QUINE, 1969, p.115).

Mediante esse exemplo, quis mostrar como a assunção de um holismo semântico (QUINE, 1969) implica numa impossibilidade de uma Teoria Correspondencialista da Verdade, na medida em que esta última acredita ser possível atribuir valor de verdade à relação entre proposições específicas e referências específicas. A Teoria Coerencial da Verdade, quando sustentada pelo holismo semântico de Quine (1969)50, entenderá, não poderia ser uma crença ainda mais específica, a saber, que os olhos do coelho trazem sorte somente durante os três últimos meses do ano, e nosso linguista estar exatamente durante este tempo na tribo? E se esses três últimos meses do ano fossem chamados de gava e os olhos do coelho, habitualmente, de gai, não seria possível que a expressão gavagai significasse algo muito deferente de coelho, mas sim algo parecido com: “Que bom! Terei sorte porque vi os olhos de um coelho no período de gava!”?

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No campo das Teorias da Verdade, da Filosofia Analítica ou mesmo do Holismo Semântico, geralmente psicológico significa algo não muito diferente de arbitrário.

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Aqui as palavras de Foucault apud Artières (2004) não poderiam ser mais oportunas para designar as sutilezas percebidas por Quine (1969): “fazer aparecer o que está tão perto, o que é tão imediato, o que está tão intimamente ligado a nós mesmos que exatamente não o percebemos (...) fazer ver o que vemos” (p. 540-541).

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Os elementos apontados por Quine (1969) acerca da inescrutabilidade da referência podem ser de grande valia para uma teoria coerencial da verdade, tal como compreendem Dauer (1974) e Braida (2009). Todavia, penso que o seu valor ultrapassa o mero âmbito dessas teorias, de modo a incitar

portanto, que a verdade está relacionada à coerência interna dos enunciados, haja vista a impossibilidade de uma linguagem absolutamente transparente capaz de afigurar, representar ou corresponder à realidade. A impossibilidade de uma correspondência reside, aqui, na impossibilidade de uma discriminação da referência; e esta última decorre do fato de que não existe linguagem mais precisa ou menos precisa para nomear a realidade. Quanto a este ponto, França (2008) mesmo salienta o fato de que uma Teoria Correspondencial da Verdade há sempre que supor que existe uma maneira mais adequada de descrever a realidade, uma linguagem mais transparente.

Muito embora uma Teoria Coerencial da Verdade faça um movimento na direção de romper com essa noção de que existe uma linguagem mais adequada para descrever a realidade, ainda persiste nela uma certa imagem de pensamento relativa ao que seja coerência como uma boa, uma adequada, uma não-contraditória ou mesmo uma harmônica relação dos enunciados entre si. Assim, se as teorias coerenciais da verdade rejeitam a unidade atomística do sentido como ponto necessário para a correspondência com a realidade, reassumem, em uma unidade holística, toda uma imagem do pensamento, toda uma pré-compressão, toda uma compreensão não- conceitual (DELEUZE e GUATTARI, 2010) semelhante às Teorias Correspondencialistas da Verdade. Se não fazem no nível próprio das proposições, o fazem, contudo, no nível das relações entre as proposições. Se, por um lado, essas relações podem se encontrar remetidas à totalidade de um plano de imanência (no caso, por exemplo, do holismo semântico quineano), os movimentos conceituais que são orientados sob o signo da coerência não recorreriam, novamente, a uma ideia intuitiva, natural, evidente, pré-conceitual, profunda e, ainda, moral do que seja coerência? Em sua ânsia de argumentar pela necessidade de uma conexão com o todo, a Teoria Coerencial da Verdade não deixaria de colocar o problema acerca do móvel de sustentação das relações que aparecem nessas conexões? Não deixaria de pensar o conceito de coerência no puro ato de identificá-la à verdade51? Não seria a superposição entre verdade e coerência precisamente uma forma de reinstalar a transcendência? E, com isso, não sentimos novamente aqui a superfície dormente do impensado no elementos para um questionamento mais radical acerca da própria noção de coerência. Neste sentido, Butturi (2008) já percebera conexões interessantes entre a ontologia relativista de Quine e a concepção foucaultiana acerca do discurso.

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Cito alguns exemplos dessa identificação: “A verdade de um enunciado consiste em sua coerência com um sistema de enunciados” (Dauer, 1974, p.174); “Dado um conjunto de proposições, (1) se as proposições são verdadeiras, então elas são coerentes entre si; e (2) se as proposições são coerentes entre si, então elas são verdadeiras” (Rescher, 1989); e “uma proposição é verdadeira se, e somente se, ela é parte de um conjunto coerente de proposições” (Braida, 2009).

pensamento? Ora, isto parece muito claro mediante a assunção, reforçada pelo holismo

semântico de Quine (1969) quando utilizado para justificar uma Teoria Coerencial da Verdade, de que a coerência está somente no todo. Esse todo, lugar da verdade e território da coerência, não é precisamente aquele Uno-Todo absoluto que Deleuze e Guattari (2010) qualificam como o plano de imanência? Não é ele que é representado pelo conceito de coerência e identificado à verdade?

Sobre isso, Foucault (1997b) chama atenção a respeito do modo como a lei de

coerência e sua exigência de não-contradição instauram uma “regra heurística, uma

obrigação de procedimento, quase uma coação moral da pesquisa” (p. 171). Assim, Foucault (1997b) reencontra nesse conjunto de temas ligados à coerência e à não- contradição, que entende a si mesmo como inserido somente no campo discursivo, racional e conceitual, uma série de temáticas de ordem imaginária, afetiva e desejante. Estas temáticas se configuram de forma semelhante a uma “paisagem imaginária comum a toda cultura” (FOUCAULT, 1997b, p.173), cujo percurso rumo à profundidade do sentido e da unidade aquém da superfície do discurso dá ensejo a diversas formas metafóricas, imagéticas e representacionais de expressão. Não devemos, contudo, perder de vista o caráter moral desta organização dos enunciados operada sob a lei da coerência e seu corolário: a exigência de não-contradição.

Sob todas essas formas, a coerência assim descoberta desempenha sempre o mesmo papel: mostrar que as contradições visíveis não são mais do que um reflexo de superfície; e que é preciso reconduzir a um foco único esse jogo de fragmentos dispersos. A contradição é uma ilusão de uma unidade que se oculta ou que é ocultada: só tem seu lugar na defasagem existente entre a consciência e o inconsciente, o pensamento e o texto, a idealidade e o corpo contingente da expressão. (FOUCAULT, 1997b, p.172-172).

Ora, recusando operar essa defasagem e permanecendo no espaço branco e imanente dos enunciados, que lugar ainda haveria para a contradição? Ela o declararia falso porque autocontraditório? Ela suprimiria o enunciado, deixando-o em seu lugar um espaço vazio = 0? Aqui podemos tomar dois exemplos utilizados por Foucault em momentos bem distintos que enunciam para além do princípio de não-contradição correlato à exigência de coerência. O primeiro é encontrado em A Vontade de Saber e se refere a uma das ameaças supostamente feitas por um poder que só saberia negar, ocultar e reprimir a sexualidade: “não apareças se não quiser desaparecer” (FOUCAULT, 2009b, p.94). O segundo refere-se às obrigações de dramatização da verdade nas práticas de exomologêsis, tal como no contexto das técnicas de si cristãs,

analisadas por Foucault (2010a) em 1980, por ocasião da conferência intitulada

Cristianismo e Confissão. Essas obrigações, segundo Foucault (2010a), assumiam a

fórmula do “ego non sum ego [não sou o que sou]” (p. 175). Seria possível encontrar vários outros no pensamento de Foucault, mas nos limitemos a esses dois enunciados: “não apareças se não quiser desaparecer” e “não sou o que sou”. Para ver o que eles enunciam, seria preciso certamente inervar e fazer circular sangue em toda essa região dormente do impensado pela via da coerência. “Não apareças se não quiser desaparecer” – trata-se aqui de uma ameaça que joga, ao mesmo tempo, com a ambiguidade de uma existência e uma não-existência, algo do tipo: “eu sei que você existe, mas exista não existindo”; ou, ainda, de um murmúrio que bem poderia estar a dizer: “apareça discretamente sem que eu te veja”; ou ainda, quem sabe, de uma ameaça que deixa em sua própria enunciação uma brecha de permissividade: “sei que existes e queres aparecer, se queres isso, tens que se submeter a determinadas condições”. Tomando o segundo exemplo “não sou o que sou” – é possível ler aí o enunciado de uma esperança que pode querer dizer: “não sendo, eu enfim serei!”, ou ainda uma pura mortificação de si: “destruirei a mim mesmo!”; ou ainda, ao contrário, uma afirmação daquilo se é: “eu sou alguma coisa: aquilo que há que deixar de ser para ser”52.

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